A família de Larissa Moraes de Carvalho, de 31 anos, que está há pouco mais de um ano em estado vegetativo após uma cirurgia na Santa Casa de Misericórdia de Juiz de Fora, na Zona da Mata mineira, aponta que um tratamento de neuromodulação com indicação médica é a esperança para que ela retome, ao menos em parte, as funções motoras e de cognição e, deste modo, tenha mais qualidade de vida. O entrave é o preço: pouco mais de R$ 406 mil. O plano de saúde não cobre, e uma batalha na Justiça foi travada para obter a assistência.

 

Estudante do terceiro período de medicina na Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ), Larissa veio a Juiz de Fora para realizar uma cirurgia ortognática, procedimento que visava correções de crescimento dos maxilares e mandíbulas e era recomendado por dentistas desde a infância. Ela deu entrada na Santa Casa em 16 de março do ano passado, quando passou pelo procedimento, mas sofreu uma parada cardiorrespiratória. A Polícia Civil deu início a uma investigação a pedido do Ministério Público. Relembre o caso no fim da reportagem.

 



 

Após ficar um ano internada, Larissa teve alta em 15 de março, pois a família obteve judicialmente o acesso ao ‘home care’, onde os cuidados seguem em casa por meio de uma UTI domiciliar. Desde então, um trabalho de fisioterapia e fonoaudiologia vem sendo realizado, o que, segundo o pai dela, Ricardo Carvalho, trouxe resultados ainda pouco expressivos.

 

“No início, ela não conseguia mexer sequer a língua. Hoje, já teve uma pequena melhora. Minha filha fica com o olhar vago em muitos momentos, mas, às vezes, ela gira lentamente a cabeça em nossa direção quando a chamamos. Afetou muito a cognição dela. Então, não sabemos exatamente até que ponto ela nos reconhece e entende o que está acontecendo”, explicou Carvalho, acrescentando que ele e a esposa passaram a ter mais esperança após a recomendação de um tratamento de neuromodulação não invasiva.

 

Laudo com indicação de tratamento

 

Larissa foi analisada por médicos que integram o centro de referência neurológica de uma clínica particular da cidade. Um dos profissionais é especialista em reabilitação neurofuncional, conforme indicado em laudo que a reportagem teve acesso. No documento consta que é possível conseguir a “melhora da funcionalidade motora, linguagem e cognição ao associar as técnicas de neuromodulação não invasiva (estimulação magnética transcraniana) e a estimulação elétrica por corrente contínua em pacientes com lesões cerebrais graves”. O valor orçado para o tratamento com duração de 12 meses é de R$ 406.560.

  

O plano de saúde negou o tratamento, em 23 de junho de 2023, alegando que, “no presente caso, o procedimento solicitado de Neuromodulação foi indeferido por ausência de cobertura obrigatória no Rol de Procedimentos Médicos do PAS-JF”. 

 

“Ressaltamos que os novos procedimentos e terapias médicas para uso no Brasil devem ser avaliados pelo Conselho Federal de Medicina (CFM) quanto à segurança, eficiência, conveniência e benefícios aos pacientes. Os tratamentos e as respectivas indicações sem o reconhecimento cientificamente válido pelo órgão são considerados como experimentais”, declarou o PAS/JF em outro parecer emitido em 18 de setembro. 

 

No entanto, conforme consta no processo, a utilização de neuromodulação não invasiva foi recomendada por uma médica da Santa Casa que acompanhou Larissa durante sua internação ao longo de um ano e também após a alta do hospital.

 

O laudo particular foi realizado pela única clínica da cidade habilitada para o tratamento recomendado. O parecer da unidade foi anexado em ação que a família move na Justiça contra o Plano de Assistência à Saúde do Servidor da Prefeitura de Juiz de Fora (PAS/JF). O documento cita referências sobre a eficácia do procedimento indicado a Larissa. Veja um trecho a seguir:

 

Em 1° de julho de 2022 foi publicado Acórdão n°5153, que “dispõe sobre normatização da aplicação pelo fisioterapeuta, na prática clínica, das técnicas de estimulação do sistema nervoso central e periférico”. Neste procedimento, é normatizada a estimulação elétrica não invasiva do sistema nervoso central por profissional capacitado, a fim de modular funções do sistema nervoso, dentre elas as sensoriais, autonômicas e cognitivas. Com publicação na mesma data, a resolução N°554/2024 reconhece a utilização das técnicas de estimulação magnética não invasivas, considerando que “há evidência científica para uso clínico seguro das estimulações elétrica e magnética não invasivas do sistema nervoso para o tratamento no âmbito da Fisioterapia, com o objetivo de controle da dor, melhora da função sensório-motora e cognitiva” (COFFITO, 2022).

Sabe-se que as técnicas de neuromodulação não invasivas não estão incluídas no rol de procedimentos estabelecidos pela Agência Nacional de Saúde Suplementar (ANS). Contudo, apesar de taxativo, também é regulamentado que, em situações excepcionais, as operadoras de saúde devem custear procedimentos não previstos na lista da ANS, desde que tenham comprovações da eficácia do tratamento à luz da medicina baseada em evidências, com indicação médica e recomendações de órgãos técnicos reconhecidos (ANS, 2021).

 

Batalha na Justiça

 

Em 19 de setembro, Carvalho e a esposa recorreram à Justiça após outras tentativas de negociar com o plano de saúde. No entanto, no dia seguinte, o juiz Marcelo Alexandre do Valle Thomaz, da 2ª Vara da Fazenda Pública e Autarquias Municipais da Comarca de Juiz de Fora, indeferiu o pedido de tutela de urgência, afirmando que há “ausência de elementos que comprovem a necessidade de imediata concessão do tratamento”.

 

Em 23 de janeiro deste ano, o mesmo magistrado deu a sentença confirmando o que já havia determinado ao julgar o pedido de tutela provisória. “Sabe-se que o desejo de recuperação da autora, cujo quadro sinceramente se lamenta muito, é grande e a família estima muito pela sua melhora, contudo não é suficiente a indicação do procedimento pela própria empresa que o fornece, tampouco estudos científicos sobre o assunto. Exige-se uma prova de que o tratamento será eficaz no caso concreto da autora”, avaliou.

 

Decisão do TJMG favorável ao tratamento

 

Um dia antes do juiz em primeira instância dar a sentença, o desembargador Rogério Medeiros, em decisão monocrática, entendeu que o tratamento de Larissa com neuromodulação deveria começar. “O relatório médico descreve de forma pormenorizada e aponta de forma direta a urgência do tratamento buscado, advertindo que a delonga pode gerar efeitos irreversíveis na recuperação e, se tratando de questão neurológica, fica reforçada a agilidade no fornecimento do tratamento”, concluiu.

 

O advogado Fábio Guimarães Timponi disse que a decisão do TJMG, infelizmente, chegou tarde. “O juiz (em primeira instância) negou a neuromodulação sem saber da decisão do desembargador, que, embora tenha sido dada um dia antes, é a próxima a aparecer na sequência do processo. Ou seja, a decisão do tribunal só chega a Juiz de Fora depois que o juiz daqui já havia proferido a sentença”, explicou.

 

Com isso, a defesa entrou com uma apelação em 6 de fevereiro, ainda não apreciada. Em 26 de março, o advogado protocolou um pedido de agilidade no processo, tendo em vista a urgência do tratamento.

 

PL para inclusão do tratamento no SUS está travado na Câmara

 

O Projeto de Lei (PL) 5376/2023, que dispõe sobre a inclusão de procedimentos de neuromodulação não invasiva na lista de procedimentos do Sistema Único de Saúde (SUS), foi proposto pela deputada federal Maria Rosas (Republicanos-SP). A proposta começou a tramitar em 7 de novembro do ano passado, mas está travada na Câmara desde 5 de dezembro aguardando o parecer do relator na Comissão de Saúde.

 

Investigação

 

Ao determinar que a Polícia Civil investigasse a relação entre a condução dos procedimentos na Santa Casa e o estado vegetativo de Larissa, o Ministério Público destacou alguns trechos de ampla documentação apresentada pela defesa. No despacho judicial, o promotor de Justiça Jorge Tobias de Souza cita “laudos periciais elaborados por profissionais médicos” contratados pela família, que dizem: “Evidenciam-se falhas em diferentes pontos da assistência médico-hospitalar prestada, desde o acompanhamento anestésico até cuidados pós-PCR, que contribuíram para o desfecho neurológico observado.” Além do hospital, o médico-cirurgião e o médico anestesista são investigados no caso.

 

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Em documento remetido à Justiça para instauração do processo cível com pedido de indenização, o advogado da família também anexou os laudos indicando que a paciente deveria ter ficado ao menos uma hora em observação na Sala de Recuperação Pós-Anestésica (SRPA), conforme orienta a Sociedade Brasileira de Anestesiologia (SBA) para cirurgias com mais de cinco horas de duração, como foi o caso de Larissa.

 

No entanto, ela teria permanecido na SRPA por apenas 20 minutos e recebeu alta, sendo transportada do 14º para o 9º andar, momento em que ocorreu a parada cardiorrespiratória. Larissa, conforme a família, permaneceu nessa condição por cerca de 17 minutos até ser socorrida, o que causou graves lesões cerebrais. Os pais afirmam que a filha chegou ao quarto desacordada. Procurada pela reportagem, a Santa Casa disse que não iria se manifestar.

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