Os imóveis LOCALIZADOS NA RUA CONGONHAS FORAM tombados em 2007, serviram de moradia e abrigaram tradicionais bares da boemia de BH ao longo das três décadas -  (crédito: Leandro Couri/EM/D.A. Press)

Os imóveis LOCALIZADOS NA RUA CONGONHAS FORAM tombados em 2007, serviram de moradia e abrigaram tradicionais bares da boemia de BH ao longo das três décadas

crédito: Leandro Couri/EM/D.A. Press

Há quase três décadas, as casas coloridas e de arquitetura singular da Rua Congonhas, no Bairro Santo Antônio, na Região Centro-Sul de Belo Horizonte, foram o cenário do filme "O Menino Maluquinho", dirigido por Helvécio Ratton e inspirado na obra do cartunista Ziraldo, que morreu no último sábado (6), aos 91 anos. Os imóveis, outrora testemunhas das brincadeiras e travessuras do personagem-ícone que dá nome ao filme, estavam há tempos mergulhados no abandono. Depois de anos de um longo processo de restauração, aos poucos, começam a ser ocupados novamente.

 

 

A escolha da Rua Congonhas como cenário para o filme foi estratégica para criar essa atmosfera de interior, com suas casinhas históricas coloridas, muretas baixas e calçada larga. O cineasta Helvécio Ratton, em sua busca por um local que preservasse as características das décadas passadas, encontrou nesse recanto de Belo Horizonte o cenário perfeito para dar vida às travessuras do Menino Maluquinho. “Procurei muito no Santo Antônio, Floresta, Santa Tereza e em outros bairros tradicionais um conjunto de casas para rodar um filme de época. Pintamos cada casa e os passeios de uma cor. Criamos um ambiente de histórias em quadrinhos e depois voltamos com as cores originais”, contou à época o cineasta Helvécio Ratton em entrevista ao Estado de Minas.

As gravações foram todas feitas na capital mineira e em Tiradentes, na cidade histórica localizada no Campo das Vertentes. Mas o principal cenário do filme é a Rua Congonhas, na esquina com as ruas Leopoldina e Santo Antônio do Monte, onde ficam as casas históricas tombadas — incluindo aquela onde viveu Guimarães Rosa. E, entre essas casinhas, destacava-se a de número 457, que se tornou a residência do próprio Menino Maluquinho nas telonas. Anos depois, ela foi restaurada e devolvida ao seu tom original — um rosa claro —, datado de meados de 1924. Na época, o próprio Ziraldo visitou as gravações.

 

Hoje, a Rua Congonhas é um verdadeiro tesouro escondido no coração do Santo Antônio, que preserva um pedacinho da Belo Horizonte antiga e faz parte da memória coletiva dos belo-horizontinos. “As casinhas se tornaram a cara do nosso amigo Ziraldo. Adoro passear pela sua calçada. Dentro do nosso imaginário, assim como os casarões de Ouro Preto remetem ao romantismo do tempo colonial, elas nos fazem voltar a memória e lembranças lúdicas da nossa infância”, afirma a produtora cultural Nina Pacheco, que, como ela mesma diz, teve o privilégio de conhecer Ziraldo pessoalmente. “Tivemos momentos inesquecíveis. Um deles foi em 2011, quando ele e meu marido, Fernando Pacheco, receberam a Comenda da Liberdade e Cidadania como personalidades que engrandeceram os ideais do Alferes Tiradentes”, contou à reportagem.

 

Ao caminhar pela rua, embora não more na região, Nina ainda guarda as memórias da tradição boêmia dos imóveis ecoam em sua mente. “Volto ao meu universo de menina. Tenho várias lembranças, uma delas da comemoração de aniversário do meu marido, no início dos anos 2000, quando fechamos um restaurante que funcionava em uma dessas casinhas para a festa”, contou à reportagem. Ao longo dos anos, o conjunto arquitetônico de 13 casas, tombadas pelo patrimônio em 2007, passou por várias etapas de ocupação, serviu de moradia e abrigou tradicionais bares da boemia de BH.


NOVOS ARES

Depois de anos de reforma e meses de incógnitas sobre o futuro das casinhas, entregues totalmente restauradas em 2022, os imóveis começaram a ser ocupados em janeiro deste ano. Das 13 casas, sete são particulares e seis são de propriedade do condomínio que construiu, em 2015, um prédio de 27 andares no terreno vizinho ao conjunto arquitetônico. Hoje, pelo menos quatro delas já estão em uso. Sob o olhar do Conselho Deliberativo do Patrimônio Cultural do Município, esses espaços ganharam uma nova destinação, agora para fins residenciais.

 

O projeto que serviu de base para as restaurações é de 1947 e foi feito pelo Escritório Brasil de Engenharia e Arquitetura. Os imóveis têm aproximadamente 40 metros quadrados, sem paredes e uma porta externa de vidro, com acesso ao jardim coletivo do prédio. “Essas características dificultam a locação para moradia. Nós conseguimos uma brecha para encaixar atividades, como aulas particulares, e agora estamos tentando conseguir aprovação para ter um comércio local, como salão de beleza, estúdio de maquiagem. Queremos preservar a autenticidade e a aura diurna da rua”, afirma Sérgio Gazel Guimarães, proprietário de sete dos imóveis tombados. O Estado de Minas também procurou a síndica do condomínio para saber o que será feito nos outros imóveis do conjunto histórico, mas não teve retorno.

 

Inspirada pelo legado de Ziraldo, a artista plástica Andreza Nazareth abriu um ateliê de artes em uma das casinhas da Rua Congonhas para atender crianças e adolescentes, onde a importância cultural e simbólica do artista mineiro Ziraldo é perpetuada. Para ela, o cartunista foi uma figura marcante desde sua infância, influenciando seu amor pelo desenho e pela arte. “Ele foi uma das pessoas que me influenciaram a desenhar quando eu era criança, e tornou plausível transformar meu hobby em profissão”, disse. A morte do artista trouxe à tona o histórico das casinhas. “Foi uma mistura de nostalgia, com saudade e agradecimento. As mães ficaram muito felizes de saber que os ‘meninos maluquinhos’ delas estão fazendo aula aqui no ateliê, onde o filme foi gravado”, contou à reportagem.

 

Ter um pedacinho da história de Ziraldo em sua própria rua também é motivo de orgulho e alegria para o jornalista Vitor Colares, um dos locatários dos imóveis. Pai de uma menina de 8 anos, ele conta que o filme é uma paixão compartilhada que une a família. “É o meu filme preferido e o da minha filha também. Eu apresentei para ela, a gente sempre vê juntos. Estando aqui, todo dia a gente lembra do filme e do Ziraldo”, disse.


A REFORMA

 

Ao longo de quase uma década, as 13 casinhas históricas da Rua Congonhas testemunharam os ventos da negligência. Os registros mais antigos dos imóveis são de 1924 e 1925. Abandonadas, essas relíquias arquitetônicas passaram por um período de desuso, suas fachadas desbotadas e paredes destruídas, viraram ponto para usuários e traficantes de drogas e pessoas em situação de rua. Em 2007, já deterioradas e em ruínas, as casas foram tombadas pelo Conselho Deliberativo do Patrimônio Cultural do Município (CDPCM).

 

Quatro anos depois, o órgão aprovou a construção de um empreendimento da Construtora Canopus no miolo da quadra 13, quarteirão que abriga as casas, o qual contemplava a restauração dos imóveis tombados. Alvo de impasses, o projeto de restauração só teve início em 2019, depois de aprovada uma revisão geral do projeto de restauração das 13 edificações, com diretriz para recuperar os principais elementos estilísticos, como vãos de janelas e portas, elementos de composição, estruturas das paredes externas, coberturas e fachadas laterais e frontais. Três anos depois, em 2022, a restauração das casinhas foi concluída.


VIZINHO ILUSTRE

 

Em meados de 1929, Guimarães Rosa, autor de “Grande Sertão: Veredas”, morou no número 415, na esquina da Rua Leopoldina com a Congonhas, quando se casou com sua primeira esposa, Lygia Cabral Penna. Uma cópia da certidão de casamento, descoberta em 2015, aponta a residência como endereço do casal. O documento, autenticado por Vicente de Paulo Silveira, oficial do registro civil da 1ª Zona de BH, está guardado na Superintendência de Museus e Artes Visuais, órgão ligado à Secretaria de Estado de Cultura. Além do registro, Vilma Guimarães Rosa, filha de Guimarães, já confirmou em entrevista que morou na casa com os pais. Décadas depois, a construção, que até poucos anos atrás era pintada de verde, abrigou o Bar do Lulu, fechado há duas décadas e parte famosa da vida noturna da capital.

 

A HISTÓRIA DO PATRIMÔNIO


1995
» O conjunto serviu de cenário para o longa “O menino maluquinho”, dirigido por Helvécio Ratton e inspirado na obra do cartunista Ziraldo, que morreu no último sábado (6/4), aos 91 anos.

2007
» O Conselho Deliberativo do Patrimônio Cultural do Município de Belo Horizonte (CDPCM) declara tombados os imóveis de números 487, 495, 503, 511, 519, 527, 539, 547, 553, 563, 571 e 579 da Rua Congonhas e 415 da Rua Leopoldina

2012
» Os proprietários das casas, dois irmãos, vendem os imóveis para a Construtora Canopus, que apresentou planos de um empreendimento habitacional com a conservação conjugada das casas, projeto aprovado pelo CDPCM.

2013
» Antigos comerciantes que ocupavam as casas lutam na Justiça para permanecer, mas, um a um, perdem seus alvarás de funcionamento e deixam o local. Depois de vistoria, a Fundação Municipal de Cultura denuncia o estado de abandono dos imóveis. É emitida notificação aos proprietários para que mantenham a conservação das edificações. Ministério Público pede informações sobre o estado do local

2014
» Depois de usuários de drogas invadirem e depredarem o casario, a construtora ergue tapumes metálicos com rolos de concertina para impedir mais invasões

2015
» Movimento da sociedade civil tenta conseguir que a casa onde morou Guimarães Rosa seja usada como espaço cultural

2019
» Tem início o projeto de restauração depois de aprovada uma revisão geral do projeto de restauração das 13 edificações.

2022
» As casas voltaram a ter fachada e cores da época de sua construção, cujos registros mais antigos são de 1924. A restauração foi entregue em janeiro, porém o futuro dos imóveis ainda era incerto.