Igor trabalhava como jardineiro e estudava. Naquele ano, iria completar o ensino médio       -  (crédito: Arquivo pessoal/Reprodução)

Igor trabalhava como jardineiro e estudava. Naquele ano, iria completar o ensino médio

crédito: Arquivo pessoal/Reprodução

Igor Arcanjo Mendes, de 20 anos, estava a caminho do show dos Racionais MC's em Ouro Preto, na Região Central de Minas Gerais. Era a primeira vez que o jovem, que estava prestes a concluir o ensino médio, iria ver de perto o grupo que aprendeu a gostar por influência dos tios. Por volta das 21h30 de 15 de setembro de 2017, o carro que levava Igor e mais cinco amigos foi abordado por uma guarnição policial. Instantes depois de o condutor encostar o veículo, a vida do estudante foi interrompida por um tiro  na cabeça, desferido pelo então tenente Ícaro José de Souza. 


Quase 7 anos depois, no dia 15 deste mês, o julgamento do responsável pelo disparo trouxe o caso de volta à tona – o militar foi condenado a 12 anos por homicídio doloso qualificado no Tribunal do Júri de Ouro Preto. Além disso, o processo revelou que o inquérito da PM sobre o caso tentou justificar a forma da abordagem que levou à morte de Igor citando uma suposta ligação entre o público dos Racionais MC's e o “mundo do crime”.


“Ocorria na cidade um show da banda Racionais MC’s. Tem-se que as letras das músicas e o próprio estilo de portar da referida banda atraem um grande número de pessoas atuantes ou simpatizantes com o mundo do crime e da vida mais marginalizada no seio social”, pode-se ler no Inquérito Policial Militar (IPM) 116.521, concluído em novembro de 2017 pelo 52º Batalhão da PM de Minas Gerais, ao qual a reportagem do Estado de Minas teve acesso. A corporação abriu o procedimento para apurar as circunstâncias da morte de Igor Mendes.


 

A citação acima aparece no subtópico “legalidade da abordagem policial” do IPM. A ligação entre o público dos Racionais e o "mundo do crime", como foi descrito, surge outras vezes no decorrer do documento e é tida como um fator que contribuiu para a “compreensão das circunstâncias em que ocorreu a abordagem do veículo suspeito”. 


“As letras das músicas da banda supervalorizam a cultura da marginalidade e a suposta exclusão social, propiciando uma visão relativamente deturpada do poder público e fomentando comportamentos tendentes à cultura do caos e da vida inconsequente”, diz o inquérito. 

 


A tese é fundamentada com uma citação do artigo na Wikipédia sobre os Racionais MC’s, abordando o caráter das letras críticas do grupo, que, segundo o site, “demonstram preocupação em denunciar a destruição da vida de jovens negros e pobres das periferias” e citam temas como a “brutalidade da polícia, do crime organizado e do estado”.


Testemunha citou o show

 

A forma com que o inquérito destaca o show dos Racionais MC’s como um fato que influenciou a conduta policial daquele dia apareceu também durante os depoimentos do julgamento. Em entrevista ao EM, Yuri Assunção, assistente da acusação, conta que questionou o policial militar Rogério Sílvio, que testemunhava a favor do réu, se alguma situação atípica na cidade havia interferido na abordagem. Em resposta, o militar teria reproduzido o argumento sobre o público dos Racionais, mas foi interrompido pelo juiz por “expressar um ponto de vista pessoal”, diz Yuri. Rogério Sílvio também foi o militar que assinou o inquérito policial. 

 


Para a defesa do militar Ícaro José, condenado pela morte de Igor, a interrupção pode ter causado um mal entendido quanto à fala de Rogério. “Na nossa visão, a explicação do tenente-coronel [Rogério] foi no sentido da necessidade de uma atuação diferenciada, de acordo com estatísticas diante de determinados eventos”, como, por exemplo, a reincidência de tráfico de drogas em shows, diz Alexandre Miranda, advogado do réu. 


A investigação também indica que, no mesmo dia, a corporação realizava uma operação executada pelas equipes do 1º Curso de Radiopatrulhamento de Tático Móvel do 52º BPM para “dar apoio ao policiamento ordinário, realizando operações preventivas e repressivas, principalmente, as operações antidrogas e batida policial”.


O Estado de Minas procurou a PMMG e pediu um posicionamento sobre as alegações do inquérito. A corporação informou “que planeja suas ações e operações obedecendo todos os preceitos constitucionais”. A polícia não citou o caso específico de Igor Mendes.

 


A reportagem também tentou contato com a assessoria de imprensa dos Racionais MC’s, mas não obteve resposta. 

 

Trecho do inquérito policial militar instaurado em 2017 para investigar o caso

Trecho do inquérito policial militar instaurado em 2017 para investigar o caso

Reprodução

 

Racismo estrutural

 

“Muitas pessoas questionavam se meu irmão havia sido assassinado por ser negro, por estar de boné e por ser de bairro periférico, até eu mesma me questionei”, diz Nayara Mendes, irmã mais velha de Igor. Na época, depois que as apurações da Polícia Militar e as perícias da Polícia Civil constataram que não era possível ver quem estava dentro do carro, ela entendeu que poderia ter sido com qualquer pessoa. 

 


No entanto, depois da fala da testemunha do réu na audiência, ela afirma que teve certeza que o que matou Igor foi o racismo estrutural. “Não teria tantas viaturas, não teria policiais armados com fuzis, e não estariam todos certos que a cidade estava cheia de suspeitos se não fosse o show dos Racionais”, argumenta a irmã da vítima.


Ela tinha 21 anos quando Igor foi assassinado. Naquele dia, Nayara abriu a porta de casa e chamou a mãe, Tânia Arcanjo. Ambas receberam a notícia de que o jovem havia sido baleado e estava no hospital. 

 

 


Ela relembra a tragédia com dor na voz e descreve como ainda é difícil para os três irmãos e, principalmente, para Tânia. “Ele era louco pela minha mãe, tinha o nome dela tatuado no braço. Ela criou nós quatro sozinha, com muito amor e muito carinho”, diz. 


Para o show dos Racionais, numa tentativa de tranquilizar a mãe, Igor, que trabalhava como jardineiro, havia comprado ingresso para o camarote, pois no setor acreditava ser menos provável acontecerem brigas. Ele também decidiu ir de carro com os amigos porque seria “mais seguro” do que de ônibus, conta Nayara.



O caso 

O inquérito descreve que a guarnição comandada pelo tenente Ícaro visualizou o Palio em que Igor estava pela Rua Doutor Pacífico Homem, no Centro de Ouro Preto, e, devido aos vidros escuros e por ter seis pessoas no interior, o veículo foi abordado. A viatura foi estacionada à frente do carro, o que colocou os militares em uma “condição vulnerável por não ser o padrão de abordagem”, argumentou o advogado do réu, Alexandre Miranda. 


O policial Ícaro se aproximou do veículo e ordenou que os passageiros descessem com as mãos na cabeça. Segundo a defesa do PM e a descrição no inquérito, Igor teria feito um movimento brusco com os braços, segurando um objeto nas mãos – um celular, como indicado pelo IPM e pelas testemunhas. “Neste instante, temendo por sua segurança e de terceiros, o tenente Ícaro efetuou um disparo com a arma de fogo que portava no momento da abordagem, a carabina 5.56“, informa o documento. 


“A diferença entre estar vivo e morrer para um policial é de um segundo”, diz o advogado de defesa Alexandre Miranda. Ele relembra o caso do sargento Roger Dias, morto por um disparo na cabeça em perseguição, e afirma que Ícaro agiu para se proteger. Apesar de reconhecer a tragédia e lamentar o ocorrido, o representante legal do réu defende que “não é justo desconsiderar que dentro da farda tem uma pessoa, tem um pai de família, o filho de alguém. E que ele não quer morrer. Não é justo dizer que o policial não tem chance de errar, se enganar.”


O caso de Igor repercutiu e comoveu moradores de Ouro Preto. A irmã do jovem destaca como o apoio da sociedade foi fundamental na luta pela justiça

O caso de Igor repercutiu e comoveu moradores de Ouro Preto. A irmã do jovem destaca como o apoio da sociedade foi fundamental na luta pela justiça

@justicaigormendes/Reprodução

 

PM foi condenado

A família de Igor realizou movimentos pedindo por justiça desde a época do fato. De acordo com Nayara, a mobilização começou “quando a gente ainda estava absorvendo a notícia, ainda sem entender o que tinha acontecido, e ouvimos na rádio que meu irmão era traficante. Na hora eu pensei que, se a gente ficasse quieto, isso ia virar uma verdade. E não era verdade”.


Com o julgamento sete anos depois, Nayara diz que reviver o luto foi muito difícil, mas foi um alívio para o coração quando o júri decidiu pela condenação. “Agora, seguimos com a dor da saudade, mas não com a dor da impunidade”, afirma. Mesmo condenado a 12 anos, Ícaro poderá recorrer em liberdade, mas com recolhimento domiciliar noturno e dias de folga. Até o trânsito em julgado, ele poderá manter atividades policiais, desde que não sejam externas. O militar deverá deixar o cargo na PMMG quando a sentença se tornar definitiva. 


Na decisão, o juiz afirma que a conduta do policial foi incompatível com o exercício de função pública, uma vez que ele reagiu de forma desproporcional ao efetuar o disparo letal no crânio do jovem. A sentença também reitera que Ícaro não era um militar inexperiente e dispunha de outras alternativas para abordagem. A defesa do réu já entrou com recurso à decisão. 


Nas redes sociais, os familiares de Igor se pronunciaram sobre a condenação. No texto, eles dizem que o decidido e o direito de recorrer em liberdade "parece pouco", mas que é uma vitória em "um país onde morre um jovem negro a cada 23 minutos".

 

*Estagiária sob a supervisão do subeditor Fábio Corrêa