Maconha à venda por comerciantes, nas ruas do Centro de Belo Horizonte, para qualquer um que quisesse comprar. Não, não era tráfico – e a polícia precisou de cinco meses de investigação para barrar o negócio. Militares, inclusive, eram alguns dos maiores clientes do produto, disponível nas barracas de ração para aves do Mercado Municipal, hoje Mercado Central.
A notícia estampou há exatos 66 anos as páginas do “Diário da Tarde”, vespertino do Diário dos Associados que rodou até 2007. Todo domingo, o Estado de Minas traz histórias que figuraram nas capas dos jornais mineiros no século passado. As pesquisas do Arquivo EM têm como base o acervo de 96 anos de páginas impressas da Gerência de Documentação (Gedoc), em Belo Horizonte.
“Revelações estarrecedoras em laudo técnico: Maconha à venda, livremente, no centro da cidade”, informava a manchete do DT de 25 de abril de 1958. A reportagem trazia um laudo da polícia técnica de Minas, atestando que o material colhido no Mercado em sementes, vendido como “cânhamo”, a 80 cruzeiros o quilo, era mesmo cannabis.
Na edição seguinte, o jornal entrevistou donos das barracas e descobriu que o produto era importado do Chile, Turquia e Marrocos. “O produto se destinaria ao alimento de pássaros, principalmente bicudo, curió e canário”, contava um entrevistado. E não só isso: até pouco tempo antes, os militares do 12º Batalhão e da Divisão de Infantaria (DI) eram assíduos compradores das sementes de cânhamo vendidas em BH para alimentar os pombos-correios da corporação. “Com a extinção daqueles pombais, perdeu o comerciante um de seus maiores fregueses.”
Cinco meses até a proibição
Mesmo que da mesma espécie da maconha, as sementes de cânhamo, ingeridas ou fumadas, não trazem efeitos psicotrópicos. Isso porque não produzem tetrahidrocanabinol (THC), o princípio ativo encontrado nas flores da cannabis. Já como ração para aves, o grão é reconhecido pelos benefícios na produção de ovos e foi liberado em 2024 pelos EUA para a alimentação de galinhas poedeiras.
Independentemente disso, dois dias depois do furo de reportagem, o DT surpreendeu em casa o delegado Domingos Henriques, da Divisão de Costumes. O repórter “encontrou-o no seu gabinete, lendo um trabalho editado pelo Ministério da Educação e Saúde. Título: ‘Maconha’”. Henriques respondeu, sobre a não apreensão, que o tráfico de maconha ainda não era assunto “muito grave” em Minas.
Passaram-se quase cinco meses. Em 1º de setembro de 1958, a manchete comemorava: “Vitória do DT: A partir de hoje cessou a venda de maconha no Mercado Municipal. Os comerciantes foram intimados pela polícia e convidados pelo delegado de Repressão à Vadiagem, José de Almeida Sobrinho, a uma palestra sobre os malefícios da maconha. “Os comerciantes compreenderam em toda a sua extensão a previdência policial” e retiraram o produto de circulação.
Em 1958, a comercialização de maconha já era proibida no país por meio de um decreto de 1938 e depois criminalizada pelo Código Penal de 1940, que barrou o comércio de drogas, em geral, explica Mauricio Stegemann Dieter, professor de criminologia da USP. Mas ainda não eram ilícitos penais os insumos das substâncias, como é o caso da semente, o que só ocorreu em 1976, com a criação de uma lei de drogas específica, acrescenta o jurista.
“Semente de maconha não é substância psicoativa. Pode se tornar, mas isso depende, lógico, do desenvolvimento da planta, colheita, preparo etc. Naquela época, a semente de cânhamo importada era mais preocupante do ponto de vista do controle fitossanitário do que de saúde pública. A supervisão era muito menor, não havia a brutal estrutura de repressão ao tráfico que temos hoje, e mesmo pouco tempo depois, durante a ditadura, não tínhamos tanta violência contra produção, comércio e uso de certas drogas como temos hoje – uma guerra, de chacinas constantes, que só aumentou, principalmente dos anos 1990 para cá”, resume Dieter ao Arquivo EM.
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