“‘É preciso uma aldeia inteira para educar uma criança’, dizem. Até que essa criança tenha necessidades especiais. Esse é o limite desse provérbio africano." A frase dita pela ativista e escritora Lau Patrón dá início a sua palestra no Ted Talk sobre "A solidão das mães especiais", com base em sua experiência sendo mãe de João, diagnosticado com a síndrome hemolítica urêmica atípica (SHUa), uma doença rara que provoca falhas no sistema imunológico.
Lau não está só. Juntas estão Jamile, Raissa e Rosilene, mães atípicas de filhos com síndromes raras e que abriram mão de suas carreiras, bem-estar e identidade. "Você deixa o seu nome e a sua identidade para se chamar 'mãe", explica Jamile Marcelina, de 39 anos, que vivencia a maternidade desde a gestação de Samuel, de 17, diagnosticado, em abril deste ano, com a síndrome Allan-Herndon-Dudley.
Rosilene Gonçalves, de 38, também demorou para receber a confirmação da doença rara do filho Ravi, de 5, diagnosticado, apenas este ano, com a síndrome de Noonan. A moradora de Ribeirão das Neves diz ter chorado de alívio ao receber o laudo, pois agora pode entender melhor a condição genética de seu filho, bem como o melhor tratamento.
Contudo, ela ressalta que a demora para receber o diagnóstico deve-se à falta de preparo do sistema público de saúde para acolher e orientar os pais e mães de raros, além da falta de profissionais especializados. "Estou esperando ter fonoaudióloga no posto de saúde, mas até hoje nada."
O diagnóstico tardio é apenas uma parte da jornada vivida por elas, pois há também a descrença dos especialistas e da família. É o caso de Jamile, também mãe de Joaquim, de três anos, e Aurora, de seis, diagnosticados com a síndrome. A doença não manifestou na menina - a doença manifesta-se apenas no sexo masculino.
"Associavam os sintomas do Samuel ao parto prematuro e os do Joaquim ao parto humanizado. Além de me acusarem de inventar uma doença nos meus filhos", relembra Jamile, que tem o apoio do marido, mas que abdicou de seu trabalho para cuidar integralmente dos três filhos.
Com Raissa de Fátima, de 24 anos, foi o contrário. Ela não abriu mão do trabalho; foi demitida ainda durante a licença-maternidade. "Eu era recepcionista em uma oficina mecânica, nem esperaram acabar o prazo e já me mandaram embora", revela a mãe de Dominick, de três anos, que tem hidrocefalia hipóxico-isquêmica e epilepsia grave. "Após o parto complicado, ninguém falava o que estava acontecendo, depois as médicas intensivas falavam que a vida dele seria difícil. Esse primeiro momento foi assustador, deu medo de perdê-lo, de não dar conta."
DESAMPARO
A notícia do diagnóstico nem sempre vem acompanhada de boas palavras, acolhimento e apoio - a solidão, desde então, se torna presente. Quando perguntadas sobre a rede de apoio de cada uma, todas responderam que não têm suporte familiar para compartilhar os cuidados dos filhos, muito menos de tantas outras responsabilidades. Jamile, porém, é exceção; diz ter uma rede de apoio para "cuidar e tomar conta quando preciso, mas é para a Aurora, a única que não tem a síndrome manifestada".
O fato de parentes próximos apresentarem rejeição ou medo do desconhecido sensibiliza não só as crianças, mas as mães que, diante do afastamento, se veem sozinhas na tarefa de realizar exames frequentes e terapias ocupacionais. Rosilene pega três ônibus para levar Ravi às consultas e três ônibus para voltar, sendo que "ele tem fraqueza e fica muito cansado, então tenho que levá-lo no colo e carregar a mochila". Além da sobrecarga, ela conta que teve ocasiões em que, devido à falta de alguém para levá-lo à fisioterapia, teve que desmarcar o dentista para resolver um problema nos dentes.
Para além da falta de ajuda, Jamile diz que o problema soma-se às opiniões alheias: "Seu filho é um problema, um fardo de outras vidas e que você tem que pagar nesta", recorda.
Os relatos das mães vão na contramão do conceito de vitimismo, mas elas também refutam abordagens romantizadas, como a ideia de que "toda mulher é guerreira, forte e destemida". Elas não veem outra forma a não ser amar incondicionalmente seus filhos e darem o melhor possível - ainda que seja a custo de suas próprias vidas.
Leia também: Acessibilidade inacessível: saiba por que PCDs ainda lutam por espaço
A sobrecarga de atividades é outro desafio com o qual elas precisam conviver. Ainda que elas tenham companheiros, são eles que saem para trabalhar fora, enquanto elas cuidam dos filhos, das tarefas domésticas, das consultas e de outros familiares, como é o caso de Rosilene, que mora ao lado da mãe - no momento fragilizada. A "escolha" delas não permite um dia de salão, uma saída com amigos, uma distração ou um autocuidado.
Hoje, as três mulheres fazem acompanhamento psicológico, mas comentam que não há um suporte e apoio que seja acessível pelo SUS, ainda que ele seja de extrema importância para acessar alguns medicamentos e especialidades para o tratamento dos filhos.
CASA DE MARIA
Ainda que o SUS tenha seus benefícios, é um consenso para as três mães que avanços precisam ser implementados. Jamile, por exemplo, precisou acionar a Justiça para ter acesso a um composto do canabidiol para controlar as convulsões de Samuel. Para além do âmbito jurídico, ela conseguiu apoio emocional na Casa de Maria - a casa dos raros, no Bairro Belvedere, em BH.
É a primeira casa de acolhimento para pessoas raras no Brasil e tem como objetivo promover mais qualidade de vida e inclusão social para essa parcela da sociedade. Um dos idealizadores da casa, Marcelo Aro, secretário de Estado da Casa Civil de Minas Gerais, relembra que a ideia surgiu ao visitar fundações nos Estados Unidos e em Portugal a fim de buscar mais informações sobre a síndrome Cornélia de Lange, doença rara diagnosticada em sua filha Maria. “Retornei ao Brasil com sede de transformação. Queria que mais famílias pudessem ter acesso ao que eu e a mãe da Maria tivemos em nossas experiências fora do país.”
O espaço fornece assistência social, jurídica, nutrição, fonoaudiologia, fisioterapia, entre outras especialidades, não só para as crianças, mas também à família. “Então além das oficinas terapêuticas para os raros, temos o trabalho social com os pais e mães”, informa Aro durante entrevista para o programa EM Minas, da TV Alterosa, Estado de Minas e Portal Uai. “Cerca de 90% das famílias com doentes raros é composta por pais que saíram de casa, ou seja, as mães solos ficam com os cuidados. Neste caso, a Casa de Maria se propõe a ajudar e a integrar essas mães no mercado de trabalho”.
Foi neste ambiente que Jamile, Raissa e Rosilene conseguiram atividades que visam um estímulo psicomotor, onde os cuidados vão além dos paliativos. Um ambiente de socialização, onde uma minoria gigantesca interage para compartilhar suas experiências, e tira dúvidas sem julgamentos.
* Estagiária sob supervisão da editora Ellen Cristie
Guerreiras e sobrecarregadas
"Diante de tantos desafios, a mulher se sente bloqueada na sua vida pessoal e individual. Pois não há como se afastar do binômio mãe e filho. Uma parte dela pode sim ficar frustrada de não ter um espaço para cuidar de si mesma e desenvolver os seus projetos, sua autonomia - sendo desafiador e muito comum que pessoas com essa sobrecarga desenvolvam depressão, ansiedade, transtorno de estresse pós-traumático", analisa a coordenadora de psiquiatria do Hospital Mater Dei, Flávia Massote.