Uma das sedes da multinacional anglo-australiana que negocia fusão bilionária enquanto responde a processo pela tragédia de Mariana como uma das sócias na Samarco -  (crédito: William WEST/AFP -21/2/2023)

Uma das sedes da multinacional anglo-australiana que negocia fusão bilionária enquanto responde a processo pela tragédia de Mariana como uma das sócias na Samarco

crédito: William WEST/AFP -21/2/2023

O prazo para que a mineradora anglo-australiana BHP Billiton declare real interesse em uma fusão com a Anglo American, outra gigante do setor, se encerra às 13h (horário de Brasília) de amanhã (22/5), segundo determina o código de aquisições do Reino Unido. Contudo, analistas de mercado avaliam ser de alto risco que a empresa aumente pela terceira vez sua oferta, com base no valor extra que a união das companhias geraria. À sombra da negociação bilionária está o drama dos atingidos pela tragédia de Mariana, que esperam por reparação desde 2015 e desde 2018 movem processo contra a BHP na Inglaterra cobrando reparação.

 

A primeira oferta da BHP, envolvendo transferências de ações da companhia e outras para os acionistas da Anglo American, foi de US$ 39 bilhões, em 26 de abril. A segunda, em 7 de maio, foi de US$ 44,12 bilhões, ambas rejeitadas pelo conselho de administração da Anglo American. Como mostrou reportagem do Estado de Minas na edição de ontem, o valor dessa segunda oferta equivale a R$ 226,3 bilhões, o que seria suficiente para que a BHP arcasse com 98,5% das indenizações pedidas por 700 mil atingidos pelo rompimento da Barragem do Fundão (R$ 230 bilhões), em Mariana, representados pelo escritório internacional Pogust Goodhead em ação de indenização que corre na Inglaterra desde 2018.

 

A BHP e a Vale são sócias da mineradora Samarco, que operava a barragem que se rompeu em 2015 na cidade da Região Central de Minas, matando 19 pessoas, deixando mais de mil desabrigadas e devastando a Bacia Hidrográfica do Rio Doce, entre Minas Gerais e o Espírito Santo até o litoral capixaba.

 

Esse é o maior processo coletivo do mundo. Fontes que o acompanham na Inglaterra consideram que a possibilidade de julgamento e condenação, se não ocorrer um acordo, seria um dos motivos para que os acionistas da Anglo American não se empolgassem com a oferta de R$ 226,3 bilhões (US$ 44,12 bilhões) com pagamento em ações da BHP, que podem despencar com a ação dos atingidos.

 

A Anglo American declarou em comunicado a acionistas que a proposta “subvalorizou a empresa”. Já a BHP, também em comunicado, disse estar “desapontada” pelo fato de o conselho não se comprometer com a proposta e acrescentou que “continua a acreditar que uma combinação dos dois negócios traria um valor significativo para todos os acionistas”.

Por outro lado, analistas de mercado como os da RBC Capital Market (Banco Real do Canadá) sugerem que o valor extra ou ganho de eficiência que a combinação das empresas geraria seria de US$ 4,1 bilhões a US$ 6,8 bilhões. Porém, para que a BHP suba suas ofertas em uma terceira tentativa, o resultado dessa sinergia teria de ser pelo menos de US$ 11 bilhões, avaliam.


Gigantes da mineração

A união entre BHP e Anglo American daria origem a um gigante global no setor da mineração, consolidando a posição de maior mineradora do mundo. A própria BHP destaca a obtenção de um portfólio de ativos de alto valor, abrangendo cobre, potássio, minério de ferro, platina e carvão metalúrgico.

 

Traria também um impacto significativo ao mercado brasileiro, já que a Anglo American possui as reservas do complexo Minas-Rio, que produziram 24 milhões de toneladas de minério de ferro em 2023, gerando US$ 1,4 bilhão em receitas. No início do ano, a Vale comprou 15% do complexo.

 

Com o prazo para nova proposta vencendo nesta quarta-feira (22/5), depois das duas ofertas rejeitadas, não há garantia que nova tentativa parta da BHP. Ainda não há acordo ou transação confirmada entre as empresas, apenas o reconhecimento de que ocorreram duas ofertas, que foram negadas.

 

O Código de Aquisições do Reino Unido tem regras muito claras sobre propostas de fusão que visam evitar, nesse caso, que a BHP manipule a Anglo American ou o preço das ações. As regras estão ligadas ao Painel de Aquisições e Fusões do Reino Unido, que tem a função de garantir justiça e transparência para todas as partes envolvidas em negócios do tipo.

 

Pela regra, a BHP tem até as 17h (horário de Londres) de 22 de maio de 2024 para anunciar a firme intenção de fazer uma oferta pela Anglo American ou declarar publicamente que não pretende fazer uma proposta. A mineradora pode estender o prazo com o consentimento do Painel.

 

Procurada, a BHP não se manifestou sobre a possibilidade de o processo em Londres ser um empecilho a suas aspirações expansionistas.

 

Provas no processo

O escritório Pogust Goodhead, que representa as vítimas de Mariana que pedem reparação da BHP na Justiça internacional, afirma que, no momento, “não vai comentar a tentativa de fusão da BHP”, mas se mostra confiante na ação movida no Reino Unido. “O processo está progredindo de forma positiva para nossos clientes e as mineradoras têm enfrentado derrotas sucessivas na Corte da Inglaterra. Nas últimas audiências de gerenciamento de caso, em 18 e 19 de abril, foi revelado um e-mail que demonstra o conhecimento da BHP sobre os riscos de colapso da barragem (o que pode ligá-la diretamente à responsabilização pelo rompimento)”, afirma Tom Goodhead, CEO (diretor-executivo) do escritório Pogust Goodhead.

 

De origem inglesa e australiana, a BHP Billiton tem sede na Inglaterra, por isso está sendo processada em um tribunal inglês. A mineradora é sócia da Vale na Samarco, a operadora da Barragem do Fundão, rompida em 2015 e responsável por 19 mortes e a devastação da Bacia Hidrográfica do Rio Doce.

 

Com apoio dos estados e do governo federal, as empresas criaram em 2016 a Fundação Renova e deixaram de se envolver diretamente na reparação dos danos aos atingidos. O processo na Inglaterra questiona essa lógica, ao exigir indenizações diretamente da sócia da Samarco. E repercute na imagem da companhia, podendo estar entre os empecilhos para suas grandes operações.


Aumento na oferta

Em comunicado oficial, Mike Henry, CEO da BHP, expressou decepção com a recusa da Anglo American em aceitar as propostas de fusão, mas nenhuma das empresas citou o processo na Inglaterra como um dos motivos. “A BHP apresentou uma proposta revisada ao Conselho da Anglo American que acreditamos firmemente ser vantajosa para os acionistas da BHP e da Anglo American. Estamos desapontados que esta segunda proposta tenha sido rejeitada. A proposta revisada representa um aumento de 15% na taxa de troca da fusão e eleva a participação acionária agregada dos acionistas da Anglo American no grupo combinado para 16,6%, ante 14,8% na primeira proposta da BHP”, declarou.


À espera de Justiça em londres

Na Inglaterra, o processo dos atingidos pela tragédia de Mariana se encontra na reta final de preparação para julgamento, que deve começar em 7 de outubro, com previsão de durar 14 semanas. Entre os 700 mil atingidos representados pelo escritório Pogust Goodhead estão 46 municípios, 10 mil integrantes de comunidades indígenas, quilombolas e tradicionais, além de empresas, igrejas e autarquias. Em 2018, o Estado de Minas revelou que o processo correria em Londres e acompanhou os primeiros passos dos advogados ingleses e brasileiros.

 

Enquanto o processo é preparado, segue a pressão exercida sobre a BHP para um acordo vantajoso, em vez do risco de um longo e desgastante julgamento. “Conseguimos a ordem para que a BHP entregue o contrato de trabalho de seu diretor-executivo na época do colapso, com uma série de outros documentos que podem provar que a empresa tinha, sim, responsabilidade pelo gerenciamento da barragem. Esperamos que as mineradoras façam a coisa certa e ofereçam um acordo de compensação adequado aos nossos clientes”, afirma Goodhead.


No Brasil, drama sem fim

Enquanto permanece a expectativa de solução para o caso na Justiça internacional e a BHP se move para ampliar seus domínios no mercado, em Mariana as dificuldades dos atingidos pelo rompimento da barragem da Samarco não se resumem a moradia e indenizações. De acordo com a assessoria técnica Cáritas, ligada à Confederação Nacional dos Bispos do Brasil (CNBB), que auxilia os atingidos de Mariana, são muitos os problemas enfrentados no processo de reparação pelas pessoas afetadas.

 

“Nas comunidades da zona rural, destacam-se a negligência por parte da Fundação Renova (criada pelas mineradoras envolvidas para lidar com as consequências do desastre) quanto ao atual cenário de falta de manejo de rejeitos, inexistência de ações diante da retomada produtiva e o perigo iminente diante da péssima condição das estradas”, avalia a assessoria.

 

Segundo a entidade, pessoas atingidas têm dificuldade de acesso ao abastecimento e ao tratamento de água, à saúde, à educação, à telefonia e à internet. “A Cáritas-MG percebe e registra, durante os atendimentos, um empobrecimento e perda da soberania alimentar por parte dessas famílias, que antes do rompimento tinham uma relação forte com a terra e com a água, hoje contaminadas pela lama de rejeitos.”

 

Em Bento Rodrigues e Paracatu de Baixo, onde o reassentamento das comunidades arrasadas pela lama vem sendo feito, a morosidade do processo é uma das maiores reclamações que a Cáritas recebe. “Isso provoca frustração e incerteza quanto ao futuro. Foram recorrentes as alterações dos prazos para a conclusão dos reassentamentos e tais descumprimentos jamais foram judicialmente penalizados”, sustenta.

 

Durante o acompanhamento das famílias, a entidade avalia que muitas das entregas de chaves ocorreram com casas ainda com avarias, cuja resolução gera muito desgaste. “A falta de água bruta e inexistência de ações diante da retomada produtiva geram muita preocupação acerca do futuro. Além disso, essas comunidades enfrentam um constante desafio na manutenção e preservação dos territórios de origem”, destaca a assessoria técnica.

 

Por meio de escuta social e acompanhamento das famílias, a Cáritas-MG identificou também o surgimento ou agravamento de quadros de saúde mental, como depressão, estresse, problemas no sono, síndrome do pânico e crises de ansiedade. “É comum que uma ou mais pessoas da família apresentem relatos diretamente relacionados ao impacto na saúde mental que, antes do rompimento, eram inexistentes ou se davam de forma passível de controle e prevenção. A perda e impossibilidade de retomada dos modos de vida pelas famílias atingidas também é fonte de constante angústia e sofrimento”, aponta.

 

Segundo a Cáritas-MG, as consequências do rompimento não se encerraram em 5 de novembro de 2015, dia do desastre. “Há parcela significativa de famílias que segue residindo ou que retornou para as comunidades de origem, ainda que descaracterizadas, com suspeitas de contaminação ambiental, trânsito de maquinário e pessoas desconhecidas e sem as redes de interação social antes construídas. Algo os impele a estar ali.”

 

Os atingidos que viviam nas comunidades arrasadas têm dificuldades de adaptação na área urbana de Mariana e afirmam sentir preconceito por parte do restante da população, de acordo com a assessoria. “A estigmatização que lhes é conferida no meio urbano, a invisibilização e as constantes negativas de direitos, sem resoluções efetivas, fazem com que muitos se sintam desconfortáveis longe do território de origem, rural. Percebe-se em muitos núcleos familiares a ânsia pela vivência no novo espaço criado, reassentamento coletivo. Ao mesmo tempo, a incerteza pela retomada da vida nesses espaços paira sobre o processo de reparação”, afirma a Cáritas-MG.


O andamento da reparação

A Fundação Renova, criada em 2016 para a reparação do rompimento, informa que até 31 de março de 2024 foram destinados R$ 35,8 bilhões a ações de reparação e compensação, sendo R$ 14,18 bilhões para o pagamento de indenizações e R$ 2,78 bilhões em auxílios emergenciais, em 442,7 mil acordos. Ocorreram 534 casos do que a entidade classifica como restituição do direito à moradia, com entrega do imóvel ou pagamento de indenização, e outros 178 têm solução definida.

 

Um total de 179 famílias tem atendimento de moradias temporárias, segundo a Renova. Em Novo Bento Rodrigues, dos 248 imóveis previstos, 115 foram entregues; 192 construções estão com obras finalizadas, incluindo escola, estações de tratamento de água e esgoto e posto de serviços.

 

Em Paracatu, diz a fundação, dos 94 imóveis previstos, 50 foram entregues; 75 construções estão com obras finalizadas, incluindo escolas de ensino fundamental e infantil, posto de saúde e posto de serviços.