Perto de vencer o prazo para se adequar à decisão do Supremo Tribunal Federal (STF) que anulou leis estaduais de contratação de professores temporários, Minas Gerais ostenta o título de estado com o menor percentual de docentes efetivos do país, conforme pesquisa divulgada pela organização Todos pela Educação. O estudo identificou que, enquanto houve redução de docentes efetivos na rede pública estadual – hoje eles representam 19% do quadro em Minas –, o número de temporários cresceu 540% em uma década. Por outro lado, a Secretaria de Estado de Educação afirma ter um contingente maior: 47% dos professores são efetivos. Independentemente dessa discrepância, especialistas e representantes de entidades ouvidos pelo Estado de Minas alertam para a precarização da carreira e os impactos disso na aprendizagem dos alunos, principalmente de matérias-chave como Língua Portuguesa e Matemática.
Entre 2013 e 2023, houve aumento de 65,3 mil professores temporários na rede estadual de ensino (540% de crescimento), ao passo em que a rede estadual cortou 69,3 mil professores efetivos do quadro (77% de queda em uma década). Atrás de Minas, o Sergipe registrou aumento de 294% na proporção de docentes temporários e o Tocantins de 139%. Na direção contrária, a Bahia reduziu o número de temporários e aumentou em 82% os concursados em um intervalo de 10 anos. “Esse tipo de contratação (temporária) deveria ser uma exceção, para utilização em casos específicos previstos na legislação, mas o que vemos é que ela tem se tornado a regra nas redes estaduais de ensino”, avalia Ivan Gontijo, gerente de Políticas Educacionais do Todos Pela Educação.
O Rio de Janeiro é o estado com a maior taxa de professores efetivos (96%). Na Bahia, Pará e Rio Grande do Norte, as porcentagens também são elevadas, superando os 90%. Nos últimos três anos, 67% dos estados aumentaram a quantidade de temporários e diminuíram a de efetivos. “Isso está relacionado com a baixa frequência de realização de concursos públicos para docentes, motivada por diversas questões, como a proibição de novos concursos em decorrência da pandemia, desafios fiscais nos estados e a própria preferência de alguns gestores pelo modelo de contratação mais flexível. Esse cenário pode trazer impactos negativos para a educação, em especial quando se observa que em muitas redes é baixa a qualidade das políticas de seleção, alocação, remuneração e formação para esses profissionais”, aponta Gontijo.
NÚMEROS DO ÓRGÃO
Procurada pela reportagem, a Secretaria de Estado de Educação de Minas Gerais (SEE/MG) contesta os dados e apresenta números diferentes dos divulgados pelo estudo da Todos pela Educação. Segundo a secretaria, atualmente, 47% dos professores são efetivos e 37% ocupam cargos que não permitem a realização de concursos, como substituições e projetos temporários. “(...) tais como substituições, cargas horárias inferiores a cinco aulas, ou funções em projetos temporários como reforço escolar e agrupamento temporário. Os 16% restantes dos cargos são passíveis de nomeações, e a SEE/MG está tomando todas as medidas necessárias para preenchê-los", afirmou em nota.
A contratação de professores temporários em Minas Gerais já foi alvo de disputas na Justiça. Em 2022, o Supremo Tribunal Federal (STF) declarou inconstitucionais as leis estaduais 7.109/1977 e 9.381/1986, que permitiam a convocação temporária de profissionais da educação em casos de vacância de cargos efetivos. O órgão estabeleceu um prazo de 24 meses — previsto para encerrar em agosto deste ano — para que o governo de Minas adote as medidas necessárias para cumprir a decisão da Corte. Até lá, os atuais contratos serão preservados, e o Executivo estadual poderá contratar novos temporários para manter a regularidade do ensino público, desde que a vigência não supere dois anos.
Agora, um novo projeto de lei que estabelece novas regras para a contratação de docentes temporários no estado aguarda a sanção do governador Romeu Zema (Novo). O PL 875/23, aprovado no Plenário da Assembleia Legislativa de Minas Gerais (ALMG) no início do mês, estipula prazos para concursos após contratações temporárias e detalha regras para prorrogações e recontratações. As mudanças incluem ainda critérios para preenchimento de vagas, definições de funções de magistério e remuneração. Além disso, garante direitos como a participação em concursos públicos.
PRECARIZAÇÃO DO TRABALHO
A contratação em larga escala de temporários, embora possa representar uma solução momentânea para suprir demandas emergenciais, é vista como um fator que contribui para a precarização da carreira docente, conforme avaliações de especialistas e do sindicato da categoria. “Nós já estávamos denunciando isso há muito tempo. O estado não tem uma política permanente de realização de concurso, e isso favorece os processos de precarização. Não é apenas uma questão de salários baixos; também há uma sobrecarga de trabalho devido ao aumento de responsabilidades. O professor ministra aulas, desenvolve material para plataformas digitais, corrige provas e participa de reuniões, tudo isso fora do horário regular de trabalho”, destaca Denise Romano, coordenadora-geral do Sindicato Único dos Trabalhadores em Educação de Minas Gerais (Sind-UTE/MG).
Há anos, entidades representativas da categoria em Minas Gerais cobram a realização de concurso público na área da educação. A última convocação foi feita em abril para os últimos excedentes (1.260 professores) aprovados no certame de 2017. Ao ser questionada pela reportagem, a SEE/MG afirmou ter realizado no ano passado um dos maiores concursos públicos da área, oferecendo cerca de 20 mil vagas para cargos da área de educação. A homologação e o primeiro lote de nomeações estão previstos para ocorrer ainda neste mês. “Entretanto, o número de aprovados no certame foi insuficiente para suprir a demanda apresentada”, reconhece a pasta. Nos planos para 2024, a SEE/MG prevê um novo concurso público. “É importante compreender que a realização de concurso da magnitude e capilaridade da rede estadual de ensino de Minas Gerais, a segunda maior do país, requer um planejamento acurado”, completa a SEE/MG.
Essa precarização tem reflexos na qualidade do ensino, apontam especialistas. Sem exigência de formação superior para exercer o cargo na educação básica, faltam profissionais qualificados em sala de aula. Muitos abandonam a universidade antes de receber o diploma ou então deixam a sala de aula com apenas cinco anos de magistério. “Não precisa ser formado para dar aula no estado. É só ter uma autorização que a própria Secretaria de Educação fornece. Temos uma massa de servidores precarizados, e o estado incentiva isso”, aponta a coordenadora-geral do Sind-UTE/MG. A falta de estabilidade e perspectivas a longo prazo, apontadas na pesquisa da Todos pela Educação, também desestimula talentos a ingressarem na profissão e dificulta a retenção de profissionais qualificados.
Em disciplinas como Língua Portuguesa e Matemática, o fato de um estudante ter um professor temporário está associado a um desempenho menor na avaliação, mesmo quando levados em conta fatores como o nível socioeconômico e a raça/cor dos estudantes, apontou a pesquisa da organização. “São poucos os estudos que abordam essa questão, mas eles têm apontado para uma correlação entre a contratação temporária e o menor rendimento dos alunos em avaliações externas. Efeitos negativos observados não devem ser interpretados como um alerta contra esses profissionais ou analisados sob uma perspectiva de culpabilização do professor”, reforça o gerente de Políticas Educacionais da organização.
Três aspectos são destacados como explicação para esses efeitos negativos na aprendizagem dos estudantes: a alta rotatividade docente, que pode prejudicar o vínculo com a comunidade escolar e o efetivo desenvolvimento dos estudantes; os processos seletivos empregados pelas redes de ensino, muitas vezes carentes de etapas adequadas de avaliação; e as condições de trabalho dos professores, que podem ser inferiores às dos efetivos. Somado a um cenário onde os professores contratados são sistemicamente desvalorizados, mal pagos e recebem uma formação ruim, que, segundo a coordenadora-geral do Sind-UTE/MG, é o caso de Minas Gerais, ainda que o estudo da ONG não aponte um salário díspar entre docentes e efetivos.
Hoje, segundo o professor Luciano Mendes de Faria Filho, mestre em educação pela Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG), um quarto dos profissionais da educação básica do estado não é habilitado na disciplina que ensina. “Por que na medicina não se pode exercer a especialidade sem ser habilitado e na educação pode?, compara.
PERFIL DOS educadores
Ainda que o estudo da Todos pela Educação aponte uma alta rotatividade dos temporários como fator para o baixo desempenho escolar dos alunos, 43,6% dos docentes temporários no Brasil atuam há pelo menos 11 anos como professores, o que sugere que os contratos temporários não estão sendo utilizados apenas para preencher lacunas momentâneas, mas como uma parte integrante da composição do corpo docente fixo das escolas. Outra constatação da pesquisa é que cerca de 32% dos professores temporários têm até 34 anos. Embora mais jovens que os efetivos, apenas uma pequena parcela parece estar no início de suas carreiras. Isso sugere que a contratação temporária não é apenas uma porta de entrada para novos professores, mas uma prática adotada também por profissionais com certa experiência.
Em contrapartida, os efetivos apresentam uma média de idade mais avançada, com 35,9% deles com mais de 50 anos. Esse dado aponta para a possibilidade iminente de aposentadoria de uma parcela significativa desses professores, o que poderia acentuar ainda mais a diminuição do número de efetivos nas redes de ensino. Outro aspecto relevante é a disparidade na escolaridade entre os temporários e efetivos. Enquanto 93,5% dos professores temporários tinham curso superior em 2020, esse número era ainda mais elevado entre os efetivos, com 98,8%. A diferença se torna mais evidente quando se observa a proporção de professores com pós-graduação: 40,5% dos temporários contra 56,7% dos efetivos.