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Siga no“Oi, seres humanos”, cumprimenta Anna Tômica, na série de vídeos que apresentam os Órgãos Vitais Afetivos da Panoletos. Quem está por trás da personagem, da marca e dos objetos é a designer Camila Fortes. Num impulso criativo, ela teve a ideia de desenvolver uma coleção que dá nome e significado a várias partes do corpo, do coração ao estômago, feitos em tecido e com formato anatômico.
Panoletos é uma palavra inventada que vem de amuletos de pano. A empresa existe desde 2002, quando uma amiga chamou Camila para fazer bichinhos de tecido. Formada em engenharia de controle e automação “por desvio de percurso”, ela foi estudar design de produto. O negócio estourou e chegou a atender grandes pedidos.
O coração Tumtum foi a sua primeira criação solo, depois que ela desfez a segunda sociedade. Sempre “com a antena em pé”, a designer passou a ver o órgão ser representado em vários contextos e decidiu produzi-lo em pano, seguindo a anatomia humana. “Foi uma reconstrução”, analisa. “A partir dele, fui fazendo os outros órgãos.”
Na maioria das vezes em tons de vermelho, o coração apareceu primeiro como almofada. Depois se transformou em quadros, alguns em molduras de madeira com tampo de vidro.
Com o tempo, ganhou outras cores, estampas e formatos em edições especiais, como o Conectum, com dois órgãos conectados por “veias” de linhas, representando a conexão entre duas pessoas, e o Tumtum Disco, todo revestido com quadradinhos prateados. Tem também o coração Alado, com asas de arame, e o coração Vulnerável, com um bordado em pedraria em forma de jorro de sangue, que acabam extrapolando os tecidos e incorporando outros materiais.
A coleção dos órgãos foi tomando forma aos poucos. O pulmão Ufa nasceu a pedido de uma cliente que queria presentear seu pneumologista (e esse acabou virando um nicho importante para a marca: presentes para médicos e futuros médicos). “Fazemos uma associação direta do coração com o amor, mas percebi que não é assim com outras partes. Então, pensei: por que não dar sentido aos outros órgãos? Aí fui enxergando o corpo todo com esse olhar.”
Os pulmões são revestidos com tecidos floridos para dar uma ideia de inspiração, tanto no sentido de aflorar a criatividade quanto de respirar profundamente, fazer pausas, tomar fôlego.
Criação visceral
Aquela história de que a vida imita a arte se aplica perfeitamente aqui. As criações da Panoletos se relacionam diretamente com o corpo, os sentimentos e pensamentos de Camila. Hoje ela entende por que o útero Viva! demorou tanto para sair.
“Fiz mil protótipos, não gostava de nenhum, ficava ansiosa, até que entendi que era questão de aceitação, de pertencimento, e fiquei confrontando com aquilo. Foi numa época em que o relógio biológico estava me aproximando da maternidade e da decisão de ter filho ou não.”
Durante a gravidez, a designer criou o cordão umbilical Elo, subvertendo a ideia de que o umbigo está ligado ao egoísmo. Pelo contrário, afinal, como ela lembra, ali é por onde as mães nutrem os filhos. Camila vai mais além e enxerga o órgão como representante da hereditariedade, de conexão com os antepassados.
Seguindo o fio da vida, a série Mamá em Pencas (Longas, Desiguais, Simétricas e Curtas) surgiu um mês depois que ela desmamou o filho Theo. “Peito não pode ser apenas símbolo de sensualidade e perfeição. Quero mostrar um outro lado, do conforto, do acolhimento, quero mostrar um peito caído, um bico um diferente do outro”, aponta. São seios acolchoados com mamilos bordados a mão para pendurar no pescoço ou na parede de casa, em vários tons de pele e formatos.
Mistura de referências
Quando vai criar um órgão vital, primeiro Camila pesquisa a parte científica e a anatomia, depois incorpora ensinamentos da medicina oriental, para entender a questão da somatização. Por último, pensa qual mensagem quer transmitir. “Faço uma grande mistureba”, resume.
O cérebro Hã?! coloca todo mundo para pensar. “A ideia é questionar o quanto realmente sabemos, até que ponto somos inteligentes, sábios e pretensamente superiores.” Para chegar ao formato mais anatômico possível, Camila decidiu dar nós em cordas de algodão até criar um grande e complexo emaranhado.
Para cada órgão, a artista escreve um poema, que são vendidos separadamente em estandartes e quadros. Segundo ela, o do cérebro Hã?! é um dos mais interessantes. Não só pelo texto em si, mas pela forma de escrever as palavras, que deixam a leitura enigmática. Termina assim: “Quando plural, quase sabe.” O do cordão umbilical, escrito em uma noite sem dormir, no período da amamentação, também está entre os preferidos. “Vida que migra e se desdobra, de eu em eu”, diz.
Mensagens do bem
Os rins Salve, Salve estão associados tanto ao ato de salvar a vida do outro (já que é um órgão que pode ser doado em vida) quanto a um cumprimento camarada. No fim, ambos os significados falam sobre empatia.
Cada um à sua maneira, dois órgãos são lembrados por refletir nossas emoções. O fígado Oba! ganhou esse nome como forma de se relacionar com festividade, “entusiasta de emoções”, como está descrito no seu respectivo poema. Já o estômago Hummm nos lembra da intensidade de sentimentos e que “Emoção é ventania / revoada de borboleta.”
Camila planeja lançar, em breve, o olho e a pele – esse há dois anos já tem nome (Uau) e poema, mas ainda não se materializou em objetivo, o que tem sido um desafio e tanto para a designer. A língua também está no radar.
A linha dos Órgãos Vitais Afetivos é um trabalho que emociona as pessoas. Algumas choram se lembrando de um ente querido, outras aproveitam para compartilhar que estão doentes. Há quem sinta repulsa, há quem dê risadas. Mas ninguém fica indiferente. De jeito ou de outro, os objetos criam conexões com o público.
Vídeos performáticos
Anna Tômica veio para dar vazão a um lado performático de Camila, que sempre gostou de carnaval, do universo das drag queens e tem uma veia cômica apurada. E ela resolveu explorar isso nas redes sociais, destacando-se em meio a uma profusão de conteúdos pasteurizados.
“Comecei a ver nas performances uma forma de elevar o trabalho artesanal e chacoalhar as pessoas”, pontua a roteirista, atriz, figurinista e “maquiadora de cílios descolados” dos vídeos, rindo e aproveitando para questionar a perfeição imposta pela internet.
A cada vídeo, ela apresenta um órgão da coleção, que tem nome e significado. As falas fazem críticas, com bastante ironia, a comportamentos dos seres humanos e provocam reflexões. O pulmão, por exemplo, é usado para se opor à correria da vida, enquanto o coração defende a busca pelo amor próprio.