A alta demanda por corridas de mototáxi anda lado a lado com uma estatística alarmante em Belo Horizonte: cerca de 80% das vítimas de acidentes de trânsito internadas no Hospital de Pronto-Socorro João XXIII, na Região Centro-Sul da capital mineira, são motociclistas que trabalhavam para aplicativos de transporte ou delivery. Na lista recente de tragédias, um motociclista de aplicativo de 23 anos morreu, e uma mulher de 22 ficou ferida, em um acidente anteontem (7/11) no cruzamento da Avenida Cristiano Machado com Waldomiro Lobo, no Bairro Guarani, Região Norte de Belo Horizonte.
De acordo com a Polícia Militar, testemunhas relataram que a moto trafegava no "corredor", fazendo zigue-zague, quando um carro precisou frear, devido à retenção causada por obras na via. O motociclista não conseguiu parar, bateu na traseira do veículo e foi arremessado para debaixo de um caminhão. Ele morreu ainda no local. A passageira da moto, grávida de 12 semanas, foi socorrida pelo Serviço de Atendimento Móvel de Urgência (Samu) com trauma cervical e escoriações pelo corpo. Não há informações sobre o estado de saúde da vítima. O motorista do carro e o condutor do caminhão fizeram teste do bafômetro, que deu negativo para os dois.
O acidente expõe a vulnerabilidade dos motociclistas no trânsito. As internações de condutores de moto entre 1º de janeiro e 23 de outubro deste ano no Hospital João XXIII subiram 16,9% na comparação com o mesmo período de 2022 e já se aproximam do total de internações do mesmo tipo no último ano. Até 23 de outubro, 4.419 vítimas de acidentes de trânsito envolvendo motocicletas deram entrada na urgência e emergência do hospital. Rodrigo Muzzi, diretor médico do João XXIII, explica que a maioria das internações registradas no pronto-socorro envolve pacientes com traumas leves, como fraturas fechadas, principalmente de pernas e pés. Mesmo assim, o crescimento dos atendimentos foi geral e também houve um aumento de casos mais graves, como de traumatismo craniano. “Outras portas de urgência estão sobrecarregadas com esses casos de menor importância. Não temos estatística exata, mas sabemos que a imensa maioria, 80% a 90%, ocorre com pessoas que trabalham com moto.”
O médico explica que a escalada de ocorrências de trauma em acidentes de trânsito tem sido uma constante nos últimos anos. Conforme dados da Fundação Hospitalar do Estado de Minas Gerais (Fhemig), que administra a unidade de saúde, em 2020 foram registradas 4.443 internações, já em 2021 houve um crescimento de 7,9% no número de atendimentos, sendo feitas 4.795 internações. Em 2022, houve uma leve queda, e o número passou para 4.715.
“Já temos o costume de fazer o atendimento dos pacientes graves no Centro de Tratamento Intensivo (CTI) e recentemente expandimos os leitos do semi-intensivo. Os casos menos graves, como esses traumas leves, o que fazemos é transferir para outras unidades de saúde, como o Maria Amélia Lins, que é referência em procedimentos ortopédicos”, informa Muzzi.
Vítimas ano a ano
Confira o número de motociclistas levados ao Pronto-Socorro:
2020
4.443
2021
4.795
2022
4.715
2023*
4.419
Regulamentação
Belo Horizonte não tem uma legislação municipal para regulamentar o transporte de aplicativo por motos. Isso porque, desde março de 2018 a Lei 13.640 permite a modalidade em todo o território nacional. Apesar disso, a legislação não exime o município de regimentar o serviço, conforme consta no artigo 11-A. “Compete exclusivamente aos Municípios e ao Distrito Federal regulamentar e fiscalizar o serviço de transporte remunerado privado individual de passageiros previsto no inciso X do art. 4º desta Lei no âmbito dos seus territórios”.
Para Alisson Coimbra, diretor científico da Associação Mineira de Medicina de Tráfego (Ammetra), o aumento dos acidentes e internações está relacionado, principalmente, à maior procura pelo mototáxi por aplicativo e à falta de regulamentação do serviço. Ele afirma que o trânsito da capital não comporta o crescimento da demanda.
“Dentro da avaliação para regular esse serviço está o entendimento de que todas as ruas e avenidas não estão preparadas para esse fluxo adicional de motocicletas (…). Não vemos políticas de planejamento de mobilidade urbana. O que normalmente as cidades faziam era aumentar o número de faixas, mas nós já estamos com esgotamento de espaço físico”, diz.
Robert Escolástico Gonçalves Júnior, de 38 anos, trabalha há 17 anos como motoboy. Ele conta que desde que a modalidade de transporte por aplicativo por moto chegou à capital percebeu que o número de acidentes aumentou drasticamente. “Tem acontecido muito acidente. Os meninos não têm preparação nenhuma, não têm curso nenhum nem equipamento de segurança. Tiram carteira com 18 anos e já vão para essa selva de pedra. Muitos trabalham sem carteira de habilitação. Virou uma bagunça. E o poder público tem sido omisso a toda essa situação”, avalia.
Assim como o diretor da Ammetra, Robert também acredita que as políticas de regulamentação e mobilidade urbana voltadas para os aplicativos de transporte são a saída para que os números de acidentes caiam. Ele relata que a falta da intervenção do município tem deixado a atividade cada vez mais precarizada.
“Não somos contra o trabalhador. Mas precisamos resolver essa situação, que está muito complicada. O aplicativo não liga para a vida do ser humano, ele quer mão de obra disponível. Dizem que gerou emprego mas não foi assim. Ele (o sistema de aplicativos) simplesmente pegou um mercado que estava pronto, tomou para si, implementou o sistema e todo mundo se viu obrigado a trabalhar para ele. Se morrer um, ou machucar, ou sequelar, no dia seguinte tem outro para colocar no lugar”, afirma.
Ações educativa
Paulo César Martins de Oliveira tem 37 anos e há 11 trabalha como motoboy. No último mês, ele ficou duas semanas parado depois de um acidente, na Região da Pampulha. Apesar de ele ter sofrido apenas ferimentos leves, sua motocicleta ficou destruída. Ao Estado de Minas, o motoboy contou que estava trabalhando com entrega de alimentos, quando uma motorista em um carro não respeitou a parada obrigatória do cruzamento e o atingiu. Ele foi encaminhado ao Hospital Municipal Risoleta Neves, com escoriações pelo corpo.
O profissional também acredita que a criação de normas para o transporte de passageiros em motocicletas seja um caminho para a redução dos acidentes. Ele diz ter conhecimento de que pessoas sem carteira de motorista oferecem o serviço, ou são recém-habilitadas e não têm experiência em carregar alguém na garupa.
“A regulamentação vai coibir muito o desrespeito às normas de trânsito. Porque eu vejo aí pessoal levando passageiro em moto em péssimo estado, motos que são feitas para delivery estão carregando passageiro. Vários acidentes são com uma moto de aluguel de 110 cilindradas, que é muito leve. Tem que ter uma regulamentação para exigir no mínimo dois anos de carteira e um curso para condução de passageiro – que não é o mesmo que carregar delivery, é uma coisa bem séria”, afirma Paulo.
Questionada sobre a possibilidade de uma regulação da atividade, a Prefeitura de Belo Horizonte (PBH) informou que adota “uma série de ações educativas” com objetivo de garantir a segurança dos motociclistas. Além disso, a administração tem feito intervenções nas vias da cidade para reduzir os acidentes. “Os principais corredores já contam com mais de 500 motoboxes, as áreas sinalizadas para as motocicletas nos cruzamentos, que reduzem o conflito entre motos e outros veículos e trazem ainda maior visibilidade aos pedestres no momento da travessia na faixa. Todos os ônibus do transporte público municipal contam com o adesivo do Ponto Cego, indicando uma área na lateral do veículo sem visibilidade para os motoristas dos ônibus”, informou a PBH.
Mobilidade urbana
Mesmo assim, profissionais da área e especialistas em tráfego afirmam que o Executivo deve promover mudanças mais efetivas na mobilidade urbana. Caso contrário, a inclusão do novo modal de transporte sem a prévia análise de uma possível viabilidade pode trazer impactos negativos em diversos setores do município, principalmente em relação à saúde.
“Temos gastos diretos e indiretos para o Sistema Único de Saúde (SUS) e Previdência Social pelo número de atendimentos e sequelas permanentes, prejuízos econômicos por interferência na fluidez no trânsito de pessoas e produtos, quer seja pela sobrecarga de veículos ou pelas interrupções no tráfego para atendimento e remoção de vítimas”, conclui Alisson Coimbra, diretor científico da Ammetra.