“Eu não consegui fazer a denúncia sozinha. Precisei que outra pessoa chamasse a polícia para mim, porque tinha medo da reação do meu agressor”, conta Aparecida Maria da Silva, de 54 anos, vítima de violência contra a mulher em 2021. Hoje, o caso está encerrado e o agressor saiu da casa de Aparecida, mas esta não é a realidade de um crescente contingente de mulheres residentes em Belo Horizonte. De acordo com dados divulgados pela Secretaria de Estado de Justiça e Segurança Pública de Minas Gerais (Sejusp-MG), o número de registros de violência doméstica e familiar em Belo Horizonte chegou a 17.234 entre janeiro e novembro de 2023. Houve aumento de 13% em relação a igual período de 2022, quando o total foi de 15.233, e de 9,5% na comparação com os 11 primeiros meses de 2021 (15.783). E mesmo sem os dados de dezembro, as denúncias já ultrapassam as registradas em 2021 (17.186) e 2022 (16.721) inteiros.


Esse crescimento significa que as mulheres sofreram mais violência em 2023 ou estão denunciando mais? Segundo a advogada especialista em direito da mulher e de família e sucessões Vanessa Paiva, as duas afirmativas estão corretas. “Historicamente, a violência contra a mulher sempre foi uma questão naturalizada. Mas isso tem mudado e, recentemente, vemos cada vez mais mulheres que sofrem com essas violências registrando, divulgando isso nas mídias e levantando a bandeira contra o silêncio. Isso tem um certo efeito dominó”, explica ela. “É muito vergonhoso quando você passa por uma situação dessas (de violência). O clima de uma delegacia, mesmo que seja uma especializada em defesa da mulher, é muito hostil. Por isso, muitas mulheres têm vergonha de denunciar, mas quando veem outras virem a público, sentem-se motivadas e fazem o mesmo”, complementa.


O caso de Aparecida é emblemático. Ela conheceu seu agressor quando trabalhava em um estabelecimento comercial na região onde mora e, dos sete anos que passaram juntos, cinco foram permeados pela violência, não apenas contra ela, mas também contra sua família. “Tinha medo de denunciar porque ele era agressivo, me ameaçava e se soubesse que eu estava pensando nisso poderia fazer coisa pior. E ele já fazia coisas horríveis comigo e com meu filho. Ameaçava a gente, jogava álcool no chão e dizia que botaria fogo no sofá, gritava na rua na frente dos outros, me ameaçava onde eu trabalhava, entrava nos lugares e as pessoas ficavam com medo dele”, conta Aparecida. Ela nunca chegou a pedir medida protetiva contra o agressor – mas sua irmã sim. “Ele chegou a ameaçar minha mãe e minha irmã, e já tinha sido agressivo com outras mulheres em outros relacionamentos”, afirma.
Aparecida só conseguiu denunciar a violência sofrida com a ajuda de Cláudia Mara, presidente do 14º Conselho Comunitário de Segurança Pública (Consep), que mora no mesmo condomínio que a vítima. “Ela (Cláudia) foi vendo o que eu passava e me incentivava a denunciar. Foi ela que pediu para a polícia vir fazer a visita e acompanhou todo o processo. Quando finalmente falei com a polícia aqui em casa, foi numa sala separada para ele (agressor) não saber que o que eu estava fazendo”, conta Aparecida.
Diante do que vivenciou, ela recomenda às vítimas de violência: “Procurem ajuda com segurança, porque é importante não atiçar a ira do agressor. Eu não pude bater de frente com ele, tive que fazer (a denúncia) na calada. Mas é sempre importante não aceitar a agressão e a violência, porque isso não é certo. As mulheres precisam ser respeitadas.

Delegacia especializada em atendimento à mulher em Belo Horizonte: ao todo, Polícia Civil conta com 69 equipamentos desse tipo em Minas

Jair Amaral/EM/D.A Press – 4/5/15

desafios no combate

De acordo com a advogada, a impunidade masculina também é um desafio a ser vencido. “Temos muitos dados de número de violência doméstica, mas se formos levantar os números de quantos agressores, de fato, foram punidos, veremos que são baixíssimos”, afirma. Ainda segundo ela, até mesmo o acompanhamento psicológico oferecido à vítima muitas vezes termina sendo direcionado para que ela “deixe de dar prosseguimento com o processo e volte atrás”. “E isso está muito protegido pela lei da magistratura, pelas normas da polícia, e são justamente as pessoas que fariam a Justiça andar”, completa.”


Para a advogada, um dos métodos mais eficientes para aumentar o número de denúncias é o acesso à informação. “Isso traz conscientização e retira um pouco daquele 'véu da vergonha', dando força à mulher. Hoje, também temos diversos coletivos que incentivam, dão apoio e suporte psicológico e estrutural para as mulheres vítimas de violência, elas começam a sair daquele casulo e percebem que aquele sofrimento pode ter fim e que ela tem, sim, seus direitos”, analisa.


O pesquisador Frederico Marinho confirma: “É colocar na mídia, nas redes sociais, nas escolas públicas para que os filhos informem que isso é um problema real, nos jornais do ônibus, na rádio, na televisão. Assim, enfrenta-se o problema de verdade. Se as mulheres não souberem, elas continuarão em casa sofrendo.”


CAMPANHAS DE BH

Em Belo Horizonte, há uma série de campanhas de combate à violência contra a mulher. Em relação à violência doméstica e familiar, a Prefeitura de Belo Horizonte (PBH) publicou a Lei n°11.518/2023, referente ao Programa de Cooperação e Código Sinal Vermelho, que instrui mulheres vítimas de violência a denunciarem a agressão em estabelecimentos comerciais a partir do desenho de um “X”, preferencialmente na cor vermelha, na palma da sua mão.


A legislação também prevê a promoção, por parte do Executivo, de campanhas educativas de prevenção da violência doméstica e familiar contra a mulher, voltadas ao público escolar e à sociedade em geral. As ações educativas são coordenadas pelo Grupamento de Proteção à Mulher “Guardiã Maria da Penha”, da Guarda Municipal de BH, que já realiza projetos parecidos em estabelecimentos comerciais, estações de embarque e desembarque de passageiros e nas escolas da rede municipal.


De acordo com nota da PBH, foram realizadas, entre abril e dezembro de 2023, 320 atividades educativas de combate à violência contra a mulher e contra a importunação sexual, sendo 36 em bares e restaurantes, e as demais em parques, praças estações de ônibus, vias públicas, escolas, Feira Hippie, Zoológico e estádios de futebol. Para garantir uma cobertura mais ampla, 59% das ações foram realizadas durante o dia e 41% à noite, em toda a capital.
COMO DENUNCIAR

Minas Gerais tem 69 delegacias especializadas em atendimento à mulher, distribuídas na capital e interior do estado. Ligadas à Polícia Civil de Minas Gerais (PCMG), essas delegacias prestam atendimento às mulheres vítimas de violência, incluindo casos de importunação ofensiva e violência doméstica e sexual.
Em Belo Horizonte, estão situadas a Delegacia de Plantão Especializada em Atendimento à Mulher e a Casa da Mulher Mineira, abarcando uma série de ações, como a solicitação de medidas protetivas de urgência, que contempla o acompanhamento policial até a residência da vítima para retirada de seus pertences em segurança (roupas, documentos, medicamentos etc); recebimento da guia de exame de corpo de delito; realização da representação criminal para a devida responsabilização do agressor; recebimento e encaminhamento para casas-abrigo; serviços de atendimento psicossocial; orientação jurídica na Defensoria Pública, entre outros.


Além disso, o governo de Minas também gerencia o Centro Risoleta Neves de Atendimento (Cerna), que presta serviços psicológicos, jurídicos e sociais às moradoras da capital e do interior de Minas, além de oferecer capacitações a outros equipamentos da rede de enfrentamento à violência contra mulheres.
É possível também fazer um registro virtual no aplicativo “MG Mulher”, do qual é possível acessar tanto a delegacia virtual quanto a outros vídeos explicativos, com endereços de delegacias de polícia também. Caso uma pessoa saiba que a mulher está sendo vítima de violência doméstica e queira fazer a denúncia de forma anônima, é possível ligar para o Disque 181. Ao fazer a ocorrência, a mulher pode pedir o requerimento da medida protetiva.


SUB-REGISTRO E LACUNAS

O pesquisador do Centro de Estudos de Criminalidade e Segurança Pública Universidade Federal de Minas Gerais (Crisp) Frederico Marinho afirma que a melhora na captação desses crimes também é notável, mas que ainda assim está sujeita à subnotificação. “A violência contra a mulher sempre foi um fenômeno absurdamente naturalizado ao longo da história brasileira. Então, entendemos aqui um aumento no registro e imagino que isso se deva a uma maior produtividade do poder público, que pressiona o governo do estado por mais abrigos, mais políticas públicas para prevenir ou reduzir esse tipo de violência”, afirma. “Mas a violência contra a mulher ainda tem um sub-registro muito grande. Todas as pesquisas feitas em países europeus ou na América do Norte mostram um sub-registro estimado de que a cada 10 crimes, apenas um ou dois são registrados”, acrescenta.


Apesar de a subnotificação de violência contra a mulher ainda ser uma realidade muito sólida e uma barreira difícil de ultrapassar, o Brasil, em termos de mecanismos legais para a proteção à mulher, “é um país avançadíssimo”, afirma a advogada Vanessa Paiva.“A vítima vai até uma delegacia da mulher, faz a denúncia, pede as medidas protetivas e, imediatamente, se está correndo algum risco, lhe oferecem abrigo e suporte psicológico para ela e para a criança, se for o caso. Mas isso (a informação sobre como proceder) não chega a todos os cantos do país”, explica. De acordo com Vanessa, nem todas as cidades têm delegacia especializada, mas a denúncia pode ser feita da mesma forma em órgãos comuns e o que muda é o atendimento.


Para ela, ainda há lacunas na chegada da informação e efetividade dos servidores públicos. “A gente precisa que a autoridade policial, o Ministério Público e até o Judiciário deem mais crédito à palavra da mulher vítima de violência e que a tratem com mais seriedade. Seria interessante uma reciclagem desses servidores públicos, que eles passassem por uma oficina para que entendam como é a situação dessas mulheres e venham a dar um suporte que vá além do técnico. É melhor prevenir do que remediar”, acrescenta. 

 

“Procurem ajuda com segurança, porque é importante não atiçar
a ira do agressor. (...) Mas é sempre importante não aceitar
a agressão e a violência. As mulheres precisam
ser respeitadas”

Aparecida Maria da Silva
Ex-vítima de violência doméstica

 

“Recentemente, vemos cada vez mais mulheres que sofrem com essas violências registrando, divulgando isso nas mídias e levantando a bandeira contra o silêncio. Isso tem um certo efeito dominó”

Vanessa Paiva
Advogada especialista em direito da mulher e de
família e sucessões

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