Todo mundo fala em paz e pede paz. A paz é apenas ausência de guerra ou muito mais, como segurança, justiça social, respeito pelas diferenças, oportunidade de trabalho e direitos humanos?
A palavra paz tem origem no latim “pax” e pode, sim, significar ausência de conflito e de guerra; entendimento, harmonia e tranquilidade. Mas é importante pensarmos que as práticas discursivas cotidianas nos convocam a pensar a paz em sentido mais amplo e mais polissêmico, isto é, com diversidade de significados que se constituem socialmente. Do ponto de vista do direito internacional, a paz pode estar associada aos conflitos entre países e grupos políticos, por exemplo. Mas estamos acompanhando, nos últimos anos, um pensamento que diz respeito à paz positiva e não somente à paz negativa. A negativa seria ausência de guerra. A positiva seria trabalhar em processos de construção da paz com colaboração para atacar os problemas que seriam motivadores de guerra. Por exemplo: a atuação de governos, organizações não governamentais, empresas privadas e organismos internacionais, em grandes desafios sociais, como promoção de justiça social, combate à intolerância religiosa, organização de atividades que possam minimizar os danos das mudanças climáticas severas, o preconceito e a violência contra as mulheres, o combate ao racismo, ao capacitismo (preconceito contra pessoas com deficiência), à discriminação a pessoas LGBTQUIAPN+. No meu entendimento, precisamos estar atentos aos grandes conflitos internacionais, como os que presenciamos, atualmente, entre Rússia e Ucrânia ou entre Israel e Palestina. Por outro lado, a paz de cada sociedade precisa ser prioridade tomando questões sociais de educação, saúde, segurança pública, por exemplo, em busca de paz positiva.
De que forma a sociedade civil pode buscar a paz no dia a dia? Há muitas iniciativas nesse sentido?
Entendo que a construção cotidiana da paz passa por fatores complexos, como a garantia de liberdade individual, o respeito às diferenças, às situações socioeconômicas, entre outros. Nós vivemos o auge de sociedades individualistas, autocentradas e pouco preocupadas com os desafios coletivos. Todos os dias, elaboramos uma série de discursos, por meio dos quais nós nos comunicamos, a partir de muitas experiências que estão acontecendo no dia a dia. Nossa contribuição deveria partir do princípio de que o mundo não deve ser percebido como uma divisão dicotômica, isto é, bom ou ruim, guerra ou paz. A construção da paz está relacionada a um movimento ético de desejar e trabalhar por uma sociedade mais justa. E não há sociedades mais justas se não formos gentis conosco mesmo, com os outros, com os problemas sociais. Em tempos de redes sociais em uso exacerbado, presenciamos todos os dias ataques a pessoas e instituições, discursos de ódio e principalmente algo que desrespeita a existência humana e pode até matar. Esse tipo de comportamento, que muitos reproduzem sem refletir e pensar estar contribuindo para visões críticas nada mais é do que o estímulo a uma cultura contra a paz.
A senhora coordena um grupo chamado Afetos, que é uma palavra bem ampla e profunda. Como "trabalhar" esse afeto em tempos tão polarizados?
Trabalhamos com afetos no sentido de afetar-se e ser afetado a partir, principalmente, do pensamento dos filósofos Baruch Espinoza, Vladimir Safatle e da antropóloga Kathleen Stewart. Afetos aqui não são percebidos como sentimentos bons. Nós entendemos que os processos de afetação social, quando levamos para a pesquisa, podem contribuir para reflexões que contribuam para sociedades mais justas, mas próximas do cotidiano e menos distantes da sociedade. É como colocar nosso corpo pesquisador em contato com os complexos problemas que precisam ser percebidos e compreendidos pela pesquisa científica.
Qual sua mensagem para 2024, especialmente para as crianças?
Que em 2024 a gente faça um movimento de pensar em nossa saúde mental, em nosso bem-estar e no modo como nós habitamos o mundo para que, assim, seja possível dar um passo importante individual, mas que tem reverberação no coletivo. Olhar para nós mesmos, com respeito, nos permite um autoconhecimento que nos ensina a entender que a nossa ação social não está em palavras tão esvaziadas recentemente como empatia. Nossa contribuição para sociedades mais justas e mais pacíficas está também relacionada à nossa capacidade de nos indignar e de reagir diante do que agride o outro, do ponto de vista econômico, político, cultural e social, entre outros. Então, as atividades e os cuidados individuais, de quem tem condições de fazê-lo, podem impulsionar nossa colaboração nas empresas onde trabalhamos, nos grupos sociais que frequentamos, e em projetos para políticas públicas positivas de respeito, ética e garantia de direitos fundamentais. Uma agenda positiva para a paz é mais do que um favor ao mundo, é uma necessidade urgente. Que 2024 venha em paz, tanto aquela que significa ausência de guerras e conflitos quanto a que podemos construir todos os dias e para todas as pessoas. n
* Professora convidada do Institut Mines-Télécom (França) e coordenadora do Afetos: Grupo de Pesquisa em Comunicação, Discursos e Experiências