Em meio à pior epidemia de dengue da história, Minas Gerais parece ter atingido o pico de casos da doença, situação que, se cria a expectativa de que os números comecem a cair, no momento ainda se reflete em elevada quantidade de diagnósticos todos os dias nos balanços oficiais. Até sexta-feira (22/3), o estado acumulava oficialmente mais de 713 mil casos prováveis da doença. O total representa mais de 190 mil doentes em relação ao registrado no fim da epidemia de 2016, até então a mais forte no estado. Mesmo diante da expectativa de queda, com quantidades tão elevadas de doentes o sistema de saúde segue sob pressão, que se reflete também na demora para liberação de resultados de exames e incerteza diante da aproximação do período de doenças respiratórias. Diante desse cenário, o Estado de Minas conversou com o infectologista Carlos Starling, consultor científico da Sociedade Brasileira de Infectologia, vice-presidente da Sociedade Mineira de Infectologia e uma das referências na área, para esclarecer algumas das questões que permanecem após meses enfrentando os males transmitidos pelo mosquito Aedes aegypti, que além da dengue é vetor da chikungunya e da zika. Para ele, o quadro é muito mais grave do que apontam as estatísticas oficiais e ainda é arriscado prever um alívio na epidemia. Confira os principais pontos da entrevista

 

O secretário de estado de Saúde, Fábio Baccheretti, previu que começaríamos a observar diminuição de casos de dengue a partir do fim de março. Como o senhor analisa o comportamento da epidemia? É possível que tenhamos menos infecções a partir desta semana?

As mudanças climáticas introduziram um elevado nível de imprevisibilidade na epidemia desse ano. Eu não ousaria fazer essa aposta. Os números refletem cerca de um quinto do que realmente está acontecendo. Ou seja, considerando a subnotificação de casos registrada nas epidemias anteriores, o número real deve ser cinco vezes maior que o oficial. Portanto, se o número de casos tiver tendência de queda, será por exaustão de pessoas susceptíveis ou prolongamento do ciclo do mosquito, o que ocorre, naturalmente, com a queda da temperatura a partir de maio. Comungo com a esperança do secretário, mas não tenho certeza de que isso ocorrerá. Independentemente de qualquer tendência, a população deve continuar alerta, se prevenindo e combatendo os focos do mosquito o ano inteiro.


Quanto ao número de mortos pela doença, os casos em análise são muito maiores do que as confirmações. A que se deve esse atraso? É possível diminuir o tempo de investigação? Como?

Primeiro, isso se deve ao elevado número de óbitos que precisam ser analisados e confirmados. A ficha de coleta de dados para confirmação das mortes é enorme e preenchida manualmente nos hospitais, onde o fluxo de pacientes é cada vez maior, o que também impede uma resposta rápida. Segundo, está ligado à precariedade do sistema de vigilância epidemiológica que temos em níveis federal, estadual e municipal. Faltam recursos humanos e tecnologias que permitam o processamento ágil dessas informações — cruciais para a gestão dessa e de outras crises sanitárias que enfrentaremos. Parece até que nossos gestores não aprenderam nada com a pandemia da COVID-19.


O Censo 2022 mostra que a população de Minas Gerais é de 20.539.989 pessoas, sendo 10.524.280 (51,2%) mulheres e 10.015.709 (48,8%) homens. Até 20 de março, havia 111 mortes confirmadas por dengue, das quais 67 de mulheres. Há explicações para isso? A proporção da população é um fator determinante?

Essa questão ainda carece de uma investigação cuidadosa. Algumas hipóteses podem ser levantadas, e uma delas é o fato de as mulheres serem maioria. Isso faz com que a proporção se reflita no número de óbitos, mas não me parece tão simples. Mulheres no período de ovulação e as grávidas têm temperatura um pouco mais elevada do que os homens. Sabemos que esse é um fator que atrai mais os mosquitos. Além disso, o calor intenso, muitas vezes, leva as mulheres a exporem mais as pernas, uma região alvo do Aedes aegypti. Considerando que a maioria dos focos do mosquito são encontrados dentro das residências, uma pesquisa revelou que as mulheres dedicam aproximadamente 17 horas semanais aos afazeres domésticos, além de suas obrigações fora de casa, enquanto os homens destinam cerca de 11 horas a essas atividades. Isso implica uma exposição prolongada aos focos de reprodução do mosquito por parte delas. Uma vez que um mosquito pode transmitir o vírus para várias pessoas da mesma família, é comum serem as mulheres as principais responsáveis pelos cuidados. Elas também ficam doentes, mas devido ao excesso de trabalho, acabam procurando assistência médica tardiamente, o que representa um fator de risco para o agravamento da doença.


Ainda sobre o número de mortos, a maioria tinha alguma doença associada, sendo hipertensão a principal. Como a dengue age no organismo das pessoas e de que maneira os hipertensos ficam mais suscetíveis? Há maneiras de se prevenir?

Pessoas com comorbidades mal controladas são mais suscetíveis a qualquer infecção, bacteriana ou viral. A infecção pelo vírus da dengue é uma doença sistêmica, que acomete todos os órgãos. Porém, dentro da corrente sanguínea, a inflamação gera uma maior permeabilidade dos nossos vasos, fazendo com que o líquido saia desse espaço para os tecidos. Isso gera desidratação e maior viscosidade dentro dos vasos. Esse fenômeno, para pacientes idosos, hipertensos e cardiopatas em geral, compromete o coração, os rins, o fígado e a própria medula óssea, que produz os elementos do sangue, como as plaquetas. Todas essas alterações, ao mesmo tempo, fazem com que esses indivíduos tenham um prognóstico pior do que aqueles que não possuem essas doenças, ou que as têm de forma bem controlada. Assim, pessoas com essas comorbidades devem procurar manter um bom controle das suas doenças e se proteger melhor, mantendo a vacinação em dia contra as doenças evitáveis por imunização. Além disso, no caso da dengue, se protegendo da picada do mosquito.


O vírus do tipo DENV2, que está circulando agora, é mais perigoso que os outros?

Sim. O DENV 2 é o mais agressivo entre os quatro tipos de vírus da dengue existentes. A circulação desse tipo de vírus, principalmente após a circulação de outro sorotipo, está associado a quadros clínicos mais graves. Esse pode ser outro fator que esteja contribuindo com o aumento da letalidade da doença na atual epidemia.


A febre chikungunya registrou muitos casos este ano e no ano passado. Há explicação para dois anos seguidos de alta incidência?

A chikungunya, infelizmente, tende a aumentar nos próximos anos. Ainda temos um controle muito precário do Aedes aegypti, que pode transmitir as três arboviroses ao mesmo tempo: chikungunya, zika e dengue. E como há grande parte da população suscetível, o vírus encontra um espaço amplo para evoluir.


Qual a situação da zika no estado? A SES afirma que desde 2018 não foram confirmados casos por método direto, o RT-PCR. Sendo assim, o que explica termos 14 confirmados? E procede não haver registro há seis anos? Além disso, as grávidas, pelo menos, não deviam testar para zika toda vez que tiverem sintomas de arboviroses?

Certamente estamos tendo uma subnotificação da infecção também por esse vírus. O número de casos registrados é muito pequeno, mas as condições que propiciam aumento dos casos de dengue e de chikungunya ao longo desse período também favorecem a zika. Então, a falta de diagnóstico e percepção da doença faz com que o número de testes seja pequeno (...). E, claro, as mulheres grávidas com sintomas de arboviroses deveriam estar sendo testadas para a zika. Isso deveria ser protocolo tanto para rede pública quanto na rede privada.


Quais as principais sequelas que cada uma das três arboviroses pode deixar?

A dengue, além de poder levar o paciente à morte, pode deixar sequelas como encefalite com alterações neurológicas, miocardite, alterando quadros cardiológicos – principalmente pré-existentes – e insuficiência renal. Já na chikungunya, cerca de 20% dos pacientes permanecem com dor crônica articular durante meses, impossibilitando o trabalho durante o período. Ela também pode gerar quadros neurológicos graves, como a encefalite. E a zika, apesar de parecer uma doença mais branda, vimos em uma epidemia há alguns anos, no Nordeste, uma quantidade enorme de pacientes com sequelas neurológicas, principalmente recém-nascidos cujas mães foram infectadas durante a gestação.


Geralmente, em casos de dengue, os pacientes são orientados a retornar em cinco dias para fazer teste, mas muitos não voltam. Qual a importância, para o doente, de voltar e descobrir se teve mesmo alguma arbovirose?

Quando o paciente não retorna, o caso vai ficar perdido, ou seja, não tem confirmação da doença. Para o indivíduo isso é ruim, porque sabendo que já teve dengue uma vez, se houver uma segunda infecção, ele pode ter quadros mais graves. Também é importante para o Estado confirmar o diagnóstico, porque é com dados epidemiológicos corretos que se tem uma verdadeira dimensão do problema e das medidas de controle em termos de saúde pública.

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