A vibração do ar sendo empurrado pela tubulação é um ruído crescente que põe em alerta a dona de casa Gleici Silva, de 41 anos. Imediatamente, ela segura um dos baldes que mantém espalhados pelo barracão de um só cômodo, onde mora com a filha de 3. Gleici sabe que o som que ouviu significa que em instantes vai jorrar água da torneira. "Olha a água chegando. Misericórdia. Vou espalhar esses baldes na casa para ver se esse o flagelo desse calor melhora", diz. O líquido chega intermitente, aos poucos, como se a torneira estivesse engasgando. Mas é o bastante para fazer a mulher sorrir, afinal, com a sua casa registrando 31,1ºC – 5ºC a mais que o ambiente exterior –, aquela água servirá para ela se molhar, para beber, regar as plantas, lavar roupa, cozinhar, banhar a si, à filha e aos gatos e ainda fazer gelo para pôr na frente do ventilador.


Gleice e sua filha moram em uma das vilas do Bairro Bela Vista, na Região Oeste de Belo Horizonte. A água que bebem vem de um “gato”, uma ligação clandestina feita por mangueira na rede da Copasa. Mas é frequente que a mangueira se parta, rache ou solte, deixando as dezenas de famílias que dependem dela sem abastecimento. "A minha sorte é que minha filha pequena não precisa passar por essa sede e o calorão todo, porque fica o dia todo na creche”, conta.


Com as temperaturas globais aumentando e trazendo efeitos como as ondas de calor extremo que castigaram os brasileiros entre setembro e novembro, ter água é fundamental para manter a saúde. Mas a estiagem e o aumento do consumo dos recursos hídricos deixam muita gente como Gleici sofrendo com sede e calor, sobretudo devido às condições precárias de sua casa em uma comunidade humilde. Só em Minas Gerais, neste ano, foram 65 episódios de desabastecimento provocados pela seca e aumento do consumo nos meses de ondas de calor, em 43 municípios, sendo 29 em setembro, sete em outubro e 29 em novembro, de acordo com dados da Copasa.


No mesmo período de 2020, ano que também registrou ondas de calor e estiagem, esse motivo resultou em apenas 13 interrupções em oito municípios. Ambientalistas indicam que a única forma de frear esses impactos é reduzir a produção industrial e queimas de combustíveis fósseis que emitem gases de efeito estufa, agravando o aquecimento.


A tendência é de agravamento da situação, com a redução das chuvas em cenários de aquecimento global, como mostra a segunda reportagem do Estado de Minas sobre a urgência de se aplacar as mudanças climáticas. Usando a modelagem do Painel Intergovernamental sobre Mudanças do Clima (IPCC) da ONU, a reportagem localizou as principais fontes de abastecimento das cinco capitais com as maiores vilas e favelas – ambientes de população mais vulnerável ao calor e falta de água (veja quadro).


Em todas elas, a redução das chuvas será realidade com o aquecimento global, piorando a disponibilidade hídrica. A reportagem utilizou um modelo de média elevação de temperaturas mundiais, de 2ºC. Há cenários de elevação média da temperatura do planeta de 1,5ºC a 4ºC, até 2100, dependendo da adoção de posturas preventivas que impeçam o aquecimento. Nos últimos 10 anos, esse aquecimento foi de 1,1ºC, aponta o IPCC.


AS MAIS CASTIGADAS

De acordo com esse modelo, a capital que será mais castigada caso a temperatura média do globo suba 2ºC será Salvador – quarta com mais vilas e favelas –, com a perda de 7,2% do volume anual de chuvas em média nas áreas de suas captações, nas barragens de Pedra do Cavalo, Pituaçu, Joanes 1 e 2 e Ipitanga 1 e 2. Considerando as chuvas da área municipal, segundo média anual dos últimos 30 anos registrada pelo Climatempo, que foi de 1.290 milímetros (mm), 90mm deixariam de cair.


Brasília é onde se concentra a maior favela do Brasil, a Sol Nascente, de 87 mil habitantes. Os impactos nas fontes de abastecimento seriam de 5,2%. Em seguida, vem o Rio, com perda de 4,1% das chuvas médias anuais, São Paulo, com redução de 3,1%, Salvador, com 7,2% e São Luís, com pequeno impacto, de 0,6% menos chuvas, segundo levantamento da reportagem junto ao IPCC.

 

Perigo na RMBH

As principais fontes de abastecimento da Região Metropolitana de Belo Horizonte também seriam fortemente impactadas com a menor oferta de chuvas. No Sistema Rio das Velhas, responsável por 60% do abastecimento da região, as principais áreas fornecedoras de água são as nascentes de Ouro Preto, o Sinclinal de Moeda (Itabirito) e o Rio Itabirito. Todos sofreriam redução de 3,8% de chuvas.
Já no sistema Paraopeba, que abastece o restante da região, os prognósticos são ainda mais graves. As fontes da represa Rio Manso (contando o Córrego São José e o Ribeirão Itatiaia), poderiam estar sujeitas a um encolhimento de 5% das chuvas que as abastecem. O mesmo percentual incidirá sobre os mananciais que formam a represa de Serra Azul (considerando o Ribeirão dos Freitas, Córrego Funil e Córrego Mosquito). O Rio Betim, que vem de Contagem e é o principal formador da represa de Vargem das Flores, seria impactado com 4,8% menor volume de chuvas.


PERDA ACELERADA

Os reservatórios que abastecem a Grande BH nunca perderam água tão depressa quanto nos meses de agosto a novembro, quando ocorreram a estiagem e as ondas de calor. De acordo com a Copasa, a perda até novembro de 2023 foi de 17,1% de seu volume de água, o mais vigoroso dos últimos quatro anos e que só foi superado por 2019 (diminuição de 18,4%) quando se tem por base o histórico desde 2017.


A Copasa informa que o nível dos reservatórios do Sistema Paraopeba, de 70,2% do volume total armazenado em 1º de dezembro é satisfatório para garantir de forma adequada e suficiente o abastecimento na Grande BH até o próximo período de estiagem. “A Companhia também monitora, de forma contínua, o crescimento dos municípios e as variáveis climáticas de forma a realizar obras pontuais que possam acompanhar essas mudanças. As obras também estão em andamento em, praticamente, toda a Grande BH”, informou a companhia de abastecimento.


SEM TETO E SEM REFRESCO

Em situação de rua, Antônio, de 52 anos, também vive dias pra lá de difíceis. Os pés rachados e cascudos do homem sobre o sapato cortado que virou sandália resistem a castigos que poucos enfrentariam. Mas mesmo os endurecidos pés tamanho 40 sobre o sapato de número 38 de Antônio não saem ilesos do calor causticante do asfalto e concreto dos pisos onde se alongam as filas que ele precisa pegar sob o sol quente para conseguir doações de comida ou marmitas no restaurante popular do Centro de BH.


“Os pés esquentam e vão cozinhando dentro do sapato. E a gente castiga, fica de pé, anda, tenta achar uma sombra. Muda de uma para a outra, mas fervem as bolhas na sola do pé. As costas e o pescoço, os braços e o ombro. Nesse calorão, tudo machuca. Chega a arder tanto que mal dá para dormir encostado. E tá assim todos os dias para quem fica na rua e não tem um teto”, desabafa.


Idosos e crianças em situação de rua integram o perfil mais exposto e suscetível às ondas de calor, de acordo com o médico infectologista Carlos Starling, que é especialista em medicina preventiva e social. “São pessoas que estão em extrema vulnerabilidade. Não têm acesso fácil a abrigo e água e, por isso, ampliam sua exposição ao sol, ao calor e podem desidratar mais facilmente”..


Na tentativa de amenizar a situação, as secretarias municipais de Assistência Social, Segurança Alimentar e Cidadania (Smasac) e de Saúde (SMSA) de Belo Horizonte distribuíram, de forma emergencial, 10 mil unidades de garrafas de água nos dias mais quentes dos últimos três meses. Por sua vez, equipes do Serviço Especializado de Abordagem Social e do Consultório na Rua fazem abordagens para informar sobre acesso a água potável, banho, higienização, alimentação, além de cuidados com a saúde durante as altas temperaturas, informa a Smasac.

 

 

Aposta no verde

O plantio de árvores para gerar respiros de sombra e resfriamento é uma das apostas para melhorar os impactos das elevações de temperatura, segundo a Secretaria Municipal de Meio Ambiente (SMMA) de Belo Horizonte (PBH). De acordo com o órgão, a alternativa passa por "projetos como as 'miniflorestas urbanas', com plantios mais adensados, para criar ilhas de biodiversidade em áreas pouco vegetadas, além de novos espaços de resfriamento”. A cidade conta, atualmente, com cinco sistemas nesse formato. Outro projeto é o Montes Verdes, dedicado a revitalizar espaços degradados. No primeiro semestre de 2023, o projeto plantou 30 mil mudas recuperando 10 hectares.

 

Os impactos da estiagem e das recentes ondas de calor, que ampliaram o consumo de água, se fizeram sentir em diversos sistemas de abastecimento mineiros. Dos 65 episódios de desabastecimento provocados por esses motivos entre agosto e novembro, segundo a Copasa, as piores situações foram registradas no município de Malacacheta, no Vale do Rio Jequitinhonha, com quatro interrupções de fornecimento que duraram 11 dias. Em seguida, outros cinco municípios experimentaram três interrupções, que duraram sete dias em Planura (Triângulo), seis dias em Paracatu (Noroeste), seis dias em Patos de Minas (Alto Paranaíba), cinco dias em Pouso Alegre (Sul) e quatro dias em Coromandel (Alto Paranaíba).


E o prognóstico de abastecimento não é bom, sobretudo para os maiores municípios dessa lista caso o aquecimento global prossiga. Usando a modelagem do Painel Intergovernamental sobre Mudanças do Clima (IPCC) da ONU, que tem cenários de 1,5°C a 4°C de aquecimento, a reportagem destacou grandes impactos nos sistemas de abastecimento municipais em um cenário mediano, de elevação de 2°C em média no planeta.


A cidade mais atingida dessa lista, que já sofre com problemas de fornecimento nas ondas de calor, seria Malacacheta, de 17.516 habitantes. As chuvas que incidem sobre a fonte de abastecimento municipal, o Córrego São João da Mata, seriam 6,9% menos intensas ao ano, segundo as projeções do IPCC. Em seguida, Paracatu, de 94.023 habitantes, e Patos de Minas, de 159.235, sofreriam uma diminuição de volume das precipitações de 5,1%. Pouso Alegre, de 152.217 habitantes, experimentaria uma diminuição de 3,8% das chuvas.


“Quem mais sofreu foi quem vive nas partes mais altas do município e também as pessoas que moram em prédios, porque quem tem casa com caixa d'água consegue ainda reservar”, disse Ana Nilce Tamamoto, responsável pela escola Instituto Educacional Infantil Abelhinha Mágica, que fica no Bairro Jardim Olímpico, em Pouso Alegre, uma das regiões afetadas pelas interrupções de abastecimento em novembro.


“Aqui na escola a gente não deixa faltar água para as crianças. Temos três caixas de mil litros e entramos em funcionamento com esquema de economia de água. Com o calor, as crianças precisam beber muita água para se hidratar, usam muito o banheiro. A gente também instalou ar-condicionado em todas as salas e a merenda acaba sendo no ambiente interno mesmo para que não sofram com o calorão”, disse Tamamoto.


A Copasa, que atende com abastecimento de água e coleta de esgoto a 635 municípios dos 853 de Minas Gerais, informou que as altas temperaturas têm impactado no abastecimento de vários lugares, como na Grande BH. “Devido aos recordes de temperatura registrados na Grande BH, em meados de novembro, o consumo de água da população aumentou em média 20%, levando a intermitências no abastecimento em algumas regiões”, disse, por meio de nota, citando as mais distantes dos sistemas produtores e as localizadas em partes mais altas.


“O abastecimento de água é realizado por bombeamento ou gravidade, e quando há um longo período de desabastecimento, a normalização ocorre primeiro nas partes mais baixas”, destaca a Copasa.


SOFRIMENTO REPETIDO

O sofrimento de quem não dispõe de água no calor gera histórias angustiantes. A água para o seu abastecimento tem sido tão rara que o catador de produtos para a reciclagem Paulo Roberto da Silva, de 60 anos, não perde tempo e assim que há fornecimento na rede ele enche logo baldes, bombonas que encontrou nas suas andanças, as máquinas de lavar roupas e até as pias. “Sem água nesse calorão a gente não consegue ficar em casa. Faço de tudo para resolver minhas coisas nas ruas e só volto para casa com o sol já muito baixo ou quase de noite. Tem vezes que ficamos dias sem água na comunidade. E quase todo mundo faz a mesma coisa. Sai o dia todo e só volta de tardinha. Os idosos, mães com os filhos. Todo mundo”, conta Paulo, que mora há 28 anos na Vila da Paz, Bairro Palmares, na Região Nordeste de Belo Horizonte. A comunidade, que chegou a ter 200 famílias, já foi quase toda desapropriada por se encontrar na área de domínio do Anel Rodoviário de Belo Horizonte. “Agora estamos pior do que quando éramos só esquecidos. Somos indesejados”, desabafa.

 

Use, não abuse

A Copasa orienta o uso consciente da água. “Mudanças simples no dia a dia podem fazer muita diferença, como por exemplo: não lavar o passeio com mangueira, fechar a torneira enquanto ensaboa a louça, fechar o chuveiro ao ensaboar o corpo durante o banho e deixar a torneira fechada enquanto escova os dentes ou faz a barba. São atitudes fáceis no dia a dia que contribuem muito para o bem-estar de toda a população”, informou.

 

 

HORA É DE AGIR


Mudar comportamentos que propiciam o aquecimento global, como a atividade industrial sem controle e as emissões de gases de veículos a combustão, é atitude que deve andar lado a lado com atos que preservam áreas produtoras de água – como o controle do desmatamento, das queimadas, da expansão imobiliária e da mineração predatória. Caso contrário a oferta de recursos hídricos pode ser reduzida antes de que se registre altas temperaturas.


O alerta é do vice-presidente do Comitê da Bacia Hidrográfica do Rio São Francisco (CBH São Francisco), Marcus Vinícius Polignano, que fala em nome de uma área de 641 mil quilômetros quadrados com 505 municípios e 15 milhões de habitantes de seis estados (Minas Gerais, Goiás, Bahia, Pernambuco, Alagoas e Sergipe), além do Distrito Federal. “As atitudes precisam ser tomadas agora. O aquecimento não é uma coisa de futuro, já acontece. A escassez hídrica também já está ocorrendo em diversos pontos. As ondas de calor são como os picos de uma doença, que tem aumentado a intensidade e a frequência. E quanto mais frequentes esses picos, maiores serão as consequências para o abastecimento humano e o meio ambiente”, afirma Polignano.


O vice-presidente do CBH São Francisco destaca que muitas pessoas achavam que o aquecimento global e as mudanças climáticas não seriam reais, mas o próprio clima está mostrando o contrário. “Os fenômenos não são somente locais. Os mapas de aquecimento mostram uma grande zona no Sudeste e Centro-Oeste com uma mancha de calor e aquecimento que vem durando e sendo frequente”, diz.


“No senso comum, as pessoas pensam local. Como em Belo Horizonte ninguém se lembra de novembros tão quentes. Mas o problema não é em BH apenas, mas em todo o sistema ecológico dos entornos, os biomas e as bacias nas suas intensidades têm efeito mais sistêmico. A pessoa pode até comprar um ar-condicionado, mas não vai resolver o problema dos biomas dos rios e ecossistemas. Quando a água faltar, não vai ter dinheiro que a compre se não a preservarmos nos sistemas produtores: as áreas de recarga, as nascentes, as matas ciliares”, alerta Polignano.


O aquecimento contínuo detectado pelo IPCC é ainda mais grave sob a influência do fenômeno El Niño de aquecimento das águas do Oceano Pacífico, com repercussões climáticas em todo o mundo e em vigor desde junho. O Painel El Niño, do Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais (Inpe), o Instituto Nacional de Meteorologia (Inmet), a Agência Nacional de Águas e Saneamento Básico (ANA) e o Centro Nacional de Gerenciamento de Riscos e Desastres (Cenad), indica que, tirando a Região Sul do Brasil, em todas as demais áreas, os níveis de água no solo continuarão baixos, devido à previsão de redução das chuvas. “Em áreas do Mato Grosso, Mato Grosso do Sul, norte de Minas Gerais e sudoeste de São Paulo, a irregularidade espacial das chuvas ainda manterá o armazenamento hídrico em níveis mais baixos”, destaca o painel.


O painel de entes do governo federal avalia que o fenômeno El Niño terá o pico de intensidade entre este mês e janeiro de 2024. “A maioria das previsões indica a continuidade do fenômeno, com intensidade forte nos próximos três meses e permanência de El Niño durante o primeiro semestre de 2024. Assim, durante o próximo trimestre, as condições climáticas e meteorológicas no país serão influenciadas por esse fenômeno”.


A previsão climática para o Brasil de dezembro de 2023 a fevereiro de 2024 indica maior probabilidade de chuva abaixo da faixa normal entre o centro e leste da Região Norte e sobre praticamente toda a Região Nordeste do país. Sobre o RS e parte de SC, a previsão indica maior probabilidade de chuva acima da faixa normal. “Essa previsão reflete as características típicas de El Niño sobre o Brasil. Na faixa central do país (que inclui Minas Gerais), não se descartam episódios de chuva expressiva em algumas localidades durante esse trimestre citado, principalmente na segunda metade desse período. A previsão de temperatura indica maior probabilidade de valores acima da faixa normal na maior parte do país”. 

 

 

 

 

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