Reza a tradição cristã que, neste ano, o costume da montagem de presépios completa oito séculos de história, sendo o pioneiro deles fruto da devoção de São Francisco de Assis, a quem seria dado, muito tempo depois, o título de “protetor dos animais e da natureza”. No Natal de 1223, na cidade de Greccio, na Itália, o então frade Francisco teria recriado a gruta de Belém, incorporando à cena o boi e o jumento, a fim de demonstrar a simplicidade do local onde Jesus veio ao mundo.
O tempo passou, o mundo mudou, e os presépios, hoje, se fazem presentes nas celebrações natalinas de moradias, igrejas, mosteiros, praças e até, o ano inteiro, ao ar livre. Em Minas, a tradição se fortalece cada vez mais, tanto na capital quanto no interior. Se em Grão Mogol, no Norte do estado, há um exemplar permanente, com peças em tamanho natural, e em Itapecerica, no Centro-Oeste, um museu específico, outras cidades promovem circuitos de visitação: o Serro, no Vale do Jequitinhonha, inaugura o seu, enquanto Santa Luzia, na Região Metropolitana de Belo Horizonte, comemora a 18ª edição de um percurso com 28 pontos.
Dito isso, a partir de agora peço licença a você, leitor, para escrever esta última reportagem da série sobre presépios de Minas na primeira pessoa do plural – isso mesmo, do plural, pois, resulta de trabalho coletivo, pautado na comemoração sagrada do Natal, nas memórias, no respeito às tradições da terra e na força da amizade.
Neste mês, o presépio da casa da minha família, em Santa Luzia, completa 70 anos mantendo basicamente as características originais: ocupa o mesmo espaço nas últimas seis décadas, conserva o núcleo principal – figuras da Sagrada Família, reis magos, pastores e animais –, e tem a mesma formação, com areia escura, vasos da varanda cobertos de panos; preserva os rituais.
Tudo começou em dezembro de 1953, quando minha mãe, Ephigenia, montou o primeiro presépio da casa, na Rua Direita, Centro Histórico de Santa Luzia. Lembro-me bem, ao longo do tempo, de vê-la buscando as plantas no jardim, cobrindo os vasos com panos feitos por artesãos da cidade, peneirando a areia e colocando as figuras. “O Menino Jesus chega apenas na passagem de 24 para 25 de dezembro. Enquanto isso, fica aqui sobre a cômoda da sala, viu?”, ouvia minha mãe dizendo.
Samambaias do mato, musgo (sempre tem, devido à chuva da época), pequenas bromélias, pedras dos canteiros, galhos de árvores, enfim, quase todos os “elementos” na natureza do quintal doméstico vão parar no presépio “setentão”. Aprendi, desde cedo, que presépio não é cenário, nem espetáculo, muito menos algo luxuoso. Como bem escreveu o arcebispo metropolitano de BH, dom Walmor Oliveira de Azevedo, citando o papa Francisco, em texto publicado no Estado de Minas em 8 de dezembro: “A tônica espiritual forte, ensinada pelo presépio, é a humildade”.
PROCISSÃO E REZAS COMPÕEM O RITUAL
Quando meus pais, Helton e Ephigenia, mudaram com os sete filhos para o Bairro São Geraldo, em Santa Luzia, em meados da década de 1960, o presépio ganhou mais espaço, passou a ocupar quase toda a sala. Os móveis saíam para dar lugar à manjedoura (como chamamos, amorosamente, o estábulo de madeira coberto de piaçava), ao “povo de Belém”, aos animais, aos vegetais. Mas, antes de começar a desocupação do ambiente, vem o ritual: rezar e fazer uma pequena procissão com Jesus, Maria e José, pela casa e pelo quintal.
Antes da ceia do Natal, o costume se mantém, mas imprevistos podem acontecer. Certa vez, um dos netos deixou o Menino Jesus cair no chão, faltando poucos minutos para a meia-noite. Ligeiro estresse resolvido com socorro de cola e fita adesiva. Depois, um especialista fez o restauro. Histórias que ficam na cabeça e não se apagam.
Com o falecimento da minha mãe, em 2010, a dois meses do Natal, fizemos o presépio – e fiquei como guardião informal, com o apoio dos irmãos, embora sem testamento, escritura ou papel passado. Tudo de coração, pois acompanhei minha mãe se esmerando nos detalhes, visitei, a vida toda, os presépios feitos na cidade, desde o tempo de dona Santina Dantas, dona Coló Viana, Luzia Fonseca e das três irmãs Guiomar, Evangelina e Antonieta Ferreira, residentes ao lado da antiga caixa-d’água’. Claro que o clima mudou, mas a gruta de Belém continua intocada. Com um detalhe: se o astral não estiver legal, melhor deixar o início da “construção” para outro dia. Vivendo e aprendendo.
DE CADA CORAÇÃO, UMA COLABORAÇÃO
Nessa história, os “amigos de fé” e sobrinhos têm um papel fundamental, e parte deles está reunida na foto da página ao lado. Com a experiência de quem aprendeu a arte de fazer presépios com a avó, Iná, e a mãe, dona Ana, Luiz Floriano dos Santos, conhecido por Cunhã, sabe montar a estrututra, que aprendeu também com dona Augusta Dolabella (tinha um presépio do século 19, muito visitado) e ajudou minha mãe por mais de uma década, nos anos 1990. “Fico feliz por essa tradição estar bem viva”, afirma.
Nos últimos anos, Eva Maria da Silva Domingos e Marinês Araújo são mais do que colaborativas, pois sabem fazer os “arremates” nas montanhas, enxergam bem a disposição das figuras e a posição dos vasos. Para Eva, emoção e lembranças se misturam a cada instante, enquanto Marinês, pernambucana, está certa de que o presépio é uma representação da paz em família. Durante a montagem, é comum “conversar” com os pastores, numa atmosfera de imaginação, que, para quem está fora, pode intrigar. Na verdade, é a intimidade que é alma do ofício.
Também “construtor de Belém”, Luiz Henrique Gabrich Siqueira tem “olhar clínico” e dá uma conferida no ambiente, no final. Para ele, agora é momento de reflexão sobre o sentido do nascimento de Jesus. Os sobrinhos, Pedro e David Tófani Gonçalves Machado Gomez Werneck, gêmeos de 22 anos, sempre demonstraram interesse – “Já carreguei muito vaso pesado, tio”, brinca David. Certamente, ficará nas mãos deles esse tesouro que recebemos de nossos pais. Para David, o presépio conserva as origens da família. Pedro destaca: “É o símbolo da nossa melhor parte”.
O MISTÉRIO DOS PERSONAGENS QUE "PASSEIAM" À NOITE
Nas cidades do interior, em que a tradição dos presépios se mantém mais forte e o tempo parece, às vezes, correr em outro ritmo, são diferentes também as percepções. Quem faz presépio sabe que as figuras têm “vida própria” e podem “se movimentar” à noite. Um anjo está aqui, no outro dia está lá. “Voou? Será?”, perguntou, outro dia, Piedade, que nos presenteou com dois anjos pretos. A ovelha desgarrou do rebanho, foi para perto da fonte. “Vixe!”, exclamou Marinês, com seu sotaque inconfudível. Na verdade, esses frutos da imaginação fazem todo sentido, pois a gente está sempre mexendo e trocando as peças de lugar, sem falar nos besouros, aranhas, mosquitos e outros insetos que chegam para também esperar Jesus.
Para a família, as figuras são visitantes, e assim são tratados durante todo o período natalino, que se encerra em 6 de janeiro. Com o tempo, o núcleo original do presépio foi crescendo. Hoje tem mais de 100 peças. Quando viajo, a trabalho ou passeio, não deixo de trazer mais uma peça para o presépio. Trouxe um casal de indígenas de Belém, de uma madeira tão leve que parece flutuar; uma galinha com lugar para colocar milho, de Goiás Velho (GO); De Paraty (RJ) veio uma arara; uma igreja de barro da região de São Miguel das Missões (RS); capivara de São Raimundo Nonato (PI); um ursinho panda de Tóquio; um burrinho de Belém, que comprei perto da Basílica da Natividade, na Terra Santa; uma pedra do topo da Serra do Curral, em BH, entre muitos outros objetos.
Os presentes, claro, são sempre bem-vindos. Amigos sempre trazem uma “lembrança” para o presépio. Ou deixam sua marca. Há alguns anos, um amigo de Belém (PA), o Sebastião, procurou no quintal algumas pedrinhas e pedaço de um galho. Perguntou se poderia montar uma flor sobre a areia. Ficou tão bonito o arranjo, que, ao término do período natalino, recolhemos e guardamos numa caixinha, para repetir no ano seguinte.
Durante o período natalino, o presépio recebe a visita das Pastorinhas e da Folia de Reis. Está na nossa memória a eterna pastorinha Cleusa da Conceição Batista Braz, que, desde adolescente, participava do grupo fundado por Maria de Lourdes Reis Nunes.
Quando termina o período natalino, e os vasos precisam de água de chuva, é hora de desmontar o presépio. Antes de tudo, o ritual se repete, a procissão pela casa, as rezas... Aí, sim, o ambiente se transforma, as caixas são guardadas e o espaço volta ao normal. Isso, no entanto, é outra história. Por agora, basta desejar um Feliz Natal, e que a singeleza e a união simbolizada em cada presépio habitem corações, moradas e famílias de todos!
AS PALAVRAS, A ESSÊNCIA DA ÉPOCA
Em 2010, foi lançado o livro “Santa Luzia, uma cidade sob a luz do presépio”, organizado por Adriana Cristina Carvalho Breguez, Nardeli da Conceição Silva, Níbia Soares Pinto Carvalho e Sebastião Geraldo Breguez, com narrativas de luzienses da terra ou de coração. Minha mãe escreveu “Natal – Nosso presépio”. Eis parte do texto: “Foi magnífica a ideia de São Francisco de Assis, para relembrar o nascimento do Menino Jesus, de criar o presépio. Ali, estavam todos aqueles que traziam uma nova mensagem para a humanidade: a mãe do Menino, Nossa Senhora Santíssima, e São José. O casal, à procura de um lugar para ficar em Belém, encontrou somente um estábulo. Nesse lugar tão humilde, Maria teve o seu filho, cobrindo com seu manto a manjedoura para deitá-lo. Nova luz, novo tempo. 'Paz na terra aos homens de boa vontade', cantavam os anjos para transmitir a mensagem”. “O nosso presépio é fruto de muito amor pelos filhos, que, no Natal ajudam a embelezá-lo. Ainda são as mesmas imagens e costumamos dizer que as peças adquiridas ao longo dos anos são muito bem-vindas, iguais aos pastores, que dois milênios atrás, visitaram Nossa Senhora e José e creram em uma nova esperança, amor, paz e solidariedade.”
HISTÓRIA RESISTE ÀS MUDANÇAS DO TEMPO
São Francisco nasceu em Assis, Itália, no final do século 12, em uma família rica e nobre. Ainda jovem, abdicou de sua herança e vida de riquezas, fazendo votos de pobreza, dedicando-se à Igreja, aos menos favorecidos e a fazer a vontade de Deus, servindo-O por meio da doação total e incondicional da sua vida. Fundou a Ordem dos Frades Menores, hoje conhecidos como franciscanos. Foi canonizado pelo papa Gregório IX dois anos após a sua morte, em 1226. É conhecido como o protetor dos animais. Na cidade italiana de Greccio, Francisco decidiu celebrar a missa de Natal entre o boi e o jumento, pois queria ver “com os olhos do corpo”, de acordo com os estudiosos, como o Menino Jesus ficou na manjedoura. Esse acontecimento foi a inspiração para que, mais tarde, o Natal fosse representado dessa forma.
Hora de visitar os presépios
1) Exposição “Presépios de todo o mundo”
Aberta ao público até 28 de janeiro
Local: Catedral Cristo Rei, na Rua Campo Verde, 165, no Bairro Juliana, na Região Norte de BH.
Visitação: Nos fins de semana (sábados e domingos), sem necessidade de agendamento.
2) 18º Circuito de Presépios de Santa Luzia, na Região Metropolitana de BH
Vários pontos de visitação no município, com promoção da Secretaria Municipal de Cultura e do Turismo.
Os visitantes podem contar com transporte gratuito, o “micro-ônibus da cultura”.
Informações pelo telefone (031) 99187-6464.