Olívia Rodrigues em dois momentos: no
trabalho e com as filhas Jaqueline,
Giovana e Luíza e o neto Arthur.

Olívia Rodrigues em dois momentos: no trabalho e com as filhas Jaqueline, Giovana e Luíza e o neto Arthur. "Se fizesse a redação do Enem, tiraria nota 1.000"

crédito: fotos: Jair Amaral/EM/D.A Press

Olívia aprendeu a conjugar o verbo cuidar ainda bem novinha. De uma família de 10 filhos, ajudava a mãe a “olhar” os irmãos mais novos, lavava vasilhas, passava roupa e tratava das galinhas, enquanto aprendia a arrumar a casa e a cozinhar. Adolescente, começou a trabalhar em casas de família. Hoje, aos 42 anos, divide seu tempo entre o serviço de trabalhadora doméstica e a atenção a três dos quatro filhos que vivem com ela. “Se eu fizesse a redação do Enem, tiraria nota 1.000”, diz, com bom humor, a moradora de Santa Luzia, na Grande BH, sobre o tema proposto neste ano no Exame Nacional do Ensino Médio: “Desafios para enfrentamento da invisibilidade do trabalho de cuidado realizado pela mulher no Brasil”.


Superadas as provas da segunda etapa do Enem, no fim de semana, milhares de estudantes entram em compasso de espera pelo resultado, enquanto Olívia Rodrigues de Oliveira nutre outra expectativa, que exige mais paciência: o momento de ver a filha caçula, Luíza, de 6, e o neto, Arthur, de 7, ingressando na universidade. “Quero que tenham as oportunidades que não tive. O maior desafio na minha vida foi cuidar dos filhos dos outros e deixar os meus em casa. Foi pura necessidade, mas fico feliz de poder cuidar da minha família. Vale todo o esforço, pois depois do serviço, tem o segundo tempo: o de dona de casa.”


A invisibilidade citada no tema da redação já foi sentida muitas vezes por Olívia, mãe de Jaqueline, de 26, casada, João Vitor, de 25, Giovana, de 18, e Luíza. “Muita gente pensa que a roupa passada, o banheiro limpo, o chão varrido e a comida pronta caem do céu. O mundo está mudando, tem muito homem dividindo as tarefas domésticas, mas, no geral, ainda é a mulher quem faz praticamente tudo. Tenho sorte, pois na penúltima casa em que trabalhei e na que estou agora sou bem tratada, mas nem todos os patrões reconhecem nosso serviço”, conta. Ao lado, Jaqueline, mãe de Arthur, dá seu testemunho e conta que nunca faltaram atenção e carinho, mesmo com a vida corrida de Olívia.

Apagadas no dia a dia


No Brasil, conforme o Censo 2022 recém-divulgado pelo IBGE, há 104,5 milhões de mulheres (51,5% da população), número superior em 6 milhões ao de homens, totalizando 203 milhões de habitantes. Já conforme a Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios (Pnad) Contínua Trimestral, em Minas, havia 648 mil trabalhadores domésticos no segundo trimestre de 2023, parte dos 5,8 milhões no país. Desse total nacional, a maioria esmagadora é formada por mulheres (5,3 milhões).


Entre as mineiras desse grupo está a diarista Silvana Luna de Carvalho, residente em Lagoa Santa, também na Grande BH, encarregada da faxina em muitas casas na sua região e na capital. “Mesmo nesse universo tão grande, nós, trabalhadores domésticos, ainda nos sentimos apagados. E eu já senti isso na pele e no coração”, diz Silvana, que tem quatro filhos: Suellen, de 25, casada, Caio, de 21, Júnior, de 17, e Matheus, de 14.


Em décadas de vida profissional, Silvana, que cursou até o ensino médio, foi babá, instalou películas em vidros de veículos e residências e trabalhou no setor de recursos humanos e como auxiliar de escritório. “No tempo de babá, me sentia invisível, desconsiderada. A patroa fazia questão de não me ver. Na verdade, não me enxergava como indivíduo. Isso, querendo ou não, deixa a gente abalada emocionalmente”, observa.
De outro exemplo dessa invisibilidade, ela se recorda bem. Não se esquece, porque marcou. Ao ir com a patroa a um shopping, empurrando o carrinho do bebê, viu que a mulher não gostou quando alguém lhe perguntou se as duas eram irmãs. “De imediato, ela parou numa loja e comprou um uniforme, maior até do que o meu número, e me obrigou a vesti-lo por cima da roupa. Era como se estivesse colocando uma capa para me esconder. Eu me senti a pior das criaturas.”


Os desafios, no cotidiano, são frequentes, e Silvana está certa de que esse “cuidado” que a mulher recebe como uma espécie de missão é herança de outros tempos. “Todo trabalho é digno, ainda mais quando envolve afeto, carinho. Nossa função, a de cuidar, é importante na sociedade, pois alguém precisa olhar o bebê, arrumar a casa, fazer a limpeza. Então, que haja respeito, valorização”, destaca. Para facilitar sua vida, os três filhos já sabem cuidar da casa. “A única coisa que faço, hoje, é lavar a roupa.”


Educação para dividir tarefas

Somente com a “educação pela igualdade de direitos”, incluindo tarefas domésticas compartilhadas entre homens e mulheres, será possível vencer os desafios da invisibilidade do trabalho feminino de cuidado, “pois, no Brasil, não se enxerga o trabalho de quem cuida”, afirma a advogada Isabel Araújo Rodrigues, especialista em direito das mulheres, presidente da Comissão de Enfrentamento à Violência Doméstica da Ordem dos Advogados do Brasil (OAB-MG) e integrante do movimento feminista “Quem ama não mata”, criado em BH em 1980.


Historicamente, explica a advogada, a mulher é criada e educada, desde criança, para os cuidados de casa. Tanto que ganham de presente “panelinhas, bebezinhos, casinhas”, enquanto os meninos, “bola, skate, carrinho, para brincar lá fora, na rua”. Assim, “as mulheres são instruídas, na sociedade patriarcal, para desempenhar um determinado papel, porque o cuidado é um serviço que não vai gerar custos para os homens”.


O resultado do dito popular “amor não custa dinheiro” leva a prejuízos para as mulheres, pois, na verdade, “não gera qualquer encargo para os homens”. O efeito natural, portanto, é considerar “o trabalho de babás, empregadas domésticas, cuidadoras de idosos e das próprias donas de casa como subemprego, sempre relegado à informalidade”. O cenário ocorre permanentemente, com jovens e adultas sujeitas à baixa remuneração e desvalorização das atividades desempenhadas.


Outro ponto destacado pela advogada está na necessidade de maior compromisso dos homens. “Eles precisam ser responsabilizados, pois, na maioria dos casos, se limitam ao papel de provedores, de quem chega à noite em casa, liga a televisão e acha que já cumpriu sua função. Não pode ser negligente com a família; deve, sim, compartilhar os deveres, estar ligado à educação dos filhos.”