Quem conhece São João del-Rei, no Campo das Vertentes, talvez já tenha ouvido falar desse caso um tanto quanto curioso. Essa é a história de um sino que assassinou o próprio sineiro na cidade histórica mineira onde a tradição dos sinos é levada muito a sério. E a origem dessa investigação criminal teria ocorrido em uma das mais importantes tradições da “Cidade onde os sinos falam”.

 

Há mais de um século, um sino, que seria o maior e mais potente da cidade na época, calou-se durante as celebrações da Procissão de Passos. A população descobriu depois que o motivo seria a morte do sineiro, que morreu esmagado. A partir deste ponto, a história vira lenda e ganha vida própria, com versões cada vez mais mirabolantes.

O sino assassino recebeu o apelido de Jerônimo. Mas, afinal, quem foi e o que fez de tão abominável o acusado? A lenda conta que durante uma dessas procissões de Passos, quando ocorre a batalha dos sinos, que disputam a força de seus badalos, era esperada a vitória do potente Jerônimo. Porém, nesse fatídico domingo, quando a batalha estava em seu auge, o sino emudeceu.



Os casos contam que João Pilão, o sineiro da época, teria exagerado na bebida e ido ao encontro de Jerônimo completamente embriagado. No entusiasmo do álcool, João se esqueceu da braveza do sino e foi esmagado contra a parede da torre, segundo a lenda. Há quem acrescente à história uma garrafa de cachaça que teria sido encontrada no local do crime.

O julgamento de Jerônimo

Ainda assim, apesar da negligência de Pilão, a sina de Jerônimo foi inevitável: foi amarrado e enfrentou um julgamento que o condenou a 10 anos de prisão no Arsenal de Guerra do Rio de Janeiro. Vale lembrar que não há nenhum registro oficial de um julgamento assim em São João. Porém, a história ganhou seu tom folclórico. Considerado maldito, o sino assassino de São João del-Rei teria cumprido sua pena e, então, foi refundido e batisado novamente, com um novo nome.

O sino da Igreja São Francisco de Assis tem uma trajetória de várias refundições

Ana Beatriz Fonte/Esp.EM

Tradição e patrimônio

Como no caso de Jerônimo, os sinos são-joanenses têm nome próprio e, assim como as pessoas, eles também são batizados e ganham um registro de nascimento. E isso vai além: esses gigantes de bronze, que chegam a pesar mais de uma tonelada, são usados para enviar mensagens.
Quase como “gazetas sonoras”, eles avisam as pessoas da cidade sobre os eventos do ano católico, chamam para missas ou informam se alguém morreu e, até mesmo, se esse alguém era um homem, uma mulher ou uma criança.

A linguagem dos sinos de Minas Gerais é considerada patrimônio nacional pelo Iphan desde 2009 e São João del-Rei foi referência nesse reconhecimento oficial. Assim, a cidade preserva seus sinos sob cuidados atenciosos, uma vez que qualquer rachadura é capaz de modificar a qualidade dos toques.

A linguagem dos sinos de Minas Gerais é considerada patrimônio nacional pelo Iphan

Ana Beatriz Fonte/Esp.EM

Fato ou fake?

Como um bom conto que passeou de boca em boca em Minas, a história de Jerônimo é um produto de muitas versões e que torna sua veracidade improvável. A versão contada neste episódio do Sabia Não, Uai! é a mais conhecida e se consolidou a partir de uma reportagem publicada em 1969 pelo ‘O Jornal’, do Rio de Janeiro.

Nesse registro, a história é contada pelo olhar de José Maria Apolinário, um sineiro da década de 60 que se apresenta como amigo de Jerônimo.

O pesquisador André Dangelo, idealizador do Museu dos Sinos em São João, diz que a morte do sineiro de fato ocorreu e remete ao fim da década de 1920, mas ressalta que não existem registros oficiais de qualquer tipo de condenação do sino. Sino este que, provavelmente, nem mesmo se chamava Jerônimo.
André, que é são-joanense e especialista em campanologia (estudo científico e musical dos sinos), conta que a curiosidade de quem visita a cidade ajuda a manter essa história viva. “O turista vive muito mais da lenda do que do fato”, comenta.

Renascimento nas forjas

Ele explica que, na realidade, o sino da Igreja São Francisco de Assis (cenário da lenda) também possui uma trajetória complicada. Fundido em 1830, ele rachou e foi refundido diversas vezes. Esse fato traz ainda uma nova teoria na história: André acredita que talvez João Pilão nem estivesse tão embriagado e que um outro fator tenha colaborado com sua fatalidade.

Sendo o mais velho sino da Igreja, “Jerônimo”, na verdade, sempre carregou o nome de “São Francisco de Assis” e, após uma rachadura em 1915, ele sofre uma modificação marcante. Refundido, o sino é erguido à torre em 1918, porém, em um tamanho maior.

Em um dos dois anos seguintes, quando acredita-se passar o episódio do crime, João Pilão pode ter sido vítima da mudança. Com um diâmetro maior, o sino recém colocado dificultaria a passagem da cabeça do sineiro pela lateral e teria sido decisivo no desfecho da lenda.

A junção desses muitos relatos e versões resultou na narrativa de José Maria Apolinário. André Dangelo a define como “uma mistura de fatos e devaneios”. A partir dela, o caso do crime de Jerônimo extrapolou as torres de São João del-Rei e tomou forma de lenda, contada e recontada sempre com algo a se acrescentar.

 

Sabia Não, Uai!

O Sabia Não, Uai! mostra de um jeito descontraído histórias e curiosidades relacionadas à cultura mineira. A produção conta com o apoio do vasto material disponível no arquivo de imagens do Estado de Minas, formado também por edições antigas do Diário da Tarde e da revista O Cruzeiro.

O Sabia Não, Uai! foi um dos projetos brasileiros selecionados para a segunda fase do programa Acelerando Negócios Digitais, do Centro Internacional para Jornalistas (ICFJ), programa apoiado pela Meta e desenvolvido em parceria com diversas associações de mídia (Abert, Aner, ANJ, Ajor, Abraji e ABMD) com o objetivo de atender às necessidades e desafios específicos de seus diferentes modelos de negócios.

 

*Estagiária sob supervisão do editor-assistente Rafael Alves

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