O caso de violência doméstica sofrido pela apresentadora Ana Hickmann estimulou o crescimento do debate sobre o tema. Em 11 de novembro, Hickmann registrou um boletim de ocorrência contra o marido, o empresário Alexandre Correa, que teria fechado a porta da cozinha prendendo seu braço e ameaçado dar uma cabeçada nela. Ao conseguir se trancar em um cômodo da casa da família em Itu, no interior de São Paulo, a ex-modelo ligou para o 190, que é destinado ao atendimento da população nas situações de urgências policiais.
“Ele queria pular a janela. Eu peguei o celular e liguei no 190. Foram três toques. Ainda bem que existe o 190, se não ele teria pulado a janela e eu não sei o que teria acontecido”, contou durante a primeira entrevista que concedeu após o caso, que foi ao ar no domingo passado, no programa “Domingo espetacular”, na Record.
O fato envolvendo a famosa chama a atenção por sua exposição na mídia, mas faz parte de uma estatística preocupante. Nos últimos anos, Belo Horizonte tem presenciado uma escalada nos casos de violência contra a mulher. Segundo dados da Secretaria de Estado de Justiça e Segurança Pública (Sejusp), as notificações de violência doméstica e familiar contra a mulher foram de 5.495, entre janeiro e abril de 2022, para 6.131 em 2023, representando um aumento de 11,57%.
O levantamento também revela que o número total de registros na capital mineira no último ano foi de 16.721, e mesmo demonstrando uma diminuição de 3,69% quando comparado à 2021, continua alto. Diante de um quadro de tantas ocorrências, a cidade, com seus 332 km² de extensão e 487 bairros, possui apenas uma Delegacia Especializadas de Atendimento à Mulher (Deam) com atendimento 24h – que também é a única do estado, dentre as 69.
AINDA SÓ NO PAPEL
As Deams são unidades específicas destinadas a ajudar mulheres que enfrentam violência e estão sob a gestão da Polícia Civil. Em abril deste ano, o presidente Luiz Inácio Lula da Silva (PT) sancionou uma lei que determina que essas delegacias devem funcionar 24 horas, incluindo fins de semana e feriados. O texto também define que o atendimento ocorra em sala reservada e, preferencialmente, por policiais do sexo feminino.
A legislação estipula que os estados têm permissão para usar os recursos do Fundo Nacional de Segurança Pública na criação de Deams, desde que sigam as diretrizes técnicas estabelecidas pelo Executivo. No entanto, a medida não avançou em Minas Gerais, que, dentre os três estados mais populosos do Brasil, é o único que possui apenas uma Deam 24h – localizada na Avenida Barbacena, 288, no Bairro Barro Preto, na Região Centro-Sul. São Paulo possui 11 em horário integral, e o Rio de Janeiro, 14 – que também representa o número total de delegacias desse tipo naquele estado.
A chefe da Divisão Especializada em Atendimento à Mulher, à Pessoa com Deficiência, ao Idoso e Vítimas de Intolerância (Demid), delegada Danubia Quadros, diz que a falta de mais delegacias se deve à defasagem de “recursos humanos necessários”, pelo atendimento ser realizado de forma presencial.
A Polícia Civil do Estado de Minas Gerais (PCMG) afirma ter iniciado um estudo para “mensurar adaptações necessárias visando o funcionamento ininterrupto de todas as Deams”. Mas medidas concretas ainda não foram tomadas. A instituição destaca que as ocorrências de violência doméstica contra a mulher fora do horário de expediente são encaminhadas para as delegacias de plantão.
Situações como ameaças, lesões, agressões físicas e desrespeito às medidas protetivas podem ser reportadas através da Delegacia Virtual, onde é possível gerar de forma on-line registros. Outra alternativa é entrar em contato com Central de Atendimento à Mulher – Ligue 180 –, que oferece suporte especializado às mulheres que sofrem violência, escutando, registrando e encaminhando as ocorrências. Assim como Ana Hickmann, a denúncia também pode ser feita pelo Disque 190.
A IMPORTÂNCIA DO ESPAÇO
Marlise Matos, professora associada do departamento de Ciência Política da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG), coordenadora do Núcleo de Pesquisa Sobre a Mulher (Nepem) e do Centro de Interesse Feminista e de Gênero (CIFG), reforça a importância das unidades especializadas. “A Deam é um equipamento público fundamental e uma conquista das mulheres nas políticas de enfrentamento à violência. A necessidade de uma delegacia especializada tem a ver com a forma bastante preconceituosa e enviesada da ausência de reconhecimento da violência que era cometida ‘entre quatro paredes’ contra as mulheres. Elas chegavam às delegacias comuns para prestar queixa e eram desconsideradas”, aponta.
Sobre as unidades 24h, Marlise observa: “Não é incomum que os casos de violência aconteçam no período da noite, quando os maridos ou companheiros, que geralmente são os agressores, chegam em casa. As delegacias ficando abertas nesse horário ou integralmente, com certeza facilitaria a vida das mulheres.”
6.131 ocorrências foram registradas em Minas de janeiro a abril deste ano
*Estagiária sob a supervisão da editora Crislaine Neves