A professora Telma Borges, da Faculdade de Educação da Universidade Federal de Minas Gerais (FAE/UFMG), considera “muito interessante” o tema da redação do Enem deste ano, sobre a invisibilidade do trabalho de cuidar, atribuído às mulheres, “pela possibilidade de se dar visibilidade a pessoas por tanto tempo silenciadas”. A situação de invisibilidade, diz a professora, decorre da estrutura social, das políticas culturais e de um projeto de sociedade, existentes no país, que calam vozes: “Mulheres, indígenas, camponeses não falam”.
O tema da redação traz impacto coletivo, afirma Telma, principalmente por “incomodar” certa camada da população que se recusa a tratar de assunto tão relevante para a sociedade. “É fundamental a valorização do serviço feito pela empregada doméstica, pela faxineira e por outras mulheres. Todos devem ser vistos, considerados. Todos os que cruzam meu caminho merecem ser vistos”, afirma, com conhecimento de causa.
Antes de ingressar na graduação na Faculdade de Letras, fazer mestrado e doutorado e ser professora da FAE/UFMG, Telma foi trabalhadora doméstica. “Senti bem essa invisibilidade, ainda mais por ser negra”, diz a professora, citando uma passagem nessa trajetória. “Certa vez, enquanto fazia as unhas, a patroa fez questão de demonstrar que nós duas, a manicure e eu, a estávamos incomodando.”
Ciente de que todo ser humano merece ser respeitado, a educadora espera que, um dia, todas as diferenças, incluindo as de gênero e étnicas, sejam superadas em benefício do progresso da sociedade.
Uma vida dedicada a cuidar de outras
“Já cuidei de muitas pessoas na minha vida, graças a Deus. Do meu marido, quando ficou doente, do meu sogro, da minha sogra, do meu cunhado. Cuidar exige responsabilidade. Requer paciência, amor, sensibilidade, sabedoria e determinação para tomar providências a qualquer momento”, avalia Eva Maria da Silva Domingos, de 66.
Restrita às atividades do lar durante mais de 30 anos – “em casa, a gente trabalha nas 24 horas do dia”, observa Eva –, foi somente após a morte do marido, em 2011, que a moradora de Santa Luzia decidiu trabalhar fora. “Inicialmente, fui cuidadora de idosos. Mas o problema é ficar tão ligada às pessoas, que a gente sofre demais quando elas morrem”, diz ela, certa de que, além de valorização, a atividade precisa ser compreendida como um ofício de homens e mulheres.
“Se desde pequenas as crianças fossem educadas para um novo mundo, em que a questão de gênero não seja diferença, mas símbolo de união, já poderíamos ter vencido o desafio da invisibilidade. Todos nós, homens e mulheres, podemos e sabemos conjugar o verbo cuidar”, garante Eva, abraçada à neta Ana Clara, de 8 anos, que fica em sua companhia durante a ausência dos pais.
Divisão do trabalho é internalizada
Especialista em análise do discurso, a professora Míria Gomes de Oliveira, titular da FAE/UFMG, afirma que, diferentemente dos homens, as mulheres têm uma percepção, desde cedo, das tarefas domésticas. Não porque queiram, mas pela imposição social. “Existe uma divisão de gênero na organização social do trabalho, determinada desde os primeiros anos, no meio em que os meninos e as meninas crescem. Às meninas, cabem certas tarefas domésticas e de cuidado com o outro. Isso não é dito, mas ‘internalizado’. Infelizmente, o homem não é educado nem para cuidar dele mesmo.”
Na vida urbana, diz Míria, é preciso entender que o cuidado faz parte do amor. “Quem ama, cuida das necessidades físicas e emocionais do ser amado. As crianças aprendem que o pai não deve se meter no serviço doméstico. E por quê? Por que é uma tarefa tida como feminina? Todos devem fazer sua parte, a fim de fortalecer, e não esvaziar, as relações humanas”, considera.
Herança do passado, reflexo no presente
A trajetória de Olívia, Silvana, Eva e tantas outras brasileiras tem raízes no passado, com a herança sociocultural vinda dos tempos do Brasil colonial, e no presente, com a falta de regulamentação da legislação trabalhista. “Trata-se de uma questão histórica, que afeta todos os trabalhadores (homens e mulheres) domésticos, com entraves na atualidade”, avalia o cearense Emerson Brito, formado em finanças na Universidade Federal do Ceará (UFCE) e residente em Belo Horizonte.
Autor de “O trabalho doméstico no país: uma análise da relação entre a regulamentação e a informalidade a partir dos dados da Pnad Contínua Trimestral”, como conclusão do curso na UFCE, Emerson explica que a situação de “invisibilidade” decorre, em grande parte, da burocratização das leis trabalhistas, que, por não serem divulgadas nem muito claras, fazem com que os trabalhadores abdiquem dos seus direitos, e os empregadores não cumpram seus deveres.
“É um assunto complexo, com adversidades que podem levar à extinção desse tipo de serviço, a exemplo do de empregadas domésticas. Sem ampla divulgação do processo de regulamentação da atividade, as pessoas buscam sobrevivência na informalidade. Além disso, a facilidade de acesso ao ensino e à escolarização tem sido o caminho usado pelas pessoas para contornar a necessidade de trabalhar no setor. É necessário que haja maior maior divulgação para esclarecimento de ambos os lados, empregado e empregador.”
Em resumo, alerta, a regulamentação eleva os custos tanto para o empregado quanto para o empregador, por isso estimula a informalidade. Uma dificuldade a mais para quem vive de cuidar e nem sempre é reconhecido por isso.
Ministério avalia política específica
O debate e a repercussão do tema relativo à invisibilidade do trabalho de cuidado realizado pela mulher no Brasil pode elevar os direitos de quem cuida a um novo patamar. A secretária nacional de Cuidados e Família, Laís Abramo, do Ministério do Desenvolvimento e Assistência Social, Família e Combate à Fome, informa que a função de quem cuida deverá ganhar uma política própria em 2024, com um marco normativo para reconhecer direitos.