Santana do Riacho e Jaboticatubas - Um amontoado de rochas cinzentas, forradas por camadas escuras e secas de líquens mortos no fundo de uma garganta foi o que restou de onde corria uma das fontes de água mais límpidas do povoado de Lapinha da Serra, na Serra do Cipó, Região Central de Minas. A paisagem desolada que deixou sem uma gota a Cachoeira da Conversa não é comum, e espantou a comunidade que hoje depende de caminhões-pipa da Prefeitura de Santana do Riacho para seu abastecimento.
É um alerta assustador na região que é uma das fontes da água de melhor qualidade para Minas Gerais, considerada do mais alto grau de pureza, a classe especial. “Nunca vi essa cachoeira assim, sem uma gota de água. Estamos colhendo frutos dos últimos três anos de incêndios que carbonizaram as cabeceiras”, avalia Cristiano Reis, coordenador da brigada voluntária Guardiões da Serra, que atua na localidade.
As águas de classe especial são tidas como fundamentais para manter os ecossistemas equilibrados, servir de berçário de espécies aquáticas, fontes de abastecimento e diluidoras da poluição nos rios em que deságuam. Mas ameaças como as que esgotaram a cachoeira pairam sobre as áreas de recarga, os locais onde a água das chuvas penetram no solo e abastecem as nascentes.
Queimadas, incêndios florestais, desmatamento, mineração, indústrias predatórias e expansão imobiliária inconsciente podem prejudicar essa dinâmica e ameaçam secar as fontes em Minas Gerais, estado que já foi chamado de “caixa d’água do Brasil”, de onde rios abastecidos pelas águas especiais ainda correm para unidades da federação vizinhas: São Paulo, Rio de Janeiro, Mato Grosso do Sul, Paraná, Bahia, Pernambuco, Alagoas e Sergipe.
Para mostrar a situação dessas fontes, a equipe de reportagem do Estado de Minas contou com o auxílio de especialistas como o químico, espeleólogo e ambientalista Luciano Faria. Colaborações fundamentais para identificar não apenas onde se originam, mas o mais importante: as condições das áreas de recarga dos mananciais de classe especial de 88 municípios. Além da classe especial, o Conselho Nacional de Meio Ambiente (Conama) enquadra a pureza das águas de classe 1 a classe 4, a última tão poluída que serve quase apenas para a navegação (confira infográfico na página ao lado).
Cruzamento de dados indica quadro de alerta
Para levantar dados sobre a qualidade do patrimônio líquido de Minas foram necessários cruzamentos de informações do Instituto Mineiro de Gestão das Águas (Igam), da Agência Nacional de Águas e Saneamento (ANA), do Ministério do Meio Ambiente (MMA) e de comitês de bacias hidrográficas, além de mapeamento por satélites de queimadas do Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais (INPE) e de perda de cobertura florestal da organização não-governamental Global Forest Watch.
Entre 2018 e 2022, no período da estiagem em Minas (abril a outubro), os 88 municípios mapeados que detêm águas de qualidade especial apresentaram 3.029 focos de incêndios, sendo que somente no ano de 2022 foram 30 cidades superando o número médio de focos do período anterior.
A área de recarga de mananciais de classe especial pesquisada foi de 466.889 hectares (ha) – mais de duas vezes o Parque Nacional da Serra da Canastra (197,8 mil ha) –, o que corresponde a 0,8% do estado (58 milhões de ha). O levantamento de 2018 a 2022 apontou 3.024 hectares de perdas de cobertura de árvores, um espaço um pouco menor que o Parque Nacional da Tijuca (3.958 ha), no Rio de Janeiro, sendo 549 ha (18%) só em 2022.
“Ao proteger as áreas de recarga, se permite um fluxo constante da água da chuva até mesmo na estiagem, já que esse recurso hídrico penetra e se armazena no subsolo. A área de recarga é o espaço de solo e rochas por onde a água penetra para alimentar o lençol freático, posteriormente aflorando como uma nascente ou alimentando diretamente outro manancial”, afirma o químico, espeleólogo e ambientalista Luciano Faria.
“A legislação brasileira considera que a classe especial seja a melhor qualidade de águas, dependendo de tratamento simples e não convencional para se beber. Os trechos de rios, córregos e mananciais de águas especiais são extremamente importantes para a biota aquática (conjunto de seres vivos que povoam as águas)”, detalha o geógrafo Antoniel Fernandes, professor dos departamentos de Geografia e Biologia da PUC Minas. “É muito falado que Minas Gerais é considerado a caixa d’água do Brasil. O estado é um grande fornecedor para outras unidades da federação, e o somatório da qualidade dessas fontes resultará nas condições desses mananciais”, alerta.