Fé, cultura, história e muitas orações pela alma dos escravizados, alforriados negros, africanos e brasileiros, nascidos livres. Na tarde desta quinta-feira (2), moradores e visitantes participaram em Santa Luzia, na Região Metropolitana de Belo Horizonte, de uma missa no Cemitério dos Escravizados, distante 7 quilômetros do Centro Histórico da tricentenária cidade. À frente, o padre Onofre Agatão Ferreira Júnior, com organização da Pastoral Afro-brasileira, da Comunidade Quilombola de Pinhões e do Movimento Salve Santa Luzia.



A celebração começou às 16h, no Cemitério dos Escravos (nome oficial), tombado há 15 anos pelo município de Santa Luzia, e localizado em uma propriedade particular, na antiga Sesmaria das Bicas, conforme pesquisa da historiadora Neise Mendes Duarte. O padre Onofre destacou a importância da celebração que uniu todos pela fé e pela Igreja “celeste e terrena”.

Logo no início, um grupo de moradores entrou com a imagem de Nossa Senhora Aparecida em direção ao altar, montado perto da antiga cruz do cemitério, onde são mantidos os terços colocados pelos visitantes e, desta vez, oferendas (alimentos) foram dispostas em vasilhas de cerâmicas. Em seguida, foram colados na cruz os nomes de escravizados que viveram na região, nos séculos 18 e 19.

“Nosso objetivo é pedir o tombamento federal do cemitério, pois é um local internacional, já que foram sepultados aqui brasileiros e africanos”, informou o doutorando em ciências sociais na PUC Minas, Glaucon Durães, da Pastoral Afro-brasileira da Paróquia Bom Jesus e Nossa Senhora Aparecida, de Santa Luzia. Presente, o secretário Municipal de Cultura e Turismo, Cassiano Boldori, explicou serem necessárias definições sobre o espaço para maior proteção, estratégias de gestão e políticas públicas.

Bênção

Moradora da localidade do Fecho, Eliza dos Santos Miguel, de 84 anos, ficou feliz ao ver mantida a tradição. “Venho aqui desde criança...meu pai, João Inácio dos Santos, sempre me trazia”. Ao lado, a irmã dela, Ilda Pinto dos Santos, ministra da Eucaristia, destacou que nascer e crescer na região significa uma bênção.

Participando ativamente da celebração, Conceição Nunes, conhecida com Preta, do Bairro Asteca, no distrito de São Benedito, se emocionou. “Estar aqui neste lugar é reverenciar a memória dos meus antepassados. Cresci ouvindo histórias passadas em Taquaraçu de Baixo (localidade em Santa Luzia) e Jaboticatubas. Esta celebração, portanto, vai além da cultura, da política...representa a ancestralidade”, contou Conceição, que faz parte da Pastoral Afro-brasileira Raízes Negras.

História

De acordo com pesquisa da historiadora Neise Mendes Duarte, o bem cultural denominado Cemitério dos Escravos fica na área da antiga Sesmaria das Bicas. Ela registrou em seus estudos: “A paisagem é predominantemente rural, com poucas edificações dispersas nos terrenos, onde se desenvolvem atividades agrícolas ou de criação de animais. Predomina a vegetação rasteira, destinada à pastagem de animais, com alguns trechos de mata preservada. O Cemitério dos Escravos é contornado por muro de pedras, em junta seca e formato quadrangular com aproximadamente 90 centímetros de largura e 1,10 metro de altura”.

E mais: “Internamente, não há lápides ou túmulos, como nos cemitérios convencionais, mas apenas um cruzeiro em madeira e um caminho cimentado que se estende do portão a esta cruz”.

Dada sua relevância histórica e cultural, o cemitério foi tombado pelo município de Santa Luzia, por meio do Decreto nº 2.132 de 03 de novembro de 2008. O dossiê de tombamento do bem cultural foi apresentado ao Instituto Estadual do Patrimônio Histórico e Artístico de Minas Gerais (Iepha), tendo sido elaborado a partir de fontes bibliográficas, produzidas por autores locais, descendentes dos antigos proprietários das terras, e de fontes orais.

Neise explica que não foram apresentados registros documentais que comprovassem a ocorrência de sepultamentos no local. “Além disso, a divergência numérica em relação aos sepultados era imensa. Segundo o dossiê de tombamento, teriam ocorrido cerca de 300 sepultamentos no local. Fontes bibliográficas, também fundamentadas em informações orais, trazem um número bem mais modesto, afirmando que mais de 30 escravos ou filhos de escravos haviam sido sepultados no referido cemitério.”

Memória 

Em seu livro “Minha terra e sua história, A história de minha terra”, o luziense Álvaro Diniz relata que a celebração ocorre desde a década de 1980, por iniciativa de sua mãe, dona Judith Belém Diniz (1902-1992). Percebendo o estado de abandono em que o cemitério se encontrava, em 1987, dona Judith solicitou ao então prefeito local, Rui Avelar de Souza, a execução de obras para recuperação do espaço considerado sagrado pela família. “Minha mãe falava da relevância deste lugar, onde estavam sepultados os escravizados”, conta Álvaro.

Atendendo à solicitação, o prefeito enviou uma equipe de trabalho ao local que fez a reconstrução do muro de pedras, a reestruturação do cruzeiro central e a construção da passarela de cimento. “Este espaço é muito importante para nossa família, por isso cuidamos dele e mantemos a tradição de celebração da missa em 2 de novembro, com foi iniciado pela minha mãe”, disse Álvaro, cujo pai, Álvaro Moreno Diniz, conhecido como Nhô Álvaro, era proprietário das terras onde fica o Cemitério dos Escravos.

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