Do canteiro de terra esturricada, os ramos de coentro amarelos e quebradiços saem com facilidade com um leve puxão deixando cair torrões. O alface amarelou. O pepino ganhou manchas pretas. A cebolinha não cresceu. Os últimos três meses de uma estiagem não esperada seguidos de ondas de calor intenso com recordes de temperatura arrasaram a produção de produtores das hortas de Ibirité, aos pés da Serra do Rola-Moça, como Márcio Aparecido Ferreira, de 49 anos. "Esse ano o calor trouxe prejuízo geral aqui nas hortas. Não teve uma pessoa que não teve perdas. Das sementes, à planta que não desenvolveu, murchou. Ou perdeu no pé, como as folhas. Só de coentro a perda foi de 80%. Tentamos de tudo: adubar mais, irrigar. Nada segurou o calor", conta o agricultor.
Uma situação que deve piorar, como mostra a terceira reportagem do Estado de Minas da série sobre a devastação do aquecimento global dos organismos humanos e setores sociais ao abastecimento hídrico. Ao ajustar as previsões de aquecimento do Painel Intergovernamental sobre Mudanças do Clima (IPCC) da ONU ficam claros os fortes impactos na ampliação de temperaturas e redução das chuvas nas principais áreas de agropecuária brasileiras e mineiras. Há cenários de elevação média da temperatura do planeta de 1,5ºC a 4ºC, até 2100, sendo que nos últimos 10 anos esse aquecimento foi de 1,1ºC, segundo o IPCC. Na modelagem do EM foi utilizado um cenário mediano, de aquecimento de 2ºC na temperatura média global (confira a tabela).
A Companhia Nacional de Abastecimento (Conab) publicou um relatório preocupante sobre a safra de grãos 2023/2024, estimando que seja 2,4% menor que a anterior no Brasil. A produção total deve ser de 312,3 milhões de toneladas e a quebra deve-se às altas temperaturas e à estiagem, segundo a Conab. Amanhã está prevista a chegada de nova onda de calor vinda do norte da Argentina e do Paraguai, afetando os estados do Sul, Sudeste e Centro-Oeste, de acordo com a empresa de meteorologia MetSul. Alerta da Organização Meteorológica Mundial (OMM) mostra que 2023 já é o ano mais quente registrado, com aumento médio de 1,4ºC e o que apresentou maiores emissões de gases do efeito estufa responsáveis por represar o calor que seria dissipado da superfície do planeta.
Se confirmado o cenário de aquecimento e seca, quatro dos principais municípios com as lavouras que mais venderam no Brasil em 2022 experimentariam uma redução de mais de 5% das chuvas que trazem vida às plantações, o que representaria perdas superiores a 80 milímetros de chuva ao ano. Destes, a maior redução seria também da capital da agricultura nacional, o município de Sorriso, no Mato Grosso, que em 2022 negociou R$ 11,5 bilhões em safra segundo a pesquisa Produção Agrícola Municipal (PAM) do IBGE.
Maior produtor de soja e milho do Brasil e entre os maiores de cana-de-açúcar, algodão e feijão, Sorriso veria sua temperatura média anual saltar de amenos 24ºC para quase 27ºC, que é mais típica do semiárido equatorial e é a mesma de Bom Jesus (PI), o município que por vezes é considerado o mais seco do país.
Os impactos nos municípios mineiros com a maior produção agrícola seriam ainda piores. O destaque mineiro com negócios de R$ 3,4 milhões é Unaí, que veria sua temperatura subir de 23ºC em média para quase 26ºC. As chuvas seriam impactadas com uma redução de 6,4%, cerca de 78 milímetros a menos. Quase o mesmo que Paracatu, terceiro da lista ao produzir e vender R$ 2,5 milhões. Os registros médios de temperatura por lá também saltaram de 23ºC para quase 26ºC, provocando uma diminuição de 6,1%, cerca de 91 milímetros menor que os registros atuais.
Na região das hortas da Grande Belo Horizonte, onde Márcio Aparecido Ferreira contabiliza prejuízos com semente e quebra da produção, sobretudo do coentro, estimada em 80% de perdas, o futuro também não reserva boas previsões caso o aquecimento do planeta se mantenha. A temperatura de Ibirité (20ºC), Brumadinho (21ºC) e São Joaquim de Bicas (21ºC) aumentaria 2,4ºC nesse cenário, impactando em uma perda de 5% das chuvas médias anuais.
O também agricultor das hortas de Ibirité, Kennedy Vinicius Pimenta, de 25 anos, afirma já ter tentado de tudo contra o calor que castigou a sua plantação de cebola, cebolinha, salsinha, hortelã, manjericão e coentro. “O comum é molhar as hortas uma vez por dia. Mas nunca vi um calor tão forte. Chegamos a irrigar três vezes por dia, usando muita água, gastando eletricidade demais e quase não adiantou. O calor era tanto que a água secava rapidamente. Acaba que as plantas secam e morrem. A cebola nem deu para plantar, porque não tinha chuva. Alface e cebolinha foi uma luta e as perdas chegaram a 30, 40%”, estima o agricultor.
EL NIÑO POTENCIALIZA PREJUÍZOS
O monitoramento das condições da lavoura feito pela Companhia nacional de Abastecimento (Conab) mostra que atrasos e perdas já vem ocorrendo em dezembro devido ao aumento das temperaturas e a extensão da estiagem pelo Brasil exigindo utilização intensa de irrigação, o que consome mais água e energia elétrica – enquanto que na região Sul extremos chuvosos trazem prejuízos.
De acordo com os meteorologistas da Administração Nacional Oceânica e Atmosférica dos Estados Unidos (NOAA), que mede e acompanha o fenômeno El Niño em vigor desde junho, esse impacto do aquecimento das águas do Oceano Pacífico está se manifestando cada vez mais intensamente, havendo a possibilidade de atingir um recorde durante o verão, conforme a última atualização. “Prevê-se que o fenômeno persistirá no Brasil até o outono, com uma probabilidade de 62% de continuar de abril a junho de 2024. Além disso, há uma chance de 35% de que o fenômeno se intensifique e alcance um nível forte, caracterizado como um 'Super El Niño', durante até janeiro”, indica o NOAA.
Enquanto isso, os impactos já são sentidos nas lavouras. O arroz já está 80% semeado e os maiores impactos foram sentidos no Sul do país devido às chuvas. Já o feijão teve menos de 50% de semeadura da primeira safra e está com atraso. “Em Minas Gerais, o plantio está atrasado em função da irregularidade das chuvas. Contudo, as lavouras foram beneficiadas com as chuvas recentes, recuperando o vigor. Na Bahia, o plantio está atrasado devido à escassez de chuvas. Em Goiás, a condição geral das lavouras está entre boa e regular, principalmente pelo uso de irrigação complementar. Em São Paulo, a colheita foi iniciada. Os grãos apresentam boa qualidade e rendimento”, informa a Conab.
A primeira safra de milho atingiu 60% de semeadura. “Em MG, as precipitações favorecem as operações de plantio, entretanto, em algumas lavouras, observa-se sintomas de estresse hídrico (demanda por água excede a oferta)”, observa a Conab. “Na Bahia, a semeadura está lenta, acompanhando a ocorrência de precipitações. No Maranhão, o plantio ocorre lentamente no Sul do estado, acompanhando as irregulares precipitações. Em Goiás, a semeadura foi retomada, tendo em vista o retorno das precipitações. Em São Paulo, o plantio progrediu e as lavouras apresentam bom desenvolvimento”, avalia a companhia.
Principal produção do país, a soja está com 83,1% do total semeado. “As baixas e irregulares chuvas têm comprometido o desenvolvimento das lavouras em várias regiões”, indica a Conab. Em Mato Grosso, o plantio está quase finalizado. Em Goiás e Mato Grosso do Sul, o plantio foi intensificado em razão do retorno das chuvas. Em Minas Gerais, houve significativo avanço no plantio com o retorno das chuvas, que também colaboraram na recuperação de lavouras afetadas pelo estresse hídrico. Na Bahia, Maranhão e Pará a semeadura está progredindo de acordo com a ocorrência de chuvas. Em SP, o plantio está sendo finalizado. Registra plantios pontuais. No Piauí, o plantio pouco progrediu.
“Minas Gerais, conhecido por sua produção de batatas, apresenta uma variação na qualidade das batatas devido às temperaturas elevadas seguidas por chuvas, dificultando as atividades no campo. Nas plantações de cenoura, com destaque para São Gotardo, também se observa uma redução na qualidade das raízes colhidas devido ao calor excessivo”, informou a Secretaria de Estado de Agricultura, pecuária e Abastecimento (Seapa) de Minas Gerais.