O drama da falta de itens alimentares básicos, como arroz e feijão, narrado pela desempregada Tamires Soares Fonseca, de 26 anos, do Bairro Olga Benário, área de baixa renda de Montes Claros, no Norte de Minas, também é vivido em muitos outros lares em Minas Gerais e no Brasil. A realidade da insegurança alimentar, que inclui a fome, sua forma mais grave, foi revelada pela Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios (Pnad) Contínua: Segurança Alimentar 2023, realizada pelo Instituto Brasileiro de Geografia e Estatísticas (IBGE) em parceria com o Ministério do Desenvolvimento e Assistência Social, Família e Combate à Fome. O estudo foi divulgado ontem (25/04). Segundo o diagnóstico, um em cada quatro domicílios brasileiros apresentou algum grau de insegurança alimentar, o que significa que os moradores não sabiam se teriam comida suficiente ou adequada na mesa, no dia seguinte.


A pesquisa mostra que no último trimestre de 2023, 21,6 milhões de domicílios brasileiros (27,6%) eram afetados por algum grau de insegurança alimentar, sendo 3,2 milhoes (4,15%) no estágio mais grave. Ainda de acordo com o material, 18,2% (14,3 milhões) enquadraram-se no nível leve e 5,3% (4,2 milhões), no moderado.


O retrato da fome em Minas

 



 

No quarto trimestre de 2023, tendo como referência os três meses anteriores à data de realização da pesquisa, o IBGE registrou, em Minas Gerais, um total de 7,99 milhões de domicílios, dos quais, 1,73 milhão (21,6%) estavam classificados na situação de insegurança alimentar, o que significa que nos três anteriores ao levantamento, os moradores desses lares passaram por ao menos uma das seguintes situações: preocupação de que os alimentos acabassem antes de poderem comprar ou receber mais comida, lhes faltaram alimentos antes que tivessem dinheiro para comprar mais comida, ficaram sem dinheiro para ter uma nutrição saudável e variada, ou comeram apenas alguns poucos tipos de alimentos que ainda tinham, porque o dinheiro acabou.


Segundo o levantamento do IBGE, 566 mil moradores de municípios mineiros (7,08% do total) foram encontrados vivendo no quadro de insegurança alimentar grave, o que, na prática, escancara a falta de alimentos básicos como feijão e arroz, e a agonia enfrentada pela desempregada Tamires Fonseca, que não tem marido e, sozinha, luta para sustentar as três filhas: Nicole, de 11 anos; Lavínia, de 5; e a pequena Cecília, de apenas oito meses.

 

“Tem dia que as minhas filhas choram porque falta o leite e tenho que me virar pra comprar. Às vezes consigo, às vezes não. É uma situação muito complicada”, lamenta a desempregada. “Aqui, para mim, realmente falta o básico, desde o arroz e o feijão até o leite. E é muito difícil estar desempregada e não conseguir arrumar um serviço”, reclamou Tamires. Por fim, ela completou o seu “pedido de socorro”: “Eu queria ganhar pelo menos o leite para minhas filhas”.

 

No mesmo Bairro Olga Benário, em Montes Claros, uma mullher lamenta a dificuldade para a compra dos alimentos da família numerosa, em uma casa com oito pessoas, ela, o marido, quatro filhos e dois netos. “A gente nunca vê carne e verdura”, disse, admitindo que a maior renda da família é o valor de um salário mínimo do Benefício da Prestação Continuada (BPC) pago a um dos seus filhos (com deficiência). “Aqui em casa, hoje fiz arroz, feijão, pé de galinha e maxixe que minha mãe mandou da roça”, relatou a moradora, que pediu para não ser identificada.


A insegurança alimentar também faz parte do dia a dia da família de Maria do Carmo Silva, de 52 anos, mãe de dois filhos e com três netos. Ela é moradora de um barracão no Bairro Santo Amaro, em Montes Claros. “A gente esforça para comprar comida para todo mês, mas faltam frutas e verduras para as crianças”, disse Maria do Carmo. “Carne de primeira aqui é uma raridade”, declarou a mulher, explicando que a carne no cardápio da família é substituída por ingredientes mais baratos como pé de frango, ovo e salsicha.


“Está tudo muito caro. A gente vai no supermercado com R$ 100 e não compra nada”, afirmou a doméstica. Maria do Carmo explicou que a renda que entra em seu lar vem do salário mínimo da filha Michele, que trabalha em call center; dos ganhos do marido dela e do genro, que trabalham como operários.

 

Dificuldade cresce na zona rural


De acordo com a pesquisa do IBGE, em todo país, o cenário de insegurança alimentar grave foi mais expressivo nas áreas rurais do país. A taxa de domicílios particulares em insegurança alimentar moderada ou grave nessas regiões foi de 12,7%, contra 8,9% nas áreas urbanas. As proporções de insegurança moderada e grave foram maiores no Norte e no Nordeste. O Norte (7,7%) teve cerca de quatro vezes mais domicílios convivendo com restrição severa de acesso aos alimentos, ou seja, com insegurança alimentar grave, quando comparado ao Sul (2%). As regiões Norte, Nordeste e Centro-Oeste foram as áreas com percentuais mais elevados de domicílios particulares, com prevalências de 7,7%, 6,2% e 3,6%, respectivamente.


Em 48,3% dos domicílios do país, a pessoa economicamente responsável era do sexo masculino e, em 51,7%, a pessoa responsável era mulher. No entanto, entre os domicílios com insegurança alimentar, 59,4% eram chefiados por mulheres e 40,6%, por homens, uma diferença de 18,8 pontos percentuais. Em 42% dos domicílios do país, quem exercia a responsabilidade pelas contas era ma pessoa branca, em 12%, era preta e em 44,7%, era parda. Entre os domicílios com insegurança alimentar, 29% dos responsáveis eram brancos, 15,2% eram pretos e 54,5% eram pardos, segundo o Pnad Contínua: Segurança Alimentar 2023. Em metade (50,9%) dos domicílios com dificuldade alimentar moderada ou grave, o rendimento domiciliar per capita era inferior a meio salário mínimo.


A vulnerabilidade nutricional pelo país

O quadro de insegurança alimentar leve foi observado em aproximadamente um quarto dos domicílios particulares nas regiões Norte (23,7%) e Nordeste (23,9%), indicando uma grande quantidade de moradores vivendo com preocupação ou incerteza de acesso aos alimentos, o que pode comprometer a qualidade da dieta e a sustentabilidade alimentar da família.


“Por outro lado, a insegurança alimentar grave esteve em menos de 5% dos domicílios das regiões Sudeste (2,9%) e Sul (2%). Essas informações revelam que as desigualdades regionais de acesso aos alimentos verificadas nas Pnads de 2004, 2009 e 2013, e na POF 2017-2018, continuaram presentes na Pnad Contínua 2023 e que o cenário de concentração da insegurança alimentar permanece no Norte e no Nordeste”, observa o pesquisador do IBGE André Martins.


Ainda segundo o levantamento, o Pará foi o estado que apresentou a maior proporção de domicílios com índices moderados ou graves (20,3%), com Sergipe (18,7%) e Amapá (18,6%) em seguida. No sentido oposto, Santa Catarina (3,1%), Paraná (4,8%), Espírito Santo (5,1%) e Rondônia (5,1%) tiveram os menores percentuais.


Quanto ao perfil da pessoa responsável por cada domicílio, apesar de a participação de mulheres como responsáveis pelo lar (51,7%) na população total ter sido um pouco superior a de homens (48,3%), quando se observa os domicílios em segurança alimentar essa relação se inverte (48,7% contra 51,3%, respectivamente). Nos domicílios em insegurança alimentar, 59,4% tinham responsável mulher. Dentre os graus de insegurança alimentar, a situação de insegurança alimentar moderada foi a que apresentou a maior diferença, 21,2 pontos percentuais (60,6% e 39,4%, respectivamente).


O módulo “Segurança Alimentar da Pnad Contínua”, referente ao quarto trimestre de 2023, também mostrou uma associação oposta entre o nível de instrução do responsável pelo domicílio e o grau de insegurança alimentar. Domicílios cujos responsáveis tinham baixa escolaridade tendiam a apresentar maior participação na insegurança alimentar. Mais da metade (52,7%) dos domicílios que estavam em vulnerabilidade nutricional tinham responsáveis com menor nível de instrução (o ensino fundamental completo, no máximo), ao passo que em 7,9% desses domicílios registravam-se ao menos um morador com nível superior.

 

Critérios da Insegurança Alimentar

Insegurança alimentar leve

Quando há falta de qualidade nos alimentos e uma certa preocupação ou incerteza quanto o acesso aos alimentos no futuro;

 

Moderada

Ocorre diante da falta de qualidade e uma redução na quantidade de alimentos entre os adultos;

Grave

É constatada a em um cenário em que as pessoas ficaram sem comida e passaram fome e chegaram a ficar sem comida por um dia ou mais.

Fonte: FAO (Agência das Nações Unidas para a Alimentação e a Agricultura)

 

 

Proporção de domicílios com insegurança alimentar grave em 2023, por região

 

Norte

7,7% dos domicílios com insegurança alimentar grave

 


Nordeste

6,2% dos domicílios com insegurança alimentar grave

 


Centro-Oeste

3,6% dos domicílios com insegurança alimentar grave

 


Sudeste

2,9% dos domicílios possuíam insegurança insegurança grave

 


Sul

2% dos domicílios possuíam insegurança alimentar grave

 

Fonte: Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios Contínua: Segurança Alimentar 2023


1/4

das casas lidam com a ameaça da fome no país

 

21,6

milhões de domicílios apresentaM algum grau de insegurança alimentar. 4,1% estão em patamar grave

Fonte: PNAD Contínua: Segurança Alimentar 2023

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