O distrito de Honório Bicalho, em Nova Lima, foi um dos mais atingidos pelo transbordamento do Rio das Velhas em janeiro de 2022 -  (crédito: Leandro Couri/EM/D.A Press)

O distrito de Honório Bicalho, em Nova Lima, foi um dos mais atingidos pelo transbordamento do Rio das Velhas em janeiro de 2022

crédito: Leandro Couri/EM/D.A Press

Enquanto os olhos do país se voltam para as enchentes no Rio Grande do Sul, comunidades mineiras às margens do Rio das Velhas espelham os desafios que a população gaúcha terá pela frente. Há dois anos, municípios da Região Metropolitana de Belo Horizonte foram castigados pela maior tempestade das últimas três décadas, transformando ruas em rios e deixando centenas de pessoas desabrigadas.

 

Com paralelos significativos entre as catástrofes – embora em escalas diferentes –, o Estado de Minas visitou as cidades atingidas pelas enchentes na Grande BH e ouviu relatos de luta e o contínuo receio a cada aproximação do período chuvoso.

 

 

 

O Rio Grande do Sul enfrenta desde o início do mês uma batalha contra as águas, com número crescente de mortos e desaparecidos, e um estado de calamidade pública declarado e reconhecido pelo governo federal.

 

As imagens de casas submersas e equipes de resgate em ação nos municípios gaúchos ecoam de maneira familiar em Minas Gerais. Em 2022, municípios na Bacia do Rio das Velhas ficaram debaixo d’água ou tiveram bairros inteiros encobertos, naquela que foi descrita por especialistas como a maior chuva da Grande BH dos últimos 30 anos.

 

Em todas as cidades, o volume de precipitações ficou acima de 160 milímetros no intervalo de 24 horas. Episódio que ainda trouxe à memória a enchente de 2020, a pior até então.

 

 

“Todo ano é a mesma coisa”

As chuvas intensas em Minas Gerais, no período chuvoso de 2022/2023, causaram 22 mortes, enquanto cerca de 15 mil pessoas tiveram suas casas atingidas, seja por deslizamento de terra ou enchentes. Dois anos depois da tragédia, a reportagem do Estado de Minas voltou às cidades mais atingidas na Grande BH – Nova Lima, Rio Acima, Raposos, Sabará e Santa Luzia – e encontrou famílias ainda lutando para se reerguer.

 

Márcia Lage e a filha, Paula, guardam roupas e utensílios em caixas para conseguir salvar alguns pertences durante cheias

Márcia Lage e a filha, Paula, guardam roupas e utensílios em caixas para conseguir salvar alguns pertences durante cheias

Leandro Couri/EM/D.A Press

“Todo ano é a mesma coisa. Aqui a gente tem que viver assim (diz apontando para as marcas deixadas pela enchente na parede da casa). Sem limpar, não pode fazer nada, porque tudo que você faz aqui é perdido”, relata, em um tom de voz cansado, a dona de casa Márcia Lage Soares de Barros, de 57 anos, moradora do Centro de Raposos.

 

A cerca de 14 quilômetros de Belo Horizonte, o município foi tomado pela água e ficou ilhado, cena que se repete a cada nova inundação. A única saída nesses casos é pegar a estrada de terra do Morro Vermelho, distrito de Caeté, até a BR-381.

 

 

Mesmo erguida sobre palafita, estacas de madeira que mantêm a edificação elevada, a casa de Márcia não foi páreo para a voracidade da cheia do Rio das Velhas. Depois de a família perder tudo na última enchente, a casa foi mobiliada com a generosidade de doações. “Minha filha está com as roupas dela dentro de caixas, porque a gente não tem como comprar guarda-roupas. Deixamos as panelas todas em caixas também”, o que, segundo Márcia, ainda facilita uma eventual fuga diante de uma nova inundação, “para não sair apenas com as roupas do corpo”.

 

 

Em Raposos, rastro da destruição deixada pelo Velhas há dois anos ainda é visível em vários bairros da cidade

Em Raposos, rastro da destruição deixada pelo Velhas há dois anos ainda é visível em vários bairros da cidade

Leandro Couri/EM/D.A Press

 

Antes da enchente, 11 pessoas viviam na casa. Dois de seus filhos, que residiam com suas esposas e respectivos filhos, preferiram alugar outro local após o desastre. “Eles podem pagar aluguel, mas nós não temos essa opção”, diz Márcia.

 

À beira do perigo

A filha caçula Paula Graziane, de 36, e seu marido ainda continuam dividindo a casa com a mãe. “Só quem passou por isso sabe o quão humilhante é, ficar sem nada. Agora, estamos construindo em outro lugar pra gente sair daqui”, desabafa. Enquanto isso, a reportagem flagrou novas casas de palafitas sendo erguidas às margens do Rio das Velhas, próximo à Ponte Magalhães Pinto, no Centro de Raposos.

 

“Não entendo esse povo construindo na beira do rio, sabendo tudo que as pessoas estão passando”, afirma. Assistindo às imagens das enchentes no Rio Grande do Sul na televisão, que agora apresenta falhas após ser atingida pela chuva, Márcia relembra o desespero vivido dois anos atrás.

 

“O que eles estão passando lá, nós já vivemos aqui. Mas eles estão em uma situação ainda mais grave, porque, graças a Deus, não perdemos ninguém”, afirma. À época, mil pessoas ficaram desabrigadas em Raposos e foram encaminhadas para abrigos municipais.

 

 

Em janeiro de 2022, Antônio Donato e sua família ficaram ilhados por três dias no segundo andar de casa, em Nova Lima

Em janeiro de 2022, Antônio Donato e sua família ficaram ilhados por três dias no segundo andar de casa, em Nova Lima

Leandro Couri/EM/D.A Press

 

As marcas da inundação também estão visíveis nas paredes da casa do aposentado Antônio Donato, de 72, morador do Bairro Honório Bicalho, em Nova Lima. Na época, ele e sua família ficaram ilhados por três dias no segundo andar da residência, onde ele passou a infância, até a água finalmente baixar.

 

Antônio foi um dos cerca de 3 mil moradores que, em meio à madrugada do dia 9 de janeiro de 2022, foram obrigados a abandonar seus lares às pressas quando o nível da água subiu rapidamente, alcançando até mesmo os telhados das residências.

 

“Foi desesperador”

Embora tenha conseguido resgatar algumas peças de roupa, Antônio e sua família perderam todos os outros pertences. “Foi desesperador, ninguém esperava que a água fosse subir desse jeito. Depois, só restou a lama. Tivemos que nos desfazer de tudo”, recorda. A comunidade viu se repetir um marco histórico que muitos ainda recordam: a enchente de 1997, até então considerada a pior da região.

 

Aos poucos, o bairro se reconstrói. No entanto, o constante temor de novas enchentes levou muitos moradores a abandonarem seus lares, que seguem cheios de lama, mesmo sem uma ordem oficial da Defesa Civil, uma realidade que também foi observada em outros municípios visitados pela equipe de reportagem.

 

Leidiane Mislane Artigas, comerciante de Sabará: "Mais de uma vez perdemos todas as nossas coisas, então, optamos por sair"

Leidiane Mislane Artigas, comerciante de Sabará: "Mais de uma vez perdemos todas as nossas coisas, então, optamos por sair"

Leandro Couri/EM/D.A Press

 

Após a enchente, Nova Lima iniciou uma ação de limpeza em um trecho de 4km do Rio das Velhas, entre Santa Rita e Honório Bicalho, iniciativa replicada também em Sabará e Santa Luzia, para minimizar os riscos decorrentes das fortes chuvas nessas regiões. O EM também entrou em contato com as prefeituras de Raposos e Rio Acima para obter informações sobre as medidas de prevenção às enchentes, porém, até o fechamento desta matéria, não houve retorno.

 

Apreensão e vigília às margens do Velhas

O aumento da frequência das enchentes tem deixado os moradores apreensivos. À medida que dezembro se aproxima, trazendo consigo a perspectiva de grandes volumes de chuva, as noites se transformam em momentos de vigília marcados pelo medo, sentimento compartilhado por todos os moradores ouvidos pela reportagem.

 

“Ficamos apreensivos. Será que a água vai subir novamente?”, relata a comerciante Leidiane Mislane Artigas, de 43. Diante do constante temor, ela tomou a difícil decisão de deixar sua casa, na região central de Sabará, onde morava com os pais, e se estabelecer com a família em um imóvel alugado.

 

Eles, no entanto, ainda mantêm uma loja de produtos para animais de estimação na fachada da residência, onde perderam todos os móveis e eletrodomésticos na última enchente. “Nós temos medo. Por enquanto, a gente ainda mantém o comércio. Mas, aquilo estava cansando. Mais de uma vez perdemos todas as nossas coisas, então, optamos por sair, por priorizar a nossa segurança”, contou.

 

Mas, nem todo mundo tem condições de se mudar. “A gente fica com medo, mas não tem condições de ir para outro lugar agora. Não temos para onde ir”, diz Maria de Fátima Correia Cardoso, de 64, moradora do Bairro Pantanal, em Santa Luzia, um dos alvos de sucessivas enchentes nos últimos anos.

 

Estratégias improvisadas

Em 2022, as águas subiram de tal forma que transformaram a casa de Maria de Fátima em um complemento do Rio das Velhas, chegando até a metade da parede do imóvel. Após testemunhar a destruição da sua casa, ela construiu estruturas de madeiras, semelhantes a mesas elevadas, para proteger seus pertences durante as inundações e tentar salvá-los em futuros eventos.

 

“Aí a água fica por baixo. Depois que eu fiz isso aqui, graças a Deus não choveu a ponto de entrar. Espero não precisar mais usar”, conta ela, que tem o Rio das Velhas no quintal de casa.

 

 

Maria de Fátima Cardoso, moradora do Bairro Pantanal, em Santa Luzia, teme novas enchentes, mas diz não ter para onde ir

Maria de Fátima Cardoso, moradora do Bairro Pantanal, em Santa Luzia, teme novas enchentes, mas diz não ter para onde ir

Leandro Couri/EM/D.A Press

 

Morando ao lado da casa de Maria, sua filha e o genro, Paulo César Alves Ferreira, de 33, também enfrentaram momentos de tensão. Na época, seu filho tinha apenas um mês de idade. A casa, recém-reformada pelo casal, foi condenada pela Defesa Civil após a estrutura rachar com as chuvas. “Em minutos, perder todo sonho que a gente construiu é muito triste”, desabafa.

 

A experiência traumática ainda fez a esposa de Paulo ter depressão e dificuldades para amamentar o filho. “Acabou que eu desgostei da casa. Nós sentimos na pele o que as pessoas no Rio Grande do Sul estão passando. Morar em um lugar onde, durante a madrugada, podemos acordar com o medo das águas invadindo nossas casas é uma preocupação constante”, conta, em um tom de resignação.

 

Alberto da Silva Faria, comerciante de Rio Acima: "Pensei até em fechar. Foi muito triste chegar aqui e ver tudo perdido"

Alberto da Silva Faria, comerciante de Rio Acima: "Pensei até em fechar. Foi muito triste chegar aqui e ver tudo perdido"

Leandro Couri/EM/D.A Press
 

 

“Não tem o que fazer”

Assistindo aos vizinhos, companheiros de vida por tantos anos, se mudarem após o aumento das inundações, o aposentado Antônio Lima Costa, de 58, descreve sua postura como “conformada”. “Não tem o que fazer. Vai chegando dezembro, janeiro, a gente fica apreensivo. Aí é pegar as coisas e levar para o andar de cima. Antigamente não tinha isso. A água não chegava na beirada. Mas agora é assim”, contou ao EM.

 

As marcas da enchente ainda são visíveis na fachada de sua casa na Rua João Clemente Filho, uma das áreas mais afetadas pelas enchentes em Rio Acima, assim como em muitas outras casas da rua. Inclusive, a pequena mercearia do comerciante Alberto da Silva Faria, de 74, que ainda amarga os prejuízos da enchente.

 

 

“Pensei até em fechar. Foi muito triste chegar aqui e ver tudo perdido. Toda mercadoria jogada fora”, disse Para retomar os negócios, que sustenta sua família, ele precisou abrir mão de seu carro. “Não tem o que fazer. Eu dependo disso aqui”, disse.

 

 

Rio das Velhas em Santa Luzia: Bairro Pantanal é ponto de enchentes recorrentes

Rio das Velhas em Santa Luzia: Bairro Pantanal é ponto de enchentes recorrentes

Leandro Couri/EM/D.A Press

Maior frequência e intensidade

Por ora, um bloqueio atmosférico impede o avanço da chuva do Sul para Minas, conforme o Instituto Nacional de Meteorologia (Inmet). Mas, ainda paira a incerteza se o estado, já assolado por intensas inundações, também pode ver crescer as proporções de seus desastres.

 

O aumento na frequência e intensidade das chuvas, observado pelos moradores ouvidos pela reportagem, é corroborado por especialistas e prevê-se que se intensifique nos próximos anos.

 

Em 2020, o Centro Nacional de Monitoramento e Alertas de Desastres Naturais (Cemaden) conduziu um estudo que revelou um aumento significativo no número de dias com chuvas intensas. Na década de 2000, foram registrados cerca de 20 eventos com precipitação acima de 80 mm e 100 mm. Em comparação, na década de 60, esse número era de apenas três ou quatro eventos.

 

Os vários exemplos de grandes volumes de chuvas são uma amostra do que virá pela frente. Agora, o desafio para as autoridades se desdobra em dois: uma rápida resposta de socorro e a prevenção.

 

“É difícil prever em que medida, mas os eventos extremos vão aumentar. E os padrões climáticos serão significativamente distintos em cada região. O desassoreamento dos rios, sozinho, não soluciona o risco de enchente. É preciso um conjunto de ações, como a recuperação da mata ciliar, e também por repensar o planejamento urbano, especialmente nas áreas mais vulneráveis e economicamente desfavorecidas, a fim de mitigar os impactos das catástrofes naturais”, aponta o professor Nilo de Oliveira Nascimento, do Departamento de Engenharia Hidráulica e Recursos Hídricos da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG).