O choque com a morte da pequena Melissa Maria Alexandre Santos, de 6 anos, no domingo (21/1), afeta não só a família e amigos, diretamente ligados à perda da criança. Melissa voltava para a casa, em Raposos, pela BR-381, na Região Metropolitana de Belo Horizonte, quando foi baleada na cabeça por uma pessoa que ainda não havia sido identificada até ontem. Ela estava no carro com o pai, a avó e o irmão, de 3 anos, quando foi alvejada. A motivação do crime ainda é incerta, mas segundo o pai, os disparos foram feitos logo após uma discussão ao volante, que começou em trecho da estrada em Betim. Além da consternação diante do homicídio de Melissa, a ocorrência desperta um antigo e conhecido fantasma que assombra motoristas: as consequências de brigas de trânsito. Para especialista, evitá-las, adotando uma posição defensiva ao volante, é essencial.


À Polícia Militar, o pai da menina, que dirigia o veículo, contou que estava próximo à fábrica da Fiat Automóveis, em Betim, quando foi fechado por um Fiat Vivace. Nele estavam dois homens e duas mulheres. O motorista ainda teria emparelhado com o carro da família e feito diversas ultrapassagens. “O homem que dirigia, depois de várias fechadas, fazia gestos obscenos dirigidos a mim”, contou Maicon Junior dos Santos.


Ainda segundo o relato de Maicon, o veículo passou a perseguir a família e, na altura do Bairro Amazonas, em Contagem, um dos homens sacou um revólver e atirou. O disparo atingiu a traseira do carro e acertou a cabeça de Melissa. Ao avistar uma viatura da Polícia Militar, o pai da criança parou e pediu socorro. A menina chegou a ser resgatada e levada para o Hospital Metropolitano de Contagem, mas não resistiu aos ferimentos.


Melissa era uma menina doce e alegre. Durante seu velório, no Cemitério do Rosário, em Raposos, também na Grande BH, seu avô Antônio Nicomedes contou que a família voltava de um restaurante quando foi surpreendida pelos suspeitos. “Eles saíram de casa para levar os meninos a um restaurante onde tem um parquinho para eles brincarem. E de lá eles passaram em Ibirité e vieram embora. Aí que coincidiu de encontrarem esse marginal no caminho.”


A ocorrência foi registrada pela Polícia Rodoviária Federal. Ao Estado de Minas, a assessoria da corporação informou que até as15h30 de ontem nenhum suspeito havia sido identificado. Por meio de nota, a Polícia Civil informou que apura o caso. “Espero que a justiça seja feita, apesar de não adiantar nada pela vida dela, mas por outras vidas. É preciso tirar um monstro desse de circulação”, desabafa o avô da menina.


Estatística “irreal”


De janeiro a julho de 2023, segundo os últimos dados disponíveis, a Secretaria de Justiça e Segurança Pública de Minas Gerais (Sejusp) não registrou nenhuma ocorrência de homicídio com causa presumida vinculada ao trânsito em BH. Já em Minas Gerais, ao longo do mesmo período, houve um crime do tipo. Os números são repetidos no ano anterior, em 2022, na capital mineira, e têm queda quando analisados para todo estado, quando não houve registro de ocorrências semelhantes.


Apesar de aparentemente animadores, os números podem não registrar a realidade. Isso é o que defende o advogado criminalista e especialista em Segurança Pública Jorge Tassi. Ele explica que a classificação de um homicídio, principalmente quando não há testemunhas, depende de quem o registrou. “Quando há um homicídio, temos que analisar como esse cadáver está sendo tratado dentro do ambiente estatístico. Eu já vi classificações sendo feitas de forma espúria, porque fica a critério de quem estava no local”, relata.


Em 12 de abril de 2023, o instrutor de autoescola Alessandro Gomes de Carvalho, de 48 anos, foi arrastado por um carro durante uma briga de trânsito. Ele teve morte encefálica depois de ser esmagado pelo veículo. Conforme as investigações, a vítima estava dando aula quando o outro carro se aproximou e colidiu com o seu. Logo depois da batida, o professor desceu do veículo para conversar com o outro motorista. A conversa fluía, segundo o aluno da vítima, mas quando o instrutor sugeriu registrar um boletim de ocorrência, o outro condutor entrou no carro e arrancou.


Na tentativa de fazer o motorista parar, a vítima se agarrou ao capô do carro. Ao chegar a um cruzamento, o motorista parou e Alessandro saltou na rua. Ele foi esmagado enquanto tentava pegar a chave do veículo. Na época, o delegado Rômulo Dias, titular da Divisão Especializada em Prevenção e Investigação de Crimes de Trânsito, classificou o crime como um “ato covarde”. “Estamos vivendo tempos em que a intolerância está demasiada, principalmente no trânsito.”


Em contrapartida aos números de mortes provocados por desavenças ao volante, os números de lesão corporal e vias de fato que partiram de motivações no trânsito mostram que a intolerância com “fechadas”, ultrapassagens erradas e outros problemas nas vias é bem comum. Ainda conforme dados da Sejusp, em 2022 foram lavrados 14 registros de lesão corporal. Já em 2023, de janeiro a julho, foram sete ocorrências. Quando expostos os dados de vias de fato, os números saltam para 22, no último ano, e 42, no anterior.


Para driblar as desavenças no trânsito é preciso adotar uma posição defensiva, orienta Jorge Tassi. “Não discutir, não cair na pilha da outra pessoa. Peça desculpa (...). A gente não precisa desse revanchismo”.


CULTURA ARMAMENTISTA


Para além da discussão sobre as intolerâncias no trânsito, a morte de Melissa também traz à superfície questões sobre o porte de arma de fogo. Dados do anuário do Fórum Nacional de Segurança Pública de 2023 apontam que a quantidade de registros de armas de fogo nas mãos de Colecionadores, Atiradores e Caçadores (CACs) em Minas Gerais saltou 175%, nos últimos seis anos. Em 2017, primeiro ano registrado, Minas tinha pouco mais de 54 mil armas de fogo registradas. Em 2022, o número subiu para quase 149 mil.


Jorge Tassi afirma que as armas criam uma falsa sensação de superpotência sobre o indivíduo. E o mesmo pode ser pensado sobre os carros. “A arma tem características ontológicas no ser humano. Ou seja, ela transforma a pessoa. Para portar uma arma de fogo, a pessoa tem que ter um equilíbrio emocional muito grande. O carro também tem esse efeito, ele muda completamente a pessoa. Ainda mais no trânsito, existe uma predisposição de os condutores agirem de maneira irascível, colocando a raiva à frente dos demais sentimentos”, afirma.

(Com informações de Ivan Drummond e Ethel Côrrea)

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