Itatiaiuçu – Barragens de mineração com capacidades muito abaixo das que garantem vazões sob chuvas extremas. Reservatórios que, mesmo dentro do patamar de maior capacidade, têm estruturas fragilizadas, sem garantias de estabilidade. A situação dos barramentos do Quadrilátero Ferrífero em Minas Gerais preocupa ambientalistas e especialistas ouvidos pela reportagem do Estado de Minas, sobretudo ante as previsões de que o aumento da temperatura global provocará chuvas curtas mais volumosas, capazes de trazer danos e até provocar um rompimento de estruturas, como mostrou a edição de ontem (11/3) do Estado de Minas. A Agência Nacional de Mineração (ANM) afirma que essas projeções devem ser apuradas e incorporadas às estruturas. A Fundação Estadual de Meio Ambiente (Feam) informa que trabalha com os volumes de chuvas apurados e faz fiscalizações nos períodos de seca e chuvoso.


Nada menos do que 45% das barragens da região com maior concentração de barramentos de Minas Gerais estão abaixo do mais seguro patamar de vazão para chuvas extremas ou grandes volumes em longo espaço de tempo, sendo 17% figurando no nível de menor capacidade ou com informações técnicas consideradas não confiáveis pela ANM, ou mesmo sem dados sobre a sua capacidade de extravasar água em excesso que ingresse no reservatório. E mesmo algumas das que estão bem nesse quesito preocupam , por falta de garantias ou danos estruturais, como é o caso da Barragem Serra Azul, de mina de mesmo nome operada pela ArcellorMittal em Itatiaiuçu.


Um aumento do volume médio das tempestades de 10% a 33% nas áreas de barragens, pilhas, diques e minas do Quadrilátero Ferrífero é previsto caso a temperatura global se eleve entre 2°C e 4°C. As projeções de ampliação média dos volumes de chuvas em 24 horas foram feitas com base em dados do Painel Intergovernamental sobre Mudanças Climáticas (IPCC) da ONU, considerando os meses de dezembro e janeiro, que são aqueles com maior volume de precipitações, usados pela reportagem do Estado de Minas sob orientação de especialistas. Foram considerados os municípios com maior concentração de barragens, somando 187 estruturas: Barão de Cocais, Brumadinho, Congonhas, Itabira, Itabirito, Itatiaiuçu, Mariana, Nova Lima, Ouro Preto, Sabará e Santa Bárbara.


Quando os extravasores de uma barragem são planejados, é preciso utilizar as configurações de projeto mais conservadores possíveis para aquele regime de chuvas e de cheias específico, sendo a vazão limite a que podem ser submetidos sem comprometimento da estrutura calculada tendo como base a precipitação máxima de recorrência em um determinado tempo. Segundo a Agência Nacional de Mineração (ANM), as mais seguras são as de Cheia Máxima Provável (CMP) – também Precipitação Máxima Provável (PMP) – ou “recorrência decamilenar”, nas quais a possibilidade de uma chuva superar a vazão do projeto é de 0,01% ou a cada 10 mil anos. Levando-se em conta os 11 municípios levantados pela reportagem com base na ANM, estruturas com essa capacidade somam pouco mais da metade, chegando a 102 (55%).


Uma categoria de vazão abaixo é a das barragens de “recorrência milenar”, com 36 (19%) construções que teriam a chance de serem suplantadas por precipitações de mil anos, ou 0,1%, fator que confere dois pontos na matriz de riscos da ANM. Em seguida, as de recorrência de 500 anos somam 17 (9%) estruturas, com possibilidade estimada em 0,2% de uma chuva extrapolar a drenagem, com o risco cinco de pontos pela ANM. Com 10 pontos e o maior risco de não suportar uma tempestade ou cheia vêm as classificadas como menos de 500 anos, com informações não confiáveis ou sem informações, que chegam a 32 (17%) barragens, sendo a sua chance de não resistir estimada como “maior do que 0,2%”, segundo a ANM.


A base para cálculo do valor de uma chuva decamilenar na Grande BH, em 2022, segundo resposta da Fundação Estadual de Meio Ambiente (Feam) à Assembleia Legislativa de Minas Gerais (ALMG) a questão sobre empreendimento entre Nova Lima e Brumadinho, foi de 300mm a 350mm, enquanto a CMP é de 350mm a 400mm. Os demais tempos de recorrência (milenar, TR 500 anos e abaixo) variam com as localizações, mas são inferiores e menos seguros, com a sua categoria representando barragens de baixo, médio e alto risco pela matriz de classificação da ANM.

 

“MUITO PREOCUPANTE”

 

“É muito preocupante saber que 17% das barragens têm uma capacidade de vazão no nível mais baixo ou que faltam informações (a muitas delas). Precisamos saber onde estão. Isso é importantíssimo de se investigar. Dependendo do local onde essa barragem está, (em caso de um rompimento ou inundação) pode até não causar morte, mas contaminar rios com os rejeitos vazados, cortar o fornecimento de água das cidades. Tenho uma grande preocupação a montante (na cabeceira) do Rio das Velhas. Se cair uma barragem dessas, 70% do abastecimento de Belo Horizonte pode ficar comprometido e 50% da Grande BH, também”, afirma o engenheiro e presidente do Instituto Fórum Permanente São Francisco (FPSF), Euler Cruz.


Ele adverte que os percentuais de aumento de volumes de chuvas que o IPCC mostra são das médias e não das máximas, que podem ampliar as precipitações devido às mudanças climáticas. “De qualquer forma, esse aumento, ainda que seja dentro da média, pode ocasionar ruptura de barragens por galgamento (quando o conteúdo passa por cima do barramento), se o vertedouro não for suficiente. Se a chuva durar mais, pode encharcar o solo aos poucos e isso provocar liquefação dos rejeitos e da estrutura, que é um outro fator para o rompimento”, salienta Cruz.


GARANTIAS INSUFICIENTES

 

Mesmo enquadradas no tempo máximo de recorrência (CMP ou PMP e decamilenar), algumas barragens preocupam devido ao fato de se encontrarem em níveis de emergência por falta de garantias de estabilidade ou por danos estruturais, com necessidade de reparos, às vezes até tentados e não conseguidos. Com a possibilidade de incremento das chuvas com o aumento das temperaturas globais, sua capacidade de vazão pode não ser garantidora da solidez da estrutura, avaliam especialistas. Uma delas é a Barragem Serra Azul, da mina de mesmo nome, operada pela ArcelorMittal, em Itatiaiuçu, na Grande BH. O reservatório de rejeitos de minério de ferro é um dos três piores do Brasil, por se encontrar sem garantias técnicas e no mais alto patamar de emergência, o nível 3, classificado como “rompimento iminente”.


Devido ao risco de vida, 58 famílias foram removidas de casas no Bairro Pinheiros e uma barreira para conter os rejeitos (Estrutura de contenção a jusante ou ECJ) está sendo erguida a dois quilômetros da barragem. O barramento desponta ao pé da serra, acima da copa de uma mata fechada. Um gigante de 85 metros de altura, armazenando 5 milhões de metros cúbicos de rejeitos, metade do que foi desprendido em Brumadinho (em 2019), tirando a vida de 272 pessoas.


De acordo com a ANM, um rompimento seria uma tragédia com potencial de atingir até 100 pessoas, sem falar em possível bloqueio da BR-381 (Fernão Dias) e um impacto ambiental significativo, com a possibilidade de contaminar a represa de Rio Manso, principal reservatório de água da Região Metropolitana de Belo Horizonte. Segundo a ANM, o estado de conservação mais atual mostra que há umidade ou surgências nas áreas a jusante (abaixo da estrutura), trincas e abatimentos sem implantação de medidas corretivas necessárias, falhas na proteção dos taludes (encostas) e paramentos, além da presença de vegetação arbustiva.


A construção da ECJ, a barreira para os rejeitos a dois quilômetros da barragem, só deve ficar pronta em 2025, segundo última expectativa, calculada antes das paralisações provocadas pelas evacuações de trabalhadores ocorridas em 8 de maio de 2023, quando o Ministério Público do Trabalho conseguiu liminar da Justiça do Trabalho para que os funcionários das áreas de risco da barragem fossem retirados, por falta de garantias de segurança. A mineradora não respondeu à reportagem se o prazo foi recalculado.


Apenas quando a ECJ estiver pronta e sendo ainda assim capaz de reter o material que se desprenda do reservatório em caso de rompimento é que a barragem sem garantias vai poder começar a ser desmanchada e seu conteúdo, removido em seguida. A Barragem da Mina de Serra Azul também é a única estrutura em nível 3 de emergência que ainda não tem uma barreira contra o rompimento, medida considerada essencial para a segurança das populações abaixo dela.


Essa situação crítica de impasses e incertezas atormenta o caseiro Guilhermino Alves Pereira Rocha, de 68 anos, que mora ainda precariamente em uma área comprada pela mineradora euroindiana. “A gente vive aqui em uma pressão constante, de que a qualquer momento a barragem pode se romper. Não tem quem tenha tranquilidade. Qualquer ruído estranho tira o nosso sono”, desabafa Guilhermino. “Sofri danos à saúde, morais, à renda e à moradia”, afirma.


OUTRO LADO

 

Se as mudanças climáticas não forem contidas e o aquecimento global impactar no Quadrilátero Ferrífero em uma média de 9,4% a 32,8% mais volume de chuvas com duração de até 24 horas, como mostram as modelagens do IPCC/ONU, tragédias poderão ocorrer, como rompimentos e desabamentos nas áreas de minas. Medidas urgentes precisam ser tomadas, na visão do engenheiro e presidente do Instituto Fórum Permanente São Francisco (FPSF), Euler Cruz, autor da Nota Técnica 06/2023 enviada ao poder público e mineradores sobre as fragilidades das estruturas.


“A primeira coisa que deve ser feita é rever o projeto de todos os vertedouros, como fizeram na Barragem Santa Bárbara, da Vallourec, em Piedade Paraopeba, onde aumentaram o tamanho do vertedouro a pedido do Ministério Público. Pode ser que seja necessário aumentar a capacidade de armazenamento do reservatório. Se os maciços não estiverem projetados para resistir o suficiente, precisam ser reforçados. Os taludes e encosta teriam de ser muito bem inspecionados e, onde necessário, estabilizados”, diz Cruz. E completa: “As pilhas são um problema imenso. Tem sido divulgada a disposição de rejeitos em pilhas como se ela fosse a solução para eliminar barragens, mas pelo que temos visto, os problemas não acabam, devido às fragilidades dessa solução”.


Segundo a ANM, “os efeitos decorrentes das mudanças climáticas nos padrões de chuvas intensas e no desempenho das barragens e estruturas anexas deverão ser gradualmente incorporados e tratados com as revisões periódicas obrigatórias para todas as estruturas. (...) No que tange aos sistemas extravasores das barragens de mineração, a ANM se inspirou na Associação Brasileira de Norma Técnica - ABNT NBR 13.028/2017, fixando, em vez de faixas, o valor mais conservador para o período de retorno (de chuvas e cheias) do sistema extravasor”.


Segundo a Fundação Estadual do Meio Ambiente (Feam), “as auditorias de segurança de barragem são realizadas por auditores credenciados independentes, que avaliam aspectos geológicos e hidrológicos, elencando recomendações para garantir a estabilidade no contexto real em que a estrutura se encontra”. Em nota, disse ainda que “são recorrentes as recomendações de manutenção, reavaliação ou adequação das estruturas extravasoras, antes e após períodos chuvosos”.


A ArcelorMittal, que opera a Barragem Serra Azul, informou que o sistema extravasor da estrutura é dimensionado para atender tanto à Precipitação Máxima Provável (PMP) quanto à Precipitação Decamilenar. “A estrutura atende às exigências da NBR 13.028/2017 e garante a borda livre mínima recomendada contra variações de ondas. Em 2019, foi construído um canal de cintura que retira da mina as águas das chuvas”. Segundo a empresa, sistemas automatizados monitoram o nível de água no interior da barragem, vibrações, integridade da estrutura, a vazão de água e o volume de precipitações de chuvas.


“Todas as famílias que moravam na zona de autossalvamento (ZAS) foram realocadas e nenhum morador corre risco. Das 58 famílias que foram realocadas provisoriamente em imóveis alugados pela empresa, 41 já mudaram para suas residências definitivas”, informa a ArcelorMittal a respeito dos atingidos. “Para garantir a segurança do Sistema Rio Manso e da BR-381, planos de ações específicos para o período da obra da ECJ foram acordados junto à Copasa e Arteris (concessionária da 381) prevendo, dentre outras medidas, a instalação de cortinas de retenção de sedimentos no reservatório”, informa a mineradora.


PRECIPITAÇÃO DECAMILENAR

Precipitação Decamilenar é aquela cujo Período de Retorno ou Tempo de Recorrência (TR) é de 10.000 anos. Isso significa que esse valor pode ser igualado ou superado a cada dez milênios. A probabilidade de ocorrência desse evento é igual ao inverso do TR, ou seja, 0,01%.

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