Berço da Guerra dos Emboabas (1707-1709) e palco de outros acontecimentos importantes de Minas Gerais, o distrito de Morro Vermelho, em Caeté, na Região Metropolitana de Belo Horizonte (RMBH), guarda muitas histórias nas palavras e na memória dos moradores e reserva surpresas e mistérios aos olhos dos visitantes. Se a quaresma começa com um banho de cachaça na imagem de Cristo, logo na quarta-feira de cinzas, há, ao longo do período que antecede o tríduo pascal, um cortejo que remonta aos tempos coloniais. Sempre nas noites de sábado, ocorre a Procissão de Encomendação das Almas, com os fiéis percorrendo as ruas em direção ao cemitério local.
“É um momento de oração por aqueles que já partiram. Rezamos pelas almas”, conta a dona de casa Patrícia Regina Sanches, que participa há 30 anos da caminhada religiosa e se tornou uma das organizadoras do cortejo”. O ritual pelas almas se repete no Dia de Finados, em 2 de novembro, mas Patrícia, nascida e criada em Morro Vermelho, teme que a tradição termine, pois cai, ano após ano, o número de presentes. “Algumas pessoas sentem medo. Na verdade, rezamos pelas almas e para que elas intercedam por nós junto a Deus”, ressalta.
Da entrada da Igreja Matriz Nossa Senhora de Nazaré, templo do século 18, é possível ver um amplo gramado, as montanhas circundando o distrito e cenas bem bucólicas de uma comunidade de 1,3 mil habitantes, distante 10 quilômetros, por estrada de terra, do Centro de Caeté. No final da manhã, meninos e meninas saem da escola, um jovem chega a cavalo, um amigo cumprimenta o outro. O tempo parece passar devagar.
Sentada diante da porta principal do templo barroco, Patrícia, com voz afinada, mostra um trecho da canção que homens e mulheres entoam durante a procissão: “Alerta, alerta, pecador, alerta! Acordai quem está dormindo. Nos alembremos das benditas almas. Olhai que o sono é irmão da morte. Um pai-nosso, uma ave-maria. Sejais pelo amor de Deus”.
COMEÇO E FIM
Ao longo do cortejo, os fiéis fazem paradas, que podem ser cinco, sete ou nove, sempre um número ímpar, conforme manda a tradição de mais de 200 anos. “Começamos no Bairro Serafim e seguimos até a porta do cemitério, num percurso que dura de uma hora a uma hora e meia”, conta a moradora.
Em abril de 2009, a reportagem do Estado de Minas acompanhou o cortejo, que ainda saía à meia-noite em ponto, tinha o povo carregando velas e era organizado por Maria Salomé Leal, a dona Méa, já falecida. “Hoje, temos no máximo nove pessoas, e ninguém vai com velas”, revela Patrícia.
Na noite silenciosa e fria daquele abril de 2009, em que se ouviam apenas a recitação do terço e a música alertando “os pecadores”, os fiéis paravam nas encruzilhadas, repetindo o ofício de rezar pelas almas. Na conversa com o repórter, dona Méa, então com 79 anos, relatou que começou a participar, ainda criança, da Procissão de Encomendação das Almas. E já notava diferenças entre as épocas. “Antigamente, era um pouco diferente. Uma turma descia a rua, outra subia. E ninguém podia se encontrar. Um lado fingia que não estava enxergando o outro.”
Também nascida e criada em Morro Vermelho, Adriana Pinheiro Leal ainda se intriga com um fato, mesmo conhecendo a tradição desde menina. “O número de encruzilhadas precisa ser sempre ímpar. Tudo indica que isso veio com os portugueses da região de Trás-os-Montes”. Adriana faz coro às orações pelas almas. “Rezo pelas pessoas que estão morrendo nas guerras...na Ucrânia, em Israel.
Banho abre a quaresma
Conversar com os moradores de Morro Vermelho é quase viajar a outros tempos de Minas. Sempre há uma história, um episódio, um quadro de memórias pendurado na paisagem. Entre as cerimônias de mais destaque, e que todo mundo comenta, está o banho de cachaça na imagem do Cristo da Matriz Nossa Senhora de Nazaré. Aberta apenas aos homens, acontece ao meio-dia da quarta-feira de cinzas, o primeiro dia da quaresma.
Em silêncio absoluto e total sinal de respeito, o grupo masculino, de várias gerações, entra no templo, carregando garrafas de aguardente, da mesma forma como fizeram seus antepassados. O ritual bicentenário, já acompanhado pelo EM, consiste em tirar do altar a imagem de Nosso Senhor dos Passos, despi-la e depois dar o banho de cachaça em toda a escultura de cedro, do século 18. Conforme a tradição, o objetivo é evitar que a madeira se deteriore. Coincidência ou não, trata-se da única peça da matriz não atacada pelos insetos ou destruída pela ação do tempo.
A cachaça que escorre é recolhida em gamelas, e, ao final do ritual, os participantes colocam o líquido em garrafas para ser usado com diversas finalidades, incluindo a indicação de algumas gotas para quem quer parar de consumir bebidas alcoólicas. Na Sexta-feira da Paixão (29), às 16h30, haverá banho, desta vez na imagem de Senhor Morto, em momento aberto ao público, na Matriz Nossa Senhora de Nazaré.
PROGRAME-SE
No distrito de Morro Vermelho, em Caeté
Dia 23, sábado, às 23h
Procissão de Encomendação das Almas
Dia 24, às 19h
Procissão do Encontro, com a imagem de Senhor dos Passos saindo da Capela Nossa Senhora do Rosário e a de Nossa Senhora das Dores, da Matriz Nossa Senhora de Nazaré. O encontro ocorre na ponte da Rua José Evangelista Marques.
Em Caeté, na sede do município
Dia 24, Domingo de Ramos, às 7h
Bênção dos ramos nas paróquias; às 8h, Missa de Ramos no Poliesportivo. No santuário basílica da Serra da Piedade, haverá missas às 9h, 11h e 15h.
Dias 25, 26 e 27, às 19h
Missa nas paróquias São Francisco de Assis, Nossa Senhora do Bom Sucesso, São João Paulo II e Nossa Senhora Mãe de Deus, seguida de procissão (Nossa Senhora, na segunda-feira; de Nosso Senhor, na terça; e do Encontro e dos Passos, na quarta). Na basílica, na Serra da Piedade, haverá missa às 9h e 15h, com oração das vésperas, às 19h.
Dia 28, quinta-feira santa, às 19h
Missa nas paróquias São Francisco de Assis, Nossa Senhora do Bom Sucesso, São João Paulo II, Nossa Senhora Mãe de Deus, Santuário Basílica e Nossa Senhora de Nazaré, com rito do Lava-pés e transladação do Santíssimo e adoração até a 0h.
Dia 29, Sexta-feira da Paixão, às 19h
Sermão do Descendimento da Cruz, com encenação da Paixão de Cristo e Procissão do Enterro do Senhor.
Dia 30, Sábado Santo, às 19h
Bênção do Fogo Novo e vigília pascal em todas as paróquias
Dia 31, Domingo de Páscoa, às 8h
Missa em todas as paróquias, seguida da Procissão do Triunfo de Nossa Senhora.