O sertão de Guimarães Rosa (1908-1967) não tem limite, nem medidas, nem meias verdades, muito menos um ponto final – no singular ou no plural, desafia quem se aventura a conhecê-lo, instiga os de mente fértil, abre as portas para a imaginação. “O resultado é o encantamento”, diz o fotógrafo belo-horizontino Flávio Souza Cruz, que, nos últimos dois anos, pôs o pé na estrada para retratar a região descrita pelo autor de “Grande Sertão: Veredas”, “Sagarana” e outras obras que se tornaram clássicos da literatura.
Com o firme propósito de publicar um livro e fazer um documentário, Flávio já fez 45 mil fotos em 18 viagens pelo território mineiro, com visitas a 70 localidades (18 municípios e 52 distritos). “O foco está sempre no ser humano, em pessoas de todas as gerações”, conta ele, que, no último deslocamento, registrou o senhor Caramelo, de Buenópolis, na Região Central do estado. Mesmo sob o sol inclemente desta primavera, o octogenário fez questão de vestir a capa de vaqueiro ao posar para a foto.
“É um legítimo personagem de Rosa. Fiquei impressionado e emocionado, pois lembra muito o Manuelzão”, diz Flávio. No fim da tarde, ao lado de um vaqueiro, o senhor Caramelo se sentou calmamente à beira do fogão à lenha e contou muitas histórias. Ver para crer. Ouvir para imaginar. Manuelzão foi um personagem literário criado por Guimarães Rosa e inspirado no vaqueiro Manuel Nardi (1904-1997), que morava em Andrequicé, no município de Três Marias. A convivência floresceu e se eternizou em “Manuelzão e Miguelim”, presente em “Corpo de Baile”.
Sertão adentro
Memórias, lembranças, histórias, surpresas e páginas da literatura rosiana são companheiras de viagem de Flávio Souza Cruz, de 53 anos, que segue sua rota norteado por uma frase do escritor mineiro natural de Cordisburgo: “Tudo, aliás, é a ponta de um mistério, inclusive os fatos. Ou a ausência deles. Duvida? Quando nada acontece há um milagre que não estamos vendo”.
Com 90% do material já pronto para o livro e documentário, para os quais pretende entrar com projeto para recursos de leis de incentivo, Flávio explica que a publicação impressa terá duas vertentes: “O registro fotojornalístico e documental, de caráter sociológico e investigativo sobre a vida no sertão. E o plano metafísico, os aspectos existenciais, a dualidade entre o bem e o mal, Deus e o diabo”. Na atual empreitada pelos sertões, o fotógrafo trabalha em parceria com o Circuito Guimarães Rosa, que tem sede em Curvelo.
E quando houve o despertar para esse trabalho?, pergunta o repórter. A viagem de Flávio pelos caminhos de Guimarães Rosa começou na adolescência, quando leu “Grande Sertão: Veredas”, mas ganhou corpo e alma em março de 2013, em Tiradentes, na Região do Campo das Vertentes, durante uma palestra da fotógrafa e cineasta inglesa Maureen Bisilliat, hoje com 92 anos. Unindo imagens e literatura, Maureen fez, em 1969 (dois anos após a morte do escritor), uma homenagem fotográfica no livro “A João Guimarães Rosa – Fim de rumo, terras altas, urucúia”.
“Ao final da palestra, fui falar com Maureen, e ocorreu algo inusitado. Ela me deu um abraço apertado, um abraço de vó. A partir daquele ‘momento epifânico”, senti que uma semente fora plantada. E precisava germinar”. Com a pandemia, houve mudanças de planos, e o projeto voltou firme e forte após a vacinação. “Segui um mapa feito pelo meu amigo Cláudio Leão, que me acompanhou nas primeiras incursões pelo território das Gerais. Como base, o roteiro do “Grande Sertão: Veredas” e a histórica viagem de Guimarães Rosa, em 1952, com uma comitiva de vaqueiros para conduzir uma boiada entre Três Marias e Araçaí, num total de 240 quilômetros.”
Como o sertão é cheio de mistério e o que a vida “quer da gente é coragem”, como escreveu Rosa, Flávio revela que “ouviu” um chamado do próprio autor, orientando que ele procurasse seu próprio sertão. Essa foi a guinada para, sozinho, descobrir seus caminhos e decidir por conta própria para onde seguir, quando surgissem as encruzilhadas.
“O resultado, como diria Guimarães Rosa, é encantamento. E, realmente, estou encantado com tudo o que vejo, ouço, conheço e fotografo”, afirma o belo-horizontino, que mantém contato com Maureen e já a visitou três vezes em São Paulo (SP). “Ela está ‘abençoando’ minha jornada, pois plantou em mim uma semente, que se tornou uma árvore”.