Nova Lima, na Região Metropolitana de Belo Horizonte, é a melhor cidade brasileira para se ter filhos. Ao menos é o que indica pesquisa da startup Mapfry, divulgada na última semana, com base em dados do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE). O Estado de Minas foi até a cidade, conversou com moradores e especialistas para saber se a percepção da população reflete o apresentado no estudo. Revelando uma realidade socioeconômica complexa e que se desdobra além das primeiras impressões, os próprios nova-limenses ouvidos pela reportagem veem a cidade dividida em polos: do luxo à desafiadora pobreza.

 

De acordo com o estudo da Mapfry, Nova Lima tem o maior equilíbrio entre custo de vida e oportunidade de ganhos. “Na pesquisa, usamos dados do IBGE que indicam o desempenho da educação local e outros serviços públicos, como coleta de lixo, tratamento de esgoto e número de cômodos por moradia”, diz João Caetano, CEO da startup. O estudo avaliou os municípios com base em alto e baixo desenvolvimento, volume de crianças, infraestrutura urbana e dinamismo. Atrás de Nova Lima, aparecem Bady Bassitt (SP), Santana de Parnaíba (SP) e Abadia de Goiás (GO). Entre as cidades mineiras, a capital ocupa o terceiro lugar do ranking com 4,36 pontos

 

Conforme apurado pelo Estado de Minas durante a visita à cidade líder do ranking no país, o acesso à educação, saúde e lazer —aspectos cruciais na criação dos filhos— são percebidos pelos moradores em um mosaico de realidades diversas.

 

Vindo de Belo Horizonte, pela rodovia MG-030, já é perceptível que quem mora nos sete primeiros quilômetros de Nova Lima, em uma atmosfera que parece distante da pobreza, experimenta uma vivência contrastante em comparação àqueles que residem nos bairros mais afastados da fronteira com BH, onde fica visível a estratificação social e a desigualdade no município. Os próprios moradores fatiam a cidade em distintas porções ao descrevê-la: os condomínios de luxo, a área central e os bairros periféricos.

 

A pouco mais de 22 quilômetros da capital mineira, o centro de Nova Lima se apresenta como um refúgio de tranquilidade que remete aos encantos do interior. Lá, encontramos todos os elementos característicos de uma cidade pequena: uma imponente igreja, um charmoso teatro e construções simbólicas que contam a história de Minas Gerais. Para a advogada Iris Cipriano da Silva, de 69 anos, esse clima interiorano conspira a favor do título de melhor cidade para se educar os filhos.

 

Hoje, sua única filha, nascida e criada na cidade, mora nos Estados Unidos e ela, em busca de mais segurança, foi morar em um dos condomínios fechados de Nova Lima. Foi aí que as discrepâncias entre os diferentes núcleos da cidade ficaram ainda mais evidentes para ela. “O que você tem nas áreas nobres, não tem no centro da cidade. Aí você vai para as periferias é um milhão de necessidades, não tem passeio, não tem saneamento básico. E o povo acha que todo mundo que mora aqui é rico. É um bom lugar para morar? Depende de onde”, ressalta.

 

"Os vizinhos tomam conta do seu filho. Se ele estiver na rua fazendo coisa errada, você vai saber. Existe uma união na comunidade que nos dá paz de espírito"
por Iris Cipriano da Silva, 69, moradora de Nova Lima

 

Iris não deixa de apontar uma preocupação que afeta diretamente a criação de uma criança: a escassez de infraestrutura de saúde. O município não tem hospital público, porém, o hospital particular Nossa Senhora de Lourdes realiza atendimento pelo Sistema Único de Saúde (SUS) por meio de verbas repassadas pela Prefeitura de Nova Lima.

 



 

Sobrinha de Íris, a trancista Gleici Meury, de 35, mãe de três filhos, enxerga vantagens e desvantagens em criar as crianças na cidade. No entanto, crava: “Não sairia daqui nem se ganhasse na loteria”. Em tom de brincadeira, acrescenta: “Aí eu iria para um dos condomínios”. Ela elogiou a iniciativa da prefeitura em oferecer aulas gratuitas às crianças, como balé, zumba e circo, disponíveis para inscrição no Centro de Atividades Culturais (CAC) de cada bairro. Sua filha Elisa, de seis anos, frequenta aulas de capoeira uma vez por semana, a menos de dois quarteirões da casa da família, no bairro Bela Fama.

 

A trancista Gleici Meury, de 35, mãe de três filhos, enxerga vantagens e desvantagens em criar as crianças em Nova Lima. Na foto, Gleici e a filha, Elisa

Leandro Couri/EM/DA.Press

 

No entanto, ela expressa preocupação com a falta de acesso a psicólogos na cidade. “Estou tentando conseguir há meses para minha filha. Tem que ir para o particular, tirar dinheiro do bolso. Mas, e quem não tem essa condição?”, questiona.

 

A artesã Adrina Afonso de Oliveira Gasperoni, de 46, ressalta a qualidade da educação como ponto forte de Nova Lima, cidade que escolheu como lar há 11 anos, após se mudar do Espírito Santo. Seus filhos, hoje com 17 e 19 anos, frequentaram escolas municipais até o quinto ano, proporcionando, segundo ela, uma perspectiva abrangente do sistema educacional público. “Eles saíram muito bem preparados e foram para a escola particular no mesmo nível dos outros alunos, sem nenhuma dificuldade de adaptação. Na minha visão, não existe uma diferença entre o ensino municipal e o privado em Nova Lima”, disse.

 

Contrastes econômicos

 

Considerada a cidade mais rica do país, em recente pesquisa da Fundação Getúlio Vargas, Nova Lima está sempre listada positivamente em pesquisa e índices que a retratam como referência de qualidade de vida. No entanto, olhar esses dados isolados pode esconder um problema significativo: a desigualdade, alertam especialistas. Com pouco mais de 111 mil habitantes e uma extensão maior do que Belo Horizonte, a porção mais abastada de Nova Lima – composta por pessoas de alto poder aquisitivo residentes em condomínios e edifícios de alto luxo que chegam a valer R$ 30 milhões – infla os indicadores econômicos e cria uma distorção da realidade da população, que mascara a acentuada desigualdade no município, terceiro colocado no estado em termos de disparidade na distribuição de renda.

 

'Menina dos olhos' do mercado de alto luxo, a cidade também é vitrine de graves problemas de infraestrutura, residências desprovidas de rede de esgoto e vias de terra batida. O índice de Gini nova-limense, indicador que mede a desigualdade da distribuição de renda, é de 0,63, sendo o 43° maior índice entre as cidades brasileiras. Em comparação, o Brasil apresenta o dado de 0,51.

 

Adicionalmente, especialistas destacam que esse segmento mais afortunado da população não contribui de maneira significativa para a economia local. “É sempre uma faca de dois gumes. Embora essas pessoas escolham morar em Nova Lima, muitas delas trabalham em Belo Horizonte. Assim, elas não estão gerando riqueza no município, o que resulta nesse efeito locacional”, avalia Victor Barcelos Ferreira, economista e assessor executivo na Fundação João Pinheiro.


Desafio social

 

Bairro Água Limpa, em Nova Lima, na Grande BH, recebeu esse nome por ser uma região rica em nascentes, mas ainda carece de infraestrutura básica, como água encanada e asfalto

Leandro Couri/EM/DA.Press

 

Do outro lado da cidade, a luta é por direitos básicos. Moradora do Água Limpa, bairro próximo ao Alphaville, a dona de casa Joyce Oliveira Costa, de 27, só viu a implementação de creche e escola para seus filhos no bairro no ano passado. Essas instituições, no entanto, só atendem ao mais novo, de três anos, pois oferecem vagas do maternal ao segundo período. O mais velho, de seis, vai precisar se deslocar cerca de 10 quilômetros, utilizando o vale transporte da prefeitura, para estudar no Jardim Canadá ou no Miguelão. “Eu acho difícil falar que Nova Lima inteira é um bom lugar para se ter filhos. O bairro aqui é muito esquecido, ainda precisa de muitas coisas para atender as crianças”, disse em entrevista ao Estado de Minas.

 

" Nós queremos apenas dignidade mesmo. Poder sair na rua e calçar um tênis branco, que é o sonho de todo mundo aqui. Sentar no ônibus e não ficar com a roupa toda suja de poeira. Mas só de a luz já estar chegando já é um ponto positivo"
por Eunice Maria Fraga Ramos, de 37, moradora do bairro Água Limpa, em Nova Lima
 

 

Além da escassez de serviços essenciais, a família enfrenta a falta de infraestrutura básica, como saneamento e água encanada. Até mesmo a escola depende do abastecimento por caminhão pipa e do uso de fossas, realidade compartilhada por todos na comunidade. “Aqui não tem praticamente nada, as coisas que a gente tem é o que a associação do bairro traz”, disse. Mesmo diante da dificuldade, ela ainda prefere morar no bairro, principalmente pela liberdade que oferece às crianças, já que não teria condições de arcar com o custo de moradia em outro lugar. “Eu gosto de morar aqui, é bem tranquilo, tem um espaço grande para as crianças brincarem. Tem um lago para elas pescarem e nadarem”, disse.

 

O sentimento de Joyce encontra eco na história da dona de casa Eunice Maria Fraga Ramos, de 37. “Antes, eu morava de aluguel e só de ter conseguido meu cantinho aqui eu já fico muito feliz”. O loteamento do bairro começou nos anos 2000. Mas só agora existe a promessa de urbanização do lugar.

 

Questionada pela reportagem, a prefeitura afirmou ter assumido o processo de regularização fundiária e que, atualmente, está em fase de elaboração do projeto de infraestrutura para o bairro. “Logo em seguida, será realizada a licitação e execução das ações no local”, registrou por meio de nota. Enquanto isso, os moradores se veem obrigados a tomar medidas por conta própria para evitar problemas de saúde, especialmente relacionados à falta de saneamento básico.

 

Sem asfalto, as ruas de terra ainda se transformam em barro na época de chuvas. Apesar dos transtornos, Eunice ainda enxerga possibilidades de crescimento no bairro. “Meus filhos também gostam muito, aqui eles têm lugar para correr e brincar”, destaca. A cidade enfrenta um dos mais baixos índices de coleta e tratamento de esgoto do país, com apenas 18% do total gerado sendo devidamente coletado, de acordo com o Índice de Desenvolvimento Sustentável das Cidades (IDSC-Brasil).

 

Recentemente, iniciou-se a instalação da rede elétrica nas ruas do bairro, trazendo esperança aos moradores. "Nós queremos apenas dignidade mesmo. Poder sair na rua e calçar um tênis branco, que é o sonho de todo mundo aqui. Sentar no ônibus e não ficar com a roupa toda suja de poeira. Mas só de a luz já estar chegando já é um ponto positivo", conclui Eunice.

 

Na avaliação do assessor executivo na Fundação João Pinheiro, os condomínios de alto luxo retroalimentam essa desigualdade no município ao gerarem empregos que, em grande parte, não contribuem para atenuar a disparidade na distribuição de renda.

 

Uma ilustração dessa realidade é a pensionista Cirlena Cupert, de 50 anos, que semanalmente se desloca do Água Limpa para realizar serviços de faxina em residências no Jardim Canadá e Alphaville. Duas vezes por semana, ela também vai até BH para trabalhar. Vivendo em uma casa com os quatro netos, de idades entre um e nove anos, além da filha, Cirlena enfrenta a ausência de água encanada, utilizando um poço artesiano mediante o pagamento de uma taxa ao proprietário.

 

A moradora Cirlena Cupert Belonni, moradora do bairro Água Limpa, em Nova Lima, na Grande BH, espera que algum dia sua rua seja pavimentada

Leandro Couri/EM/DA.Press.Brasil

 


Perfil da população mudou

 

Nova Lima ostenta o título de maior Índice de Desenvolvimento Humano Municipal (IDHM) entre os seus pares em Minas Gerais. Esse dado coloca a cidade na 17ª posição no seleto grupo de 44 municípios brasileiros com desenvolvimento humano “muito alto”, a partir dos critérios do Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento (Pnud). Porém, também é uma das campeãs brasileiras de desigualdade.

 

No último censo, divulgado pelo Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), Nova Lima viu sua população crescer de 81 mil para 111 mil habitantes, um aumento de 37,9%, o que a coloca como o quinto município com maior aumento populacional no estado. Esse incremento foi acompanhado por uma elevação na renda média do município. “O que fica evidente é que a população que foi se fixando em Nova Lima, a partir do ano 2000, tem uma renda muito mais alta do que os antigos residentes. Isso tem implicações diretas não apenas para a economia local, mas também para as relações sociais entre os habitantes”, detalhou Victor Barcelos Ferreira, economista e assessor executivo na Fundação João Pinheiro, em pesquisa que analisa os indicadores de IDHM do município, entre 2000 e 2017.

 

Para o economista da Fundação João Pinheiro, essa discrepância se deve à falta de investimento em ações que promovam o desenvolvimento social a longo prazo. “O município está investindo muito no acesso à primeira infância, mas, por meio de parceria público-privadas, o que à longo prazo não reflete em um aumento da qualidade”, avalia.

 

Questionada pela reportagem, a administração municipal afirmou estar ciente da disparidade social presente no município e comprometida em criar oportunidades acessíveis para todos os seus moradores. A gestão ressalta os programas voltados à capacitação da população, como o Carreiras Tec+, Nova Língua e a Escola de Programação e Robótica.

 

*Estagiária sob supervisão do subeditor Rafael Oliveira

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