Próximo à janela, medidor marca 38°C  no barraco de paola, enquanto ao ar livre os termômetros não passavam dos 28°C -  (crédito:  Mateus Parreiras/em/d.a press )

Próximo à janela, medidor marca 38°C no barraco de paola, enquanto ao ar livre os termômetros não passavam dos 28°C

crédito: Mateus Parreiras/em/d.a press

O asfalto na via urbana mais movimentada da Grande BH, o Anel Rodoviário de Belo Horizonte, irradiava mais de 38°C mesmo em uma tarde nublada do Bairro das Indústrias 2, no Barreiro, quando a temperatura ambiente era de 28°C, segundo o termo-hi.

Os 10°C acima do que era sentido ao ar livre se repetem na temperatura do telhado precário, de telhas de amianto, sem forro ou isolamento, do barraco onde vive a família da dona de casa Paola Costa Ribeiro, de 24 anos. A residência espremida a meio metro do acostamento da via e sob o teto escaldante registra 31°C, arrancando suor da dona de casa e dos filhos de 4 e de 7.

"Tem de sair de casa para aguentar o dia. Nos quartos, nem com ventilador a gente suporta ficar muito tempo", disse Paola. A semana que passou foi mais um sufoco para os moradores de BH. A temperatura alcançou 33,4°C na terça-feira e atingiu 30°C ontem.

A elevação das temperaturas globais experimentada nos últimos anos (1,1°C a mais em apenas 10 anos) e responsável pelas ondas de calor recorde no Brasil castiga ainda mais as populações de baixa renda, como a família de Paola, que vivem e trabalham de forma precária, sem ventilação, hidratação e abrigo adequados. Um risco grave à sua integridade orgânica e mental, de acordo com especialistas. Os impactos previstos para os próximos anos, com possível aquecimento médio do planeta se elevando a até 4°C, até 2100, já dão mostras de seus impactos pelo Brasil. As constatações são do Painel Intergovernamental sobre Mudanças do Clima (IPCC) da ONU.

A reportagem do Estado de Minas mostra em série que se inicia hoje que, se não for revertida, essa situação pode agravar a saúde das pessoas, reduzir sua expectativa de vida, produtividade, acesso a água, ampliar queimadas e reduzir a produção agrícola, entre outros desastres.

Baseando-se nos dados do IPCC, entre as capitais com os maiores aglomerados, vilas e favelas brasileiros, um aumento de 1,5°C da temperatura no mundo significaria um aquecimento de 2°C em Brasília, onde fica a maior favela brasileira, a Sol Nascente, com 32 mil domicílios, e de 1,8°C em BH.

Se a ampliação da temperatura média mundial chegar a 4°C, a da capital nacional se elevaria mais 5°C e a mineira, 4,6°C. Em novembro de 2023, a cidade de Araçuaí e seus 34 mil habitantes no Vale do Jequitinhonha experimentaram a temperatura brasileira mais alta já registrada, chegando a 44,8°C. Nos cenários mínimos e máximos do IPCC, o incremento pode ser de 1,7°C e de 4,3°C em cada cenário.

E não resta muito tempo para tomar decisões e agir. Segundo projeções do Centro Nacional de Monitoramento e Alertas de Desastres Naturais (Cemaden), há possibilidade de mais ondas de calor se alastrando pelo país até abril de 2024. "Ainda estaremos sob a atuação do fenômeno El Niño, que é o aquecimento das águas do Pacífico Central. A tendência é de elevar a temperatura em grande parte do Brasil. Os próximos meses prometem ser quentes. A elevação da temperatura global por conta do aumento das emissões de gases do efeito estufa tem contribuído para eventos mais extremos. Nos próximos anos. vamos enfrentar ondas de frio e calor mais frequentes, bem como secas e inundações mais intensas", destaca Danielle Barros Ferreira, meteorologista do Instituto Nacional de Meteorologia (Inmet).

ALTA EXPOSIÇÃO

Os impactos das ondas de calor e do aquecimento constante para as pessoas que habitam áreas de baixa renda são ainda mais drásticos, segundo o médico Luciano Prado, pesquisador do Laboratório de Fisiologia do Exercício da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG). “Nas vilas e favelas o aquecimento castiga ainda mais devido à falta de condições e recursos. As habitações são pouco ventiladas, pois ficam muito próximas umas das outras. Os tetos e paredes utilizam materiais que absorvem em vez de refletir o calor, às vezes até de metal. Praticamente não há isolamento térmico nem uma boa circulação de ar para dissipar o calor”, observa.

“A desigualdade repercute diretamente em um maior ou menor risco de morrer. Torna as pessoas mais ou menos vulneráveis a situações como o calor intenso. Um dado gritante é que a expectativa de vida de pessoas com acesso a ar-condicionado é maior do que a do restante, da esmagadora maioria do país que não tem esse acesso. Nas vilas e favelas, além de não se ter o acesso, se tem situações que pioram essas chances”, afirma o médico infectologista, especialista em medicina preventiva e social, Carlos Starling. "Precisamos de políticas públicas para mitigar as alterações climáticas e enquanto isso temos de ter um olhar mais atencioso e imediato para quem está mais exposto", disse Starling.

MORADIAS SUFOCANTES

A única forma encontrada pela dona de casa Paola Ribeiro e sua família de passar pelas ondas de calor que varreram a zona central brasileira entre agosto e novembro deste ano foi deixando sua casa com a família para o interior. “A gente não aguentava mais. Tivemos de ir para a roça. Não tinha um lugar na casa onde a gente não suava. O ventilador só soprando o bafo quente. As crianças de calcinha e de cueca não conseguiam dormir. O banho, mesmo desligado o chuveiro, era de água morna. A geladeira não conseguia resfriar e o feijão, se deixasse a panela no fogão depois de fazer, rapidinho se perdia”, conta a dona de casa. Na moradia onde vive com os filhos de 4 e 7 anos, a reportagem chegou a registrar calor 5°C superior ao do exterior, batendo 31°C.

Várias características da moradia humilde da família colaboram para o aquecimento, que beira o insuportável, apontam estudos. O teto é de amianto e muito baixo, sem forro, apoiado sobre paredes de tijolos que ficam a meio metro dos muros, não permitindo que as janelas ventilem, e à mesma distância do asfalto escaldante do Anel Rodoviário de BH. O calor parece vir de todos os lados ao mesmo tempo e basta poucos minutos no interior da habitação para que se comece a transpirar.

Uma situação que é comum em muitos aglomerados urbanos de baixa renda. De acordo com levantamento feito pelo Departamento de Saúde Ambiental, da Faculdade de Saúde Pública da Universidade de São Paulo (USP), em Paraisópolis, segunda maior comunidade paulistana, com 18.912 domicílios. "O ambiente da favela acentuou os extremos de temperatura. A ocupação do solo é fator diferenciador das temperaturas, que foram mais elevadas de dia (até 3°C) e mais baixas à noite (1°C em média)".

Uma avaliação do curso de engenharia civil da Universidade Tecnológica Federal do Paraná (UFTPR) mostra a influência de vários fatores nas construções de vilas e favelas com impacto no aumento do calor interno. “Telhas de amianto ou fibrocimento aumentam em cerca de 30% o calor das unidades habitacionais. A ventilação natural é um aspecto importante do design de uma habitação. Construção de habitações muito próximas ou com janelas que limitam a ventilação podem ampliar a temperatura interna. O sombreamento que incide de árvores ou de outras estruturas também ajuda a reduzir a temperatura, mas nem sempre é possível dada a densa ocupação das áreas”.