Enquanto o cheiro de fumaça ainda paira sobre os destroços carbonizados, as famílias afetadas pelo incêndio às margens do Anel Rodoviário, no Bairro Goiânia, Região Noroeste de Belo Horizonte, na madrugada de quinta-feira (14/3), lutam para se reerguer das cinzas deixadas pela tragédia.
Dois sobreviventes ainda estão internados no Hospital João XXIII em estado estável. Agora, os moradores enfrentam o doloroso processo de contabilizar os prejuízos e lidar com a incerteza do futuro, sem saber quando e se poderão voltar para casa. O desastre provocou a morte do motorista do caminhão, de 54 anos, e deixou nove pessoas feridas.
Depois do choque, Vitória Ferreira, de 33, reuniu coragem e voltou à casa devastada para avaliar os estragos. “Vou empacotar as coisas, ver o que dá para salvar. Quanto aos móveis, praticamente não sobrou nada, e os eletrodomésticos foram todos perdidos”, desabafa ela, enquanto tenta recuperar o que resta da casa que vinha sendo mobiliada aos poucos, depois de um divórcio, e ainda nem tinha portas nos quartos.
O quarto por onde a família conseguiu escapar guarda as marcas do drama que ecoa na mente de Vitória, depois de ela precisar quebrar uma janela com as próprias mãos para salvar seus filhos, de 6 e 13 anos, e os pais, que moram em Ravena, em Sabará, na Grande BH, mas estavam na residência na hora do acidente.
O incêndio começou por volta das 2h30 de quinta-feira, uando o caminhão-tanque tombou e espalhou entre 15 mil e 16 mil litros de combustíveis pelas vias, ateando uma linha de fogo que percorreu três quilômetros.
Mãe de um filho autista, de 6, Vitória se viu encurralada, mesmo depois de quebrar a janela, sem conseguir tirar a família de dentro da casa em chamas. Foram os vizinhos que a socorreram, quebraram a parede e evitaram o pior. A família saiu pelo telhado.
“Estou toda esfolada aqui, cheia de machucados. Encontrei uma força dentro de mim, força de mãe, de filha”, relatou, emocionada. As cicatrizes emocionais e os traumas causados pela tragédia, no entanto, ainda vão levar tempo para sarar. “Eu, como mãe, sinto a mensagem que ele (seu filho mais novo) quer passar. Ele está bastante agitado, muito nervoso. No meio da confusão, perdemos os remédios dele e isso atrapalhou bastante sua organização”, disse.
Com determinação, ela guiou a equipe do Estado de Minas até a residência alugada, agora transformada em um cenário de guerra, onde os destroços contavam a história do fogo implacável que consumiu tudo em seu caminho.
A sala, mobiliada e pintada em dezembro do ano passado, agora se encontra desolada. Os móveis e eletrodomésticos recém-comprados foram reduzidos a cinzas. Ao chegar à cozinha, Vitória aponta para a airfryer derretida e relembra o momento em que a sorte —ou Deus— lhes sorriu brevemente: o incêndio não atingiu o botijão de gás, evitando uma tragédia de proporções ainda maiores.
“Aluguei este imóvel faz pouco tempo. Quando viemos pra cá, eu não tinha nada, só um guarda-roupa e uma cama. Eu estava toda feliz, começando a construir a minha vida com os meus filhos”, lamenta.
Agora, a família se vê obrigada a recomeçar do zero. Hospedada na quitinete da irmã, também na Região Noroeste de BH, ela enfrenta a angústia do desconhecido, sem saber ao certo o que o futuro lhes reserva.
“Hoje, ainda não sei para onde a gente vai. Se vamos para um novo lugar ou se eu volto para lá. Foi difícil pra dormir essa noite, lembrando de tudo que aconteceu. Mas agora é recomeçar”, diz. A família não pôde considerar abrigos oferecidos pela Defesa Civil devido às necessidades especiais do filho mais novo, que é autista não verbal.
“É fora de cogitação ficar no lugar coletivo ou em hotel, porque ele não se adapta, vai ficar agitado, diferentemente se fosse uma criança não atípica. Mas, graças a Deus, a gente tem ajuda dos amigos e familiares”, disse. A empresa responsável pelo caminhão-tanque ofereceu assistência à família e aos outros sobreviventes.
Gratidão pela vida
Nessa sexta-feira (15/3), enquanto a comunidade tentava absorver a magnitude da tragédia, a primeira coisa que o mecânico Josué da Rocha Filho, de 44, fez depois de receber alta do Hospital de Pronto-Socorro João XXIII, onde ficou internado para tratar das queimaduras nas mãos e uma lesão em um dos tornozelos, foi conferir o que tinha sobrado inteiro dentro de seu carro, um dos veículos carbonizados no incêndio.
E lá, ao lado do banco do motorista, encontrou um símbolo de esperança praticamente intocado pelas chamas: sua Bíblia, um sinal de que, apesar da destruição ao seu redor, sua fé permanecia incólume. “É a prova viva. O que nós passamos ali dentro, eu não desejo para ninguém. Nem para o meu pior inimigo. A cena do desespero, você pensando e até gritando, vou morrer, vou morrer, vou morrer”, disse à reportagem do Estado de Minas.
Josué e sua irmã, Cátia Lúcia, de 40, pularam de uma altura de cinco metros para escapar das chamas que engoliram parte da residência onde estavam, no segundo andar. Por sorte, a filha do mecânico, de 16, não estava em casa no momento do acidente.
Cátia, por outro lado, teve 22% do corpo queimado e uma luxação nos tornozelos devido à fuga pela janela, e segue internada no João XXIII. “Ela está bem, passou por uma cirurgia para retirar o excesso de pele queimada e deve receber alta logo mais”, adianta Josué.
Enquanto isso, a família passou a manhã contabilizando os danos, mas, apesar da perda material – armários, cama e geladeira –, todos expressa gratidão pela vida preservada.
“Só me resta pedir a Deus para correr atrás do que foi perdido. Mas, só de estarmos vivos já está bom demais. É um milagre”, disse. O imóvel foi um dos sete interditados ontem pela Defesa Civil. Até ter uma solução, a família vai ficar na casa do irmão que mora no quarteirão acima, em frente a BR-381.
Desafios e incertezas
Ao Estado de Minas, Ana Paula, de 39, e Said, de 41, descreveram o momento de desespero enquanto aguardavam ansiosamente pelo resgate do Corpo de Bombeiros.
Com o caminho bloqueado pelo incêndio que avançava rapidamente, o casal e os filhos, de 6 e 13 anos, se viram encurralados, forçados a buscar refúgio dentro do banheiro. "Ficamos ali, agarrados uns aos outros, rezando para que a água não acabasse e que a janela não cedesse sob o calor intenso", relembram.
Em visita à casa devastada, na esquina da MG-5, antiga MGC-262, a reportagem testemunhou o cenário angustiante diante dos escombros carbonizados. O quarto das crianças estava irreconhecível, com brinquedos carbonizados e derretidos, um lembrete sombrio da violência do fogo.
O teto, antes branco, agora se tingia de negro pela fuligem que se impregnara em cada superfície, e ainda pairava no ar o persistente cheiro de fumaça.
Apesar do alívio de terem escapado com vida, o caminho à frente ainda é repleto de desafios e incertezas diante da interdição de sua residência. Na sexta-feira, o casal encontrou abrigo em um hotel indicado pela JBretas, dona do caminhão-tanque envolvido no acidente.
Enquanto isso, as crianças foram acolhidas na casa da avó, onde encontraram conforto e algumas roupas para substituir as que perderam no incêndio. Agora, os moradores esperam ser ressarcidos pelos danos, que devem ser definidos depois de encontro entre representantes da empresa responsável pelo veículo e da seguradora, além do dono do terreno e advogados.
Além do trauma, a família enfrenta outro desafio: o medo constante de ter sua casa saqueada. “Ontem meu irmão ficou aqui para vigiar”, contou Said à reportagem. O receio não é infundado, pois no dia anterior, fios da Cemig foram roubados na rua, aumentando ainda mais a sensação de vulnerabilidade da comunidade.
Suporte da empresa
Por meio de nota, a JBretas disse ter garantido suporte às vítimas, fornecendo apoio emocional, recursos materiais, como mantimentos e medicamentos, e até mesmo alojamento emergencial.
“Desde o momento em que tomamos conhecimento do acidente, estamos empenhados em prestar toda a assistência possível às pessoas afetadas (material e psicológica). No dia seguinte ao ocorrido, nos reunimos com os moradores afetados pela tragédia, comprometendo-nos a encontrar soluções e oferecer o devido ressarcimento pelos danos causados. Estamos trabalhando incansavelmente para garantir que todos os afetados recebam o apoio necessário e sejam devidamente compensados”, diz o texto.