Entre os sonhos das crianças e a realidade do mundo, há um abismo tão colossal que só uma ponte, formada pela palavra de uma sílaba, pode garantir a travessia para mudar os rumos do planeta. Paz – é o que desejam os povos, muitos deles ameaçados em zona de guerra, sob o estrondo constante de bombas, e ansiosos para ter de volta a vida normal. Hoje, 1º de janeiro, Dia Mundial da Paz, a voz de meninos e meninas de Minas Gerais ecoa e se junta à de quem foi obrigado a deixar a terra distante em busca de melhores dias. Dois extremos do universo, com um ponto de convergência: a crença na esperança.

Um recorte dos sonhos das crianças está na alegria de uma festa de fim de ano. A meninada brinca, pula, conversa, participa ativamente das atividades preparadas com carinho. Movidos pela energia da idade, unem forças para ter o mundo em suas mãos e fazer dele um lugar feliz: os pilares para sustentá-lo estão nas ideias que florescem, especialmente em defesa do meio ambiente e contra “brigas e lutas”, conforme diz Hugo Landa Marques, de 5 anos. O menino, ao lado dos coleguinhas, adere ao coro de que a paz só será possível com entendimento. E limpeza. “A felicidade virá com menos poluição das águas e da terra”, acredita quem já traz a paz no nome: Larissa Kelly Tomaz de Paz Castro Reis, de 10.

 VIDAS FERIDAS TIRAM O SOSSEGO DAS CRIANÇAS

Conversar com as crianças, ouvir suas opiniões, anotar seus pensamentos é, sem dúvida, acreditar que existe futuro. Os gêmeos Miguel e Lucas Soares dos Santos, de 8, vão direto ao ponto, com profundidade. “Não maltratar as pessoas é o melhor caminho”, avisa Miguel, mostrando que a ideia inclui adultos e crianças, em qualquer parte do mundo. Impossível não pensar nas feridas da guerra na Ucrânia, país europeu invadido pela Rússia, no êxodo e nas atrocidades na Faixa de Gaza, em Israel, nas vidas dilaceradas, na violências nas grandes cidades brasileiras, com os ônibus incendiados no Rio de Janeiro (RJ), sem falar nos tormentos de última hora, com a Venezuela querendo anexar parte da Guiana a seu território.



Ao lado de Miguel, Lucas defende o meio ambiente, “que a natureza e os animais sejam respeitados”, em um ultimato necessário pelo planeta que padece com as mudanças climáticas. Com isso concorda plenamente Maria Eloá Custódio Rosa, de 7, para quem chega de lixo de toda espécie lançado desnecessariamente nas águas de rios, mares e lagos; na terra, entre florestas e cidades; no ar, pela poluição atmosférica; e com o fogo das queimadas de áreas verdes, de restos de agricultura ou de resíduos nas ruas. É o que pensa a menina que vive o presente com olhos no futuro.

A conversa da equipe do Estado de Minas com as crianças sobre os desejos para o ano que chega ocorreu durante a festa de Natal promovida pelo Paróquia Santa Teresa de Calcutá, em Betim, na Região Metropolitana de Belo Horizonte. À frente, o administrador paroquial Alan Pereira Silva, certo de que a paz só será alcançada a partir do momento em que o ser humano resgatar o amor em seu coração, o que se traduz por desapego, acolhimento e combate ao egoísmo.

Serão apenas palavras? Laura Aparecida Rodrigues, de 10, acredita que não. “Precisamos crer em Deus e pedir que parem todas as guerras”, ensina a menina. Ao lado, também amparando o globo terrestre, e pisando firme sobre o chão, Ana Cecília Pereira do Nascimento, de 5, espera “um mundo melhor para as crianças”. E Samuel Vinícius Lima, de 5, determina: "Chega de brigas no mundo!".

 SOLUÇÕES PASSAM PELO RESPEITO ÀS DIFERENÇAS

A paz que as crianças, em sua inocência, desejam como uma simples questão de fazer as escolhas certas, adultos como o venezuelano José Miguel Silva Ocanto, de 30 anos, entendem se tratar de uma conquista complexa. Com a experiência sofrida de quem teve de deixar a própria terra, ele sabe que o tema envolve questões geopolíticas e culturais, num universo muito amplo de estudos e discussões. No Brasil desde março de 2018, para onde emigrou devido a problemas políticos com o governo de Nicolás Maduro, José Miguel acredita que o principal caminho para se atingir a paz está em “aceitar as diferenças”, entendendo que a constituição humana é feita de diversidade e pluralidade. E que soluções devem ser buscadas de forma coletiva, com diálogo.

“Para evitar conflitos, o mundo deve ser pautado por uma nova ética, sem desvalorização das diferenças”, diz o venezuelano. Com o curso de psicologia concluído na PUC Minas, José Miguel estuda ciências sociais na UFMG e trabalha na Cáritas, organização ligada à Conferência Nacional dos Bispos do Brasil (CNBB) para ações sociais e amparo aos pobres.

PORTA ABERTA PARA NOVOS HORIZONTES

A vinda para o Brasil, há quase seis anos, abriu horizontes. Mas a saudade persiste no coração. “Sinto muita falta da minha terra, mas a migração permite também novos projetos, conhecer outras pessoas”, diz o venezuelano, que veio sozinho para Belo Horizonte e depois trouxe um irmão e os pais.
A recente crise internacional deflagrada por Nicolás Maduro, a partir do referendo para anexação à Venezuela da região de Essequibo, rica em petróleo, na Guiana, aumentou as preocupações de José Miguel. “Uma guerra significaria mais miséria para meu país e haveria perdas irremediáveis para um mundo que precisa pensar em reconciliação e reparação”, afirma, sobre a sequência de desastres econômicos vividos pelo país latino-americano, de onde já saíram cerca de 5 milhões de habitantes, grande parte rumo ao Brasil.

Na sala de casa, em Belo Horizonte, Yasmin, de 8 anos, segura o cartaz com as palavras “Paz no mundo”, escritas em português e árabe. “Paz significa harmonia. Que não haja guerra e as pessoas não sejam atacadas”, diz a menina, ao lado da irmã, Clarissa, de 5, e dos pais Khaled Tomeh e Mary Ghattas. As meninas, que assinaram o cartaz, são belo-horizontinas; os pais, sírios, chegaram ao Brasil como refugiados, há quase uma década – em 25 de junho de 2014 –, e se naturalizaram brasileiros em 2020.

Hoje, com uma loja de congelados no Mercado Central, em BH, Khaled, de 39, dá sua visão de paz. “É algo bem complexo, mas que passa, com certeza, pela segurança e justiça.” Ao lado, Mary complementa: “É poder dormir com segurança. Saber que as filhas vão para a escola e retornarão. Ninguém escolhe a guerra”. Quando eram recém-casados, Khaled e Mary encontraram um porto seguro em Belo Horizonte, ao deixarem o país destruído pela guerra civil, que já matou milhares de pessoas e parece longe de terminar.
“Nossa guerra é permanente, pois há a luta pela vida, pela sobrevivência”, diz Khaled, que se formou em biologia na Universidade Federal de Minas Gerais e faz pós-graduação na mesma instituição. O novo curso superior foi necessário após o sírio constatar que sua formação no país natal, em engenharia, não o habilitaria a trabalhar na área no Brasil.

Ouvir as histórias do casal significa mergulhar em outra dimensão cultural. Há nobreza nos gestos, frases, opiniões. Em quase 10 anos, muitas pelejas dificultaram a trajetória da família Tomeh, a pioneira de refugiados sírios em BH. Mas valeu a pena, conforme asseguram. “Nossa terra, agora, é a terra de nossas filhas”, diz o pai.

Em um novo país, de língua desconhecida

Em 2014, chegava à capital mineira, sem falar uma palavra de português, o casal Waled e Maria. Ela professora de língua árabe, e os filhos George, arquiteto e tradutor de árabe para o inglês, e Khaled acompanhado de Mary. Na Síria, a guerra civil arruinou os planos e a economia da família Tomeh, que era dona de empresas e fazendas de criação de ovelhas, gado leiteiro e frangos, além de fábrica de alimentos. Natural de Homs, quase esfacelada pelos bombardeios, a família estava na Líbia, Norte da África, expandindo os negócios com abertura de uma empresa, quando os protestos populares evoluíram para a violenta revolta opondo governo a rebeldes.

Decidida a deixar o país, a família fez contatos com embaixadas e viu que o Brasil estava recebendo refugiados sírios. A escolha de BH foi definida via internet, por meio de um site “que avaliava bem a segurança, o clima e o custo de vida”. Sem conhecer ninguém, decidiram vir para o país em um grupo de 13 familiares, sabendo, de antemão, que teriam documentos, mas não necessariamente um emprego. Então, cada um se virou de um jeito, trabalhando em lanchonete, fazendo pequenos consertos e serviços de informática.

Como a situação na Líbia também estava instável politicamente, a família retornou à Síria para retomar a vida, mas já não havia mais empresa, casa e a história particular. Vendo que continuar em Homs era impraticável, os Tomeh alugaram um apartamento na capital, Damasco, considerada uma das cidades mais antigas do mundo, e passaram a conviver com dias de terror. “Perdemos muitos parentes e amigos”, conta Khaled, certo de que, com a “perda das raízes” e as dificuldades existentes em qualquer lugar, quer continuar no Brasil.  

“Nossa terra, agora, é a terra de nossas filhas”

Na sala de casa, em Belo Horizonte, Yasmin, de 8 anos, segura o cartaz com as palavras “Paz no mundo”, escritas em português e árabe. “Paz significa harmonia. Que não haja guerra e as pessoas não sejam atacadas”, diz a menina, ao lado da irmã, Clarissa, de 5, e dos pais Khaled Tomeh e Mary Ghattas. As meninas, que assinaram o cartaz, são belo-horizontinas; os pais, sírios, chegaram ao Brasil como refugiados, há quase uma década – em 25 de junho de 2014 –, e se naturalizaram brasileiros em 2020.

Hoje, com uma loja de congelados no Mercado Central, em BH, Khaled, de 39, dá sua visão de paz. “É algo bem complexo, mas que passa, com certeza, pela segurança e justiça.” Ao lado, Mary complementa: “É poder dormir com segurança. Saber que as filhas vão para a escola e retornarão. Ninguém escolhe a guerra”. Quando eram recém-casados, Khaled e Mary encontraram um porto seguro em Belo Horizonte, ao deixarem o país destruído pela guerra civil, que já matou milhares de pessoas e parece longe de terminar.

“Nossa guerra é permanente, pois há a luta pela vida, pela sobrevivência”, diz Khaled, que se formou em biologia na Universidade Federal de Minas Gerais e faz pós-graduação na mesma instituição. O novo curso superior foi necessário após o sírio constatar que sua formação no país natal, em engenharia, não o habilitaria a trabalhar na área no Brasil.

Ouvir as histórias do casal significa mergulhar em outra dimensão cultural. Há nobreza nos gestos, frases, opiniões. Em quase 10 anos, muitas pelejas dificultaram a trajetória da família Tomeh, a pioneira de refugiados sírios em BH. Mas valeu a pena, conforme asseguram. “Nossa terra, agora, é a terra de nossas filhas”, diz o pai.

Em um novo país, de língua desconhecida

Em 2014, chegava à capital mineira, sem falar uma palavra de português, o casal Waled e Maria. Ela professora de língua árabe, e os filhos George, arquiteto e tradutor de árabe para o inglês, e Khaled acompanhado de Mary. Na Síria, a guerra civil arruinou os planos e a economia da família Tomeh, que era dona de empresas e fazendas de criação de ovelhas, gado leiteiro e frangos, além de fábrica de alimentos. Natural de Homs, quase esfacelada pelos bombardeios, a família estava na Líbia, Norte da África, expandindo os negócios com abertura de uma empresa, quando os protestos populares evoluíram para a violenta revolta opondo governo a rebeldes.

Decidida a deixar o país, a família fez contatos com embaixadas e viu que o Brasil estava recebendo refugiados sírios. A escolha de BH foi definida via internet, por meio de um site “que avaliava bem a segurança, o clima e o custo de vida”. Sem conhecer ninguém, decidiram vir para o país em um grupo de 13 familiares, sabendo, de antemão, que teriam documentos, mas não necessariamente um emprego. Então, cada um se virou de um jeito, trabalhando em lanchonete, fazendo pequenos consertos e serviços de informática.

Como a situação na Líbia também estava instável politicamente, a família retornou à Síria para retomar a vida, mas já não havia mais empresa, casa e a história particular. Vendo que continuar em Homs era impraticável, os Tomeh alugaram um apartamento na capital, Damasco, considerada uma das cidades mais antigas do mundo, e passaram a conviver com dias de terror. “Perdemos muitos parentes e amigos”, conta Khaled, certo de que, com a “perda das raízes” e as dificuldades existentes em qualquer lugar, quer continuar no Brasil. 

 

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O papa, a inteligência artificial e o futuro

Em mensagem para celebração do 57º Dia Mundial da Paz, neste 1º de janeiro de 2024, o papa Francisco registrou preocupação com a evolução tecnológica e manifestou o desejo de que o desenvolvimento da inteligência artificial esteja a serviço da paz. “No início do novo ano, a minha oração é que o rápido desenvolvimento de formas de inteligência artificial não aumente as já demasiadas desigualdades e injustiças presentes no mundo, mas contribua para pôr fim às guerras e conflitos e para aliviar muitas formas de sofrimento que afligem a família humana. Possam os fiéis cristãos, os crentes das várias religiões e os homens e mulheres de boa vontade colaborar harmoniosamente para aproveitar as oportunidades e enfrentar os desafios colocados pela revolução digital, e entregar às gerações futuras um mundo mais solidário, justo e pacífico”, diz conclusão de longo texto divulgado pela Santa Sé.

 

 

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