A força das palavras ampara a fragilidade dos sentimentos, enquanto o coração se abre para acolher aqueles e aquelas que, a duras penas, mantêm viva a chama da esperança. Em outro cenário, as mãos se estendem para oferecer o alimento, e os olhos acompanham, com carinho, a procura pela vida digna. Buscando a paz na Terra com ações de boa vontade, mineiras voluntárias fazem sua parte para um mundo equilibrado, menos traumático e, acima de tudo, solidário. Neste Dia Internacional da Mulher, o Estado de Minas mostra o cotidiano de quatro moradoras de Belo Horizonte, de gerações distintas, sempre dispostas a usar a voz, a determinação e o empenho para cumprir sua missão.


PILARES DA MISSÃO

A coragem norteia os caminhos da psicóloga Ana Lúcia de Souza, de 66 anos, nascida em Mantena, no Vale do Rio Doce, e residente na capital desde a adolescência. De voz suave e firme, a mineira, mãe de uma advogada de 24 anos, se declara uma pessoa sempre pronta a ajudar: “Sou corajosa...e se precisar chorar, choro junto com quem está sofrendo, precisando de apoio”.


Integrante da Pastoral Carcerária da Arquidiocese de BH, a qual coordenou até dezembro, Ana Lúcia e equipe de voluntários visitam periodicamente 20 presídios (masculinos e femininos) e quatro unidades do sistema Apac (Associação de Proteção e Assistência ao Condenado) existentes no entorno da capital. “Nossa missão se sustenta em dois pilares: a evangelização, levando a palavra de Deus às pessoas privadas da liberdade, a catequese, e a celebração eucarística. E também a promoção da dignidade humana, com um aspecto muito importante que é a escuta.”




Em mais de uma década de atuação na Pastoral Carcerária – “Comecei na Páscoa de 2013”, recorda-se –, Ana Lúcia já viu cenas de tristeza extrema e ouviu relatos dos quais não se esquece. “Certa vez, uma mulher idosa me disse que furtou alimentos para dar aos netos, que estavam com fome. Foi presa em flagrante, mesmo que os alimentos tenham sido apreendidos na hora”, conta a voluntária, que, ao ouvir a história da boca da detenta, não teve outra reação a não ser “engolir o choro”.


Na porta da Penitenciária feminina de Belo Horizonte, no Bairro Horto, na Região Leste, Ana Lúcia revela que nesta sexta-feira (8/3) a equipe da Pastoral Carcerária vai levar kits de higiene tanto a essa unidade como ao presídio de Vespasiano, na Grande BH, e destinar repelente para as crianças do Centro de Referência à Gestante Privada de Liberdade e a uma Apac feminina. “Basicamente, para essas ações, realizadas ainda no Natal, no Dia das Mães e na Páscoa, é fundamental ter um coração aberto, sem fazer julgamento de ninguém”, acredita.


Coração aberto também na hora de acolher pessoas em casa. Por duas vezes, a mineira hospedou familiares de detentos. Na primeira, foi a mãe de uma jovem do Sul de Minas, sem lugar para ficar em Belo Horizonte, ainda mais que veio com a netinha de cinco anos. “Ficaram lá em casa, ajudei no que foi possível, pois não tinham recursos. O curioso é que a menina gostou tanto que não queria ir embora”, lembra-se. Depois, recebeu em casa a mãe de uma moça de Florianópolis (SC), presa com o companheiro por posse de drogas.


Certa de que o mundo tem solução enquanto houver esperança, Ana Lúcia observa que, assim como viu centenas de pessoas atrás das grades, presenciou também a liberdade de muitas. “Temos uma missão importante. Atendemos a um chamado de Deus, por isso a desempenhamos da melhor e sagrada forma possível.”

BUSCA POR ACOLHER

A busca diária por acolher e dar afeto a quem desconhece o significado do ato foi um divisor de águas na vida de Franciola Campos, 52. Hoje se dedicando exclusivamente ao trabalho na associação Dynamis Social - instituição sem fins lucrativos voltada ao incentivo do esporte e cultura no bairro Olhos D’Água, na Região Oeste de BH -, a economista traça um paralelo entre quem era antes e depois de se , e crava: “encontrei meu propósito”. “Tenho uma força até maior do que quando eu trabalhava no segundo setor. É por uma satisfação, por um propósito, e isso muda tudo”, afirma.


Na associação, além de dar aulas, Franciola cuida de toda parte financeira. O projeto, idealizado por seu marido, Cláudio Tenório, atende crianças entre 7 e 13 anos proporcionando acesso gratuito a aulas de tênis, informática, inglês, espanhol, entre outros. Franciola não mede elogios aos alunos e fala com orgulho das conquistas deles. E é isso, para ela, que compensa o esforço diário. “É trabalhoso, cansativo, mas vale a pena”, afirma. Hoje, a associação atende cerca de 300 crianças.


GRATIDÃO COMO TROCA

Essa missão de fazer algo sem esperar retorno financeiro sempre fez parte de sua personalidade, e transmitiu isso também à filha. Mãe solo, ela fazia questão de envolver a menina, hoje com 21 anos, em seus trabalhos voluntários. “A gente ia em asilo, fazia comida e distribuía. Acho que hoje os pais se preocupam mais em formar os filhos nas habilidades profissionais. Mas, aquela habilidade humana, valores, sentimentos, ter coragem, de fazer bem para o outro está sendo esquecido”, afirma.


Nascida no interior de Minas Gerais e filha de professores, ela se descreve como uma pessoa inquieta que sempre teve em si a “vontade de mudar o mundo”. Depois de conhecer Claudio, o sentimento cresceu. “Você começa a fazer um (voluntariado), parece que fica pouco. Isso é muito maior do que qualquer valor financeiro. Quando você se deixa entrar nesse lugar, que a gratidão é a grande moeda de troca, é até difícil definir, você passa a se sentir realmente importante. Hoje, eu sou outra pessoa”, afirma.


O remédio para as mazelas do mundo, para ela, é as pessoas lembrarem que são humanas. “Ninguém vive sozinho. Se a sociedade está adoecida, como você vai ficar bem se não faz nada por ela? Tem que se preocupar com as outras pessoas, tem que se preocupar com o bem-estar do outro. Depois da pandemia, a gente vive várias bolhas”, avalia.


INQUIETAÇÃO PARA MUDAR O MUNDO

Essa mesma inquietação para mudar o mundo descrita por Franciola também faz parte de Lorrayne Batista Costa, de 28. Nascida e criada no Cabana do Pai Tomás, na Região Oeste de BH, a jornalista se diz ela mesma fruto de projetos sociais que foram fundamentais para que se tornasse quem é hoje. “A minha família é toda do Cabana. É algo que faz parte de mim querer ajudar os outros, correr atrás. A gente já viveu outros momentos aqui que não foram de tanto sossego, igual é hoje. Por isso, eu levo comigo esse questionamento do que eu posso fazer para que essa realidade que vivi aqui dentro seja diferente”, conta.


Daí veio também a ideia de criar um veículo de comunicação específico para os moradores: o Conecta Cabana. “Essa vontade da comunicação e o social sempre andou comigo, e eu não sabia uma forma de colocar isso para funcionar. Hoje, a página, que começou com meu TCC na faculdade, tem o reconhecimento da comunidade e é uma ferramenta para valorizar a cultura dentro das favelas, em especial o Cabana, e representar os moradores”, afirma.


Hoje membro da Associação de Moradores do Aglomerado Cabana, Lorrayne também se dedica à luta por direitos dos moradores e é ativa, há mais de seis anos, em projetos sociais na região. Para ela, as iniciativas desenvolvidas pelos próprios moradores reverberam e fortalecem a cultura da periferia. “A vida inteira a gente escuta o pessoal falando da favela de fora para dentro. A gente consegue fazer essa modificação. Porque eu entendi que quem tem comunicação tem tudo. Se a pessoa sabe dos seus direitos, ela vai lutar por eles”, completa.


Letícia Rachi, de 47, faz parte de uma rede de voluntários que leva cuidados paliativos a doentes no fim da vida, no Cabana do Pai Tomás, muitos dos quais vivendo em completo abandono social. A cada visita, ela diz voltar com a mesma certeza: o maior beneficiado é ela mesma. “Eu aprendo muito com eles, a ser mais resiliente, empática, compassiva. Quando a gente chega em uma situação de presenciar uma extrema vulnerabilidade, e as pessoas estão sorrindo, isso muda nossa visão de mundo”, afirma.


As visitas acontecem uma vez por mês, sempre aos fins de semana. “Às vezes eles só precisam de uma palavra, de alguém que esteja ali para escutar, não necessariamente só com o atendimento clínico. São problemas tão graves, tão estruturais, que o que a gente vai fazer é muito pouco, mas que, para eles, faz uma diferença muito grande”, afirma. Letícia conheceu o projeto há dois anos através do convite de uma amiga, Gabriela Raposo, uma das idealizadoras da iniciativa, que foi inspirada em um modelo de comunidade implantado no Rio de Janeiro.


Essa missão de estender a mão ao outro, no entanto, vem desde muito nova. Uma simples caminhada na rua e o encontro com pessoas em situação de rua - que, para muitos, são invisíveis - desencadeia em Letícia um turbilhão de sentimentos. “Isso me toca muito. A fome me toca muito. Eu não consigo não me incomodar, a dor do outro me impacta muito. Não consigo ser indiferente”, disse. Quando adolescente, fez sua primeira visita voluntária na ala de queimados do Hospital João XXIII, na Região Centro-Sul de BH. “Aquilo me impactou muito”, conta.


De lá para cá, não deixou de se envolver em ações sociais, e foi tão significativo que decidiu cursar Serviço Social. “Eu não queria ajudar, nem gosto dessa palavra, acho até que, muitas vezes, ela é usada de forma pejorativa. Eu queria oferecer acesso a direitos. Sempre quis isso ao longo da minha trajetória”, conta ela, que hoje atua como gestora de saúde.

SÍMBOLO DA LUTA POR IGUALDADE

Na década de 1970, o 8 de março foi instituído pela Organização das Nações Unidas (ONU) como o Dia Internacional da Mulher para lembrar as conquistas sociais, políticas e econômicas femininas, independentemente de divisões nacionais, étnicas, linguísticas, culturais, econômicas ou políticas. A ideia de criar uma data específica surgiu entre o final do 19 e o início do 20, nos Estados Unidos e na Europa, no contexto das lutas por melhores condições de vida e trabalho, e pelo direito de voto. A primeira reverência ao dia se deu em 28 de fevereiro de 1909, nos EUA, seguida de manifestações e marchas em outros países europeus.

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