Quatro prefeitos passaram pela administração de Belo Horizonte desde que foi sancionada a Lei 8.565, que prevê, entre outros pontos, multa para quem abandonar animais no município. Porém, 20 anos depois de criada a legislação, não há registro de punição para essa modalidade de maus-tratos, o que demonstra que a norma municipal não tem sido cumprida.
Mesmo assim, em 23 de outubro, a Câmara da capital aprovou em segundo turno o Projeto de Lei 545/2023, que propõe o aumento do valor da penalidade, que passaria de R$ 100 para R$ 1 mil. Nessa sexta-feira (8/12), o prefeito Fuad Noman (PSD) sancionou a Lei 11.620, que estabelece multa de R$ 1 mil para quem abandonar animais em locais públicos ou privados na capital.
O texto anterior, que vigorava desde 13 de maio de 2003, de autoria do então vereador Leonardo Mattos (PV), e sancionado pelo prefeito da época, Fernando Pimentel (PT), estabelecia entre as obrigações impostas como “responsabilidade do proprietário,” a proibição de abandonar animais em “logradouro público e privado, sob pena de multa de R$ 100”.
Autor do projeto de lei que propôs a alteração da Lei 8.565, o vereador Wanderley Porto (PDT) explica que o objetivo da mudança é, além de coibir os abandonos, indicar ao Executivo a importância da fiscalização. Para o parlamentar, o valor estipulado em 2003 estava desatualizado e, por isso, a punição era irrisória para quem cometesse o crime.
Wanderley afirma que, pela legislação atual, o valor arrecadado com as multas deve ser destinado às secretarias municipais de Saúde e de Meio Ambiente, responsáveis pela manutenção e resgate de animais em BH. No entanto, de acordo com a prefeitura da capital, em duas décadas não houve arrecadação, já que nenhuma multa foi aplicada. Segundo a administração pública, a atuação de combate ao crime está concentrada em ações educacionais.
“A atuação da PBH no combate aos maus-tratos a animais não tem se pautado pela aplicação de multa, mas em campanhas educativas e encaminhamento à Polícia Civil dos infratores pegos em flagrante. A PBH informa ainda que a Secretaria Municipal de Saúde realiza diversas campanhas e ações educativas visando conscientizar a população sobre a guarda responsável de animais, o que inclui cuidados com alimentação, higiene, vacinas, castração, esterilização e orientações”, informou a prefeitura, por meio de nota.
NÚMEROS INDICAM OUTRA REALIDADE
Os números mostram, no entanto, que as ações de conscientização não têm sido suficientes. Até o fim de outubro deste ano, 1.313 cães e 830 gatos foram resgatados pela prefeitura em situações de maus-tratos. De acordo com a administração municipal, os resgates fazem parte de 155 ocorrências atendidas no período. Os dados já representam um aumento de 36% referente a todo o ano passado, quando foram recolhidos 1.580 animais (936 cães e 644 gatos) de estimação, fruto de 131 ocorrências..
Já conforme a Secretaria de Estado de Justiça e Segurança Pública (Sejusp), de janeiro a agosto, 24 pessoas foram conduzidas à autoridade policial por maus-tratos na capital. E, assim como os números de resgates, os dados são superiores aos registrados no ano anterior quando, no mesmo período, foram feitas 16 conduções.
A prefeitura não especificou quais os tipos de maus-tratos pelo qual os animais resgatados passaram. Mas, caso todos fossem considerados como abandono, só até o fim de outubro os cofres das secretarias responsáveis teriam arrecadado R$ 214.300, com multas previstas na legislação anterior.
Se a mesma projeção for aplicada desde que a lei entrou em vigor, o valor seria milionário. Em resposta a questionamento da reportagem, a prefeitura informou dados de 2020 a 2022. A média do período é de 2.185 casos anuais. Se multas por abandono tivessem sido aplicados a todos os casos no período de duas décadas, gerariam uma arrecadação de R$ 4,37 milhões para o município.
Para o vereador Miltinho CGE (PDT), também autor do projeto de lei aprovado no início da semana, caso as multas determinadas por lei já estivessem sendo aplicadas, o número de animais abandonados na capital seria bem menor. “Por mais que a gente ache que R$ 100 é muito pouco, já é algo. Nós vamos cobrar e muito, senão nosso trabalho é jogado fora. Sabemos que a identificação é difícil, mas as pessoas que realmente forem pegas, pelo menos as que forem enquadradas, têm que ser autuadas e multadas.”
Na mesma semana da aprovação do projeto de lei, a equipe do parlamentar resgatou dois cães que estavam em situações de maus-tratos em uma casa no Aglomerado da Serra. Os animais foram encontrados em uma laje, amarrados, sem comida ou água. Imagens publicadas em redes sociais mostram os animais na área descoberta durante pancadas de chuva que atingiram a região ao longo da semana.
ESPECIALISTA CRITICA FALTA DE PUNIÇÕES
O Estado de Minas questionou a Prefeitura de Belo Horizonte sobre dados referentes às multas aplicadas desde que a lei anterior (8.565/2003) entrou em vigor. Em resposta, o Executivo afirmou que, em situações de maus-tratos como no caso do abandono, as forças de segurança são acionadas, e o infrator, se identificado, é encaminhado para a Polícia Civil.
No entanto, de acordo com o advogado especialista em direito político Paulo Studart, com a existência da legislação municipal, a infração deve ser registrada tanto na esfera criminal, quanto como infração administrativa. “Se já há uma previsão da legislação municipal nesse sentido, e é prevista uma penalidade específica, independentemente da existência do processo na polícia judicial, a prefeitura simultaneamente deveria abrir um processo de infração administrativa. É um equívoco pensar que uma punição substituirá a outra”, avalia.
O especialista também explica que as ações educativas, como as que a Prefeitura de BH informa adotar, não podem substituir as cobranças de penalidade. Quando há violação de uma lei, afirma, o cumprimento das sanções previstas é um dever do poder público.
“O motivo de se escolher atuar de maneira educativa também é improcedente. Se a lei prevê aplicação de multa, as duas medidas não se excluem. Quando houver violação da lei, o poder público deve fazer a aplicação da penalidade administrativa. O texto é muito claro e direto. A aplicação da multa não é uma escolha. Apurando o fato, a consequência legal é a aplicação da lei. Ainda que a prefeitura adote outras medidas, como ações educativas”, afirma o especialista.
CADA VEZ MAIS DENÚNCIAS
Nas redes sociais, diversos perfis são dedicados a informar às autoridades e à população sobre animais, principalmente cães e gatos, abandonados pelas ruas da capital. Um deles é o @direitoanimalmg. Diariamente, a conta publica a situação de animais que precisam ser resgatados. Na terça-feira (5/12), notificaram o caso de duas fêmeas da raça pitbull sofrendo maus-tratos, no Bairro Madre Gertrudes, Região Oeste de BH.
Atuando na proteção de animais há 15 anos, Patrícia Dutra, presidente da Sociedade Galdina Protetora dos Animais e da Natureza de Caeté, na Grande BH, afirma que a situação do abandono – não só em BH, mas em todo o estado –, seria resolvida se as administrações municipais seguissem à risca a Lei estadual 21.970, de 2016, que dispõe sobre a proteção, identificação e controle populacional de cães e gatos em Minas Gerais.
A legislação estabelece quatro pilares que, para a ativista, em pouco tempo poderiam controlar o abandono e os maus-tratos: programa de conscientização para guarda responsável, castração em massa em números adequados, prestação gratuita de socorro veterinário e controle do comércio de animais.
“Precisamos alertar o seguinte: à luz das leis, quem mais maltrata animais são os detentores de cargos públicos que não cumprem as legislações, principalmente prefeitos. Junto a eles, detentores de cargos legislativos que não cobram do Executivo o cumprimento das leis. Ações do poder público precisam ser executadas”, afirma.
Patrícia aponta que o controle populacional, por meio da castração, é primordial. No entanto, em BH, as vagas ofertadas estão muito aquém da demanda. Ela afirma que o ideal seria que a capital tivesse um centro de esterilização animal e um ponto de atendimento veterinário em cada uma das nove regionais.
“Os pilares são todos interligados. É importante ter o atendimento veterinário gratuito, mas se paralelamente não houver castração em massa, os hospitais não vão dar conta. Defensores da causa animal resgatam de 5% a 10% dos animais que precisam. O restante sofre ou morre sem socorro. As entidades e pessoas protetoras e as Ongs estão endividadas”, conclui Patrícia Dutra.
Grupo de trabalho criado por decreto
Em janeiro deste ano, por meio de decreto, a PBH criou um grupo de trabalho para reduzir a incidência de conflitos envolvendo maus-tratos e abandono de animais em espaços públicos. O Grupo Gestor de Ocorrências envolvendo Animais em Espaços Públicos tem a responsabilidade de articular e deliberar sobre ações que evitem acidentes e otimizem a fiscalização desses tipos de casos. É de competência também do grupo promover o recolhimento, transporte, atendimento médico-veterinário, abrigamento temporário e destinação de animais abandonados ou vítimas de maus-tratos.