O crime de stalking ganhou destaque no cenário nacional após Kawara Welch, de 23 anos, ser presa por perseguir durante cinco anos um médico e sua família, em Ituiutaba, no Triângulo Mineiro. A mulher foi detida preventivamente no início de maio depois de mais de um ano foragida.
O stalking é considerado uma prática criminosa desde 2021, e, no primeiro ano em que a lei 14.132 vigorou, 3,7 mil casos de perseguição foram registrados em Minas Gerais, de acordo com dados da Secretaria de Estado de Justiça e Segurança Pública (Sejusp-MG). Em 2023, o número cresceu cerca de 40%, avançando para mais de 5 mil ocorrências de stalking.
Neste ano, de janeiro a março, Minas registrou 1.324 casos de perseguição, um aumento de 6% em relação ao mesmo período de 2023.
Os dados mostram que esse não é um caso isolado. Uma mulher de 37 anos, que não quis se identificar, é vítima de stalking desde 2020. A perseguição por parte do ex-marido começou com o fim de um relacionamento de 13 anos. Em mais de uma década de casamento, ela revela nunca ter percebido um comportamento agressivo por parte do então companheiro. "Era muito bonzinho, bem tranquilo", contou. Essa tranquilidade, no entanto, durou até que ela assumisse outro relacionamento, seis meses após o divórcio.
"Ele invadiu minhas redes sociais e enviou mensagens para a pessoa com quem me relacionava. Chegou a fazer publicações em enquetes me ofendendo. Ele tinha acesso à minha casa porque temos uma filha, que na época tinha um ano. Veio até minha casa armado e me agrediu pela primeira vez, me chutava, falou que iria me matar na frente da nossa filha e só parou porque havia outros homens trabalhando em uma obra no apartamento ao lado, que o seguraram", narrou.
Depois da agressão, ela procurou a Polícia Militar (PM) e registrou um Boletim de Ocorrência junto de uma solicitação de medida protetiva, acatada no dia seguinte.
Todos os dias, durante oito meses, o ex-marido enviava mensagens com ofensas para ela, além de enviar recados por meio de terceiros. Segundo a vítima, o homem chegou a dizer para a filha que tinha uma arma e "matava pessoas", para que ela contasse para a mãe.
Apenas depois de registrar oito ocorrências por perseguição, o ex-companheiro foi detido, porém, passou 50 dias na prisão e voltou a importunar a mulher. "Ele continua. Espalha mentiras sobre mim, fala que roubei tudo dele; das poucas vezes que encontra minha filha, manda recados com ameaças", contou.
A situação deixou sequelas profundas na vítima. "Aprendi a não acreditar nas pessoas. Tudo isso veio de um relacionamento que eu acreditava muito; ele era muito bom", lamentou.
Conduta não era definida como crime
O advogado criminalista Bruno Rodarte explica que "a conduta já existia, mas não era definida como crime. A prática era tipificada de outras formas, como ameaça e agressão, e o stalking trouxe essa questão da perseguição."
Além da notificação correta dos casos, o especialista acredita que esse aumento é influenciado pelo comportamento das pessoas nas redes sociais. "Com a pandemia, as relações se estreitaram, mediadas pelo meio digital. A população se acostumou com esses laços, e houve um aumento dessa rede de contatos. Então, as pessoas não estão acostumadas com respostas negativas fora do online."
"A população ainda fala muito sobre crimes motivados por ‘amor’. Esse agir passional já foi revogado, não é mais tutelado pelo direito, não passa de achismo e ilusionismo”, pontuou Rodarte.
Em caso de suspeita de stalking, a vítima pode acionar a Polícia Civil (PCMG) ou Militar para registrar uma ocorrência, mesmo que não saiba quem é o autor. O advogado aconselha que a pessoa narre todos os fatos, peça providências sem imputar crimes e faça uma representação contra o suposto agressor. "A apuração mais detalhada deve ser feita pelas autoridades, não é dever da vítima fazer provas", explicou.
Caso Kawara
O caso de stalking que acendeu um alerta em todo Brasil teve início em 2019. Kawara era paciente do médico e teria começado a persegui-lo, alegando estar apaixonada por ele. O especialista teria parado de atender à mulher, e ela passou a fazer ameaças e começou a ligar para familiares do profissional.
O homem disse que havia sido procurado pela jovem para tratar uma depressão, mas ela passou a tentar um relacionamento. Como ele se negava, enviava mensagens em que amarrava uma corda ao pescoço e simulava um enforcamento. Em um dia, chegou a mandar 1.300 mensagens e a fazer mais de 500 ligações por celular.
O médico e a mulher dele registraram 42 boletins de ocorrência por perturbação do sossego, ameaça e extorsão. Kawara soma 12 passagens pela PCMG, registradas entre 2021 e 2023. Além de casos de assédio e importunação, a mulher de 23 anos está sendo investigada por roubo e descumprimento de medidas protetivas.
Ela chegou a ser presa em flagrante em janeiro de 2023 por ter invadido o consultório do médico, roubado o telefone da esposa da vítima e a agredido. Na ocasião, contou com a ajuda da avó e anunciou que não devolveria o celular, dizendo que o entregaria ao seu advogado.
O momento foi registrado em vídeo, porém, ela ameaçou a pessoa que estava gravando, dizendo para "não entrar no meio", senão "sobraria para ela". A esposa do médico sofreu múltiplas escoriações no tórax e em membros superiores e inferiores.
Foi concedida liberdade provisória para a suposta stalker, que voltou a perseguir a família, incluindo o filho do casal, 15 dias após a soltura, mesmo com medidas cautelares em vigor. A prisão preventiva só foi decretada em 3 de março de 2023 e efetuada no último dia 8 de maio.
Kawara seguirá detida para as investigações do caso, no entanto, há a possibilidade de uma soltura. "A prisão preventiva não possui prazo limite, mas, a cada 90 dias, a necessidade da detenção do investigado será avaliada por um juiz", esclareceu Rodarte.
"Esse caso ilustra formas de stalking de maneira ampla, seja digital, por mensagens e ligações, ou física, quando ela acompanhava a vítima em congressos, ia atrás dele em outras cidades, na clínica onde ele trabalha, por exemplo", pontuou o especialista.
O advogado criminalista explica que Kawara pode ser denunciada por outros crimes além do stalking: "As penas referentes a violência serão aplicadas separadamente ao crime de stalking. As ligações para o filho do casal, inclusive, são um agravante que aumenta a pena até a metade".
Um dos aspectos mais intrigantes do crime é a forma como a investigada teria utilizado a tecnologia para perseguir o médico, que trocava o número de celular com frequência, mas ela sempre descobria.
"Caso seja apurado que esse conhecimento dos dados confidenciais da vítima utilizados para cometer o crime, como números de telefone, tenham sido obtidos a partir de redes sociais, essas empresas também podem ser responsabilizadas criminalmente", explicou.
O advogado criminalista Berlinque Cantelmo avalia que existe um prejuízo em relação a essa demora nas tomadas de decisão em relação ao caso. "Não faz sentido alguém sofrer tanto tempo. É preocupante. A vítima de stalking pode enfrentar riscos significativos à sua saúde mental, como ansiedade e depressão, além de riscos físicos se a perseguição escalar para confrontos ou violência física. É crucial levar qualquer sinal de stalking a sério e buscar ajuda", alertou.
Caso Kawara seja denunciada e condenada por stalking, ela sequer pode ser detida em regime fechado. "As penas de prisão por stalking geralmente não resultam em regime fechado devido à classificação como crime de menor potencial ofensivo, onde a pena máxima não ultrapassa quatro anos. Isso permite outras medidas, como a prisão domiciliar ou outras penalidades alternativas", destacou.
O que é stalking?
A palavra em inglês é utilizada na prática de caça e deriva do verbo "stalk", que corresponde a perseguir. O crime consiste em uma forma de violência na qual o sujeito invade repetidamente a esfera da vida privada da vítima, por meio da reiteração de atos de modo a restringir sua liberdade ou atacar sua privacidade ou reputação.
No Brasil, a prática passou a ser considerada criminosa em março de 2021. A pena para o crime de stalking prevista no Código Penal brasileiro é de seis meses a dois anos de reclusão e multa.
* Estagiária sob supervisão do subeditor Thiago Prata