O olhar do comerciante Geraldo Alcebíades, guiado pela memória e pelo testemunho dos fatos, vai do presente ao passado sem deixar de lado, por um segundo sequer, o espanto. Se hoje ele se apavora com as cenas trágicas no Rio Grande do Sul, mostradas na tevê, não se esquece das inúmeras enchentes em Belo Horizonte, vistas de perto, em decorrência também de chuvas torrenciais. “Já vi a Praça da Estação (Praça Rui Barbosa) e a Avenida do Contorno se transformando em mar... e no meio da correnteza vinham bananeiras, troncos de árvores, portas de casa. Tive que sair da loja com a água pela cintura”, conta Geraldo Alcebíades, de 69 anos, que trabalha no Edifício Central, no Centro de BH, desde 1972. Para o comerciante, uma das piores tragédias ocorreu em 1983, triste episódio que deixou 55 mortos na capital.

 

“O Ribeirão Arrudas subiu demais, e, como não era coberto, transbordou e invadiu as pistas. Nós, comerciantes, perdemos muitos produtos”, recorda-se. Preocupado com a situação atual dos gaúchos, Geraldo informa que esteve atento às intervenções públicas para resolver problemas cruciais de BH, ao longo do tempo, mas não fica totalmente tranquilo. “O Arrudas foi coberto em um trecho, mas moradores da Avenida Teresa Cristina, por exemplo, ainda passam apertos. Nas avenidas Cristiano Machado, Bernardo Vasconcelos e Vilarinho, os problemas são constantes, basta chover forte. Tomara que as obras realizadas pela Prefeitura de Belo Horizonte (PBH) resolvam para se evitarem novos danos.”

 

Na sua oficina de conserto de equipamentos eletrônicos, no Edifício Central, Antônio dos Santos, de 68, diz que já viu o leito do Arrudas, protagonista de várias enchentes em BH, invadir o andar térreo do prédio. “Trabalho aqui há quatro décadas e sempre ficava apreensivo. Enfrentei três grandes enchentes, sofri prejuízos. O que assustava mais era a velocidade da água, que subia rapidamente e tomava conta de tudo”, recorda-se Antônio ao contemplar a Avenida dos Andradas agora longe dos perigos.

 



 

No palco de antigas e graves ocorrências, o ribeirão corria aberto, ladeado por muretas de proteção – em 2007, começaram as intervenções para a cobertura do afluente do Rio das Velhas. “Já vi de tudo aqui. Até ônibus caindo dentro do Arrudas. Impossível mesmo é esquecer do cenário provocado pelas tempestades”, observa Antônio. As palavras dele e de Geraldo encontram respaldo nas reportagens do Estado de Minas e nos registros meteorológicos, cuja coleta de dados começou, na capital, em 1912.

 

Geraldo Alcebíades, de 69 anos, viu avenidas importantes do Centro da capital serem invadidas pelas águas

ALEXANDRE GUZANSHE/EM/D.A PRESS


DRENAGEM INEFICIENTE

 

Conforme levantamentos feitos pelo engenheiro sanitarista José Roberto Champs, ex-diretor da Superintendência de Desenvolvimento da Capital (Sudecap), a primeira grande inundação na cidade ocorreu em 1923 decorrente do transbordamento do Ribeirão Arrudas. Em entrevista ao EM, Champs afirmou que BH já registrou mais de 200 inundações. E para quem culpa as chuvas pela situação, é bom destacar que esse não é o fator principal associado aos mais de mil cursos d’água que cortam BH. “Inundações são fenômenos naturais, mas aqui houve uma ocupação urbana desfavorável à forma como a capital foi concebida. Não temos um sistema de drenagem eficiente.”

 

 

Assim, junto ao crescimento da população, foram surgindo questões de alto risco para as drenagens, gerando impactos como a impermeabilização do solo (asfalto das ruas, piso de cimento dos quintais etc.). Tais aspectos aumentaram o volume do escoamento superficial e provocaram o transbordamento dos córregos. O resultado são chuvas que batem recordes: em janeiro de 2020, foram registrados 934,7 milímetros, de acordo com o registro do Instituto Nacional de Meteorologia (Inmet)/5º Distrito de Meteorologia/MG.

 

Edição do Estado de Minas de fevereiro de 1979 retrata a extensão do drama causado à população com a chuva em BH

ARQUIVO EM/REPRODUÇÃO


PESADELO EM ANIVERSÁRIO

 

No verão, as chuvas e consequentes estragos são maiores, e basta pesquisar para ver o quadro desolador. Em 12 de dezembro de 1977, quando BH completava 80 anos, a população viveu um pesadelo. Em 48 horas de chuva (174,2 milímetros), houve nove mortos, 17 feridos graves, 23 desaparecidos e isolamento da cidade. Também em 1977, só que no início do ano, 915 pessoas ficaram desabrigadas, com o desabamento de barracos no Bairro Salgado Filho, na Região Oeste. No ano seguinte, mais problemas. Em 23 de dezembro, as chuvas se tornaram históricas e atingiram BH, levando à interdição do Aeroporto da Pampulha.

 

O ano de 1979 também ficou marcado na memória dos mineiros. Em 7 de fevereiro, foram abertas as comportas da Lagoa da Pampulha, provocando inundações em bairros à jusante e deixando muitos desabrigados. No dia seguinte, o Ribeirão Arrudas transbordou, carros foram arrastados, o Parque Municipal Américo Renné Giannetti, no Centro, ficou alagado, assim como lojas da Avenida dos Andradas.

 

Uma foto na capa do EM de 11 de fevereiro de 1979 mostrava a extensão do drama, considerado pelas autoridades “uma tragédia nacional”. Na Rua Guaicurus, diante dos armazéns, em meio à lama, mulheres e crianças disputavam arroz, feijão e açúcar estragados pelas águas e descartados na porta dos estabelecimentos. O “dilúvio” no estado deixou mais de 250 mortos e 200 mil desabrigados.

 

Antônio dos Santos, de 68 anos, já teve sua oficina de eletrônicos alagada com o transbordamento do Ribeirão Arrudas

ALEXANDRE GUZANSHE/EM/D.A PRESS

 

Chuva em 1983 fez casas sumirem em BH

 

Apesar dos registros anteriores de alagamentos em Belo Horizonte, ao longo das décadas de 1980 e 1990, com a ampliação do sistema de drenagem na área central e a expansão da cidade em direção às regiões periféricas, surgiram outros pontos críticos. Ocorreram, nesse período, 69,5% das inundações.

 

Quadro triste mesmo foi em 2 janeiro de 1983, quando a favela Sovaco de Cobra, às margens do Ribeirão Arrudas, desapareceu. Até a Ponte do Perrela (no cruzamento das avenidas Contorno e Andradas) foi destruída, “cortando a ligação entre os bairros Floresta e Santa Efigênia”, conforme reportagem. Um relatório apontou 51 mortos e, no final de um mês, o número chegava a 70. Naquele ano, começavam as obras na calha do Arrudas, que chega a ter 22 metros de largura por 9 metros de profundidade em alguns pontos.

 

O século 21 trouxe mais devastação, algumas gravadas em todas as gerações. Na madrugada de 16 de janeiro de 2003, chuvas intensas mataram 25 pessoas em Minas, causando destruição e desespero nos aglomerados do Morro das Pedras, Cafezal e Taquaril. Na Vila Antenas, no Morro das Pedras, 11 pessoas da mesma família foram enterradas, morrendo nove crianças e adolescentes.

 

Já em dezembro de 2011, as águas voltaram a assustar, com o índice pluviométrico atingindo 720 milímetros. Mas o alto volume alto foi suplantado em janeiro de 2020, dois meses antes do início da pandemia: o período foi considerado o mais chuvoso de BH, com 934,7 mm, bem superior à média histórica do município para janeiro (330,9mm).

 

Força de um temporal arrancou o asfalto de rua em área nobre de BH, em 2020

Paulo Filgueiras/EM/D.A Press – 29/1/2020

 

Na noite de 28 de janeiro de 2020, um temporal atingiu uma das áreas mais nobres de BH. No Bairro Lourdes, na Região Centro-Sul, a Praça Marília de Dirceu foi tomada pela enxurrada que desceu pelo Córrego do Leitão, sob a Avenida Prudente de Morais, e destruiu o que estava pela frente: carros foram arrastados, o asfaltado teve parte arrancada e uma cratera surgiu diante dos olhos atônitos dos belo-horizontinos. De 24 de janeiro a 8 de fevereiro, foram registradas 59 mortes, no estado, devido às chuvas.

 

Avenida dos Andradas ficou arrasada com a enchente registrada na capital mineira, em 1983

Sidney Lopes/Arquivo EM - 2/1/1983


INVESTIMENTO EM PREVENÇÃO

Em nota, a Prefeitura de Belo Horizonte (PBH) informa que, além dos investimentos em obras, desenvolve ações permanentes de prevenção às enchentes e proteção da população contra riscos de desastres. O esforço envolve os órgãos da administração municipal para manutenção de bacias de detenção, limpeza de bocas de lobo e de vias, galerias, fundos de vales de córregos, contenção de encostas, além do trabalho preventivo de alerta e conscientização dos moradores das áreas de inundação da cidade. Há ainda um Sistema de Monitoramento Hidrológico capaz de subsidiar as ações de alerta e enfrentamento do risco de inundações, bem como acionar planos de bloqueio de vias durante as chuvas de maior intensidade.

 

As obras contemplam o Córrego Ressaca, na Pampulha, a Bacia do Córrego Santa Terezinha, na Região Leste, a recuperação estrutural da galeria do Córrego Acaba Mundo e desassoreamento da Barragem Santa Lúcia, ambos na Centro-Sul, bacia de detenção do Córrego São Francisco-Assis das Chagas, na Pampulha, bacias de detenção do Córrego Túnel- Camarões, no Barreiro, e, na mesma região, os córregos Olaria, Jatobá e Bonsucesso. Em Venda Nova, são contemplados o Córrego Vilarinho, com caixa de captação e segunda etapa de obras de prevenção de inundações na avenida Vilarinho e rua Doutor Álvaro Camargos.

 

E mais: obras da Bacia das Indústrias, para reduzir o risco de inundações na avenida Teresa Cristina, tratamento de fundo de vale e contenção de cheias da bacia do Córrego do Nado, recuperação de galeria do Córrego do Leitão, serviços no Ribeirão do Onça, para evitar inundações na avenida Cristiano Machado (próximo à Estação São Gabriel) e outras intervenções, em andamento, de prevenção de enchentes. São essas no Barreiro, em Venda Nova, no Córrego Ferrugem, na Região Oeste, no Ribeirão Pampulha, e Otimização do Sistema de Macrodrenagem do Córrego Santa Inês, na Região Leste.

Capas do Estado de Minas, de 1997 e 2003, mostram tragédias causadas por temporais

ARQUIVO EM/REPRODUÇÃO


DÉCADAS DE PROBLEMAS

BH tem vários registros de inundações. Confira as ocorrências mais graves:

1923

Registro de grande inundação na Bacia do Ribeirão Arrudas

1977

Em 12 de dezembro, no aniversário de 80 anos de BH, chuva provoca nove mortes e deixa capital isolada do resto do país

1979

Em 7 de fevereiro, são abertas as comportas da Lagoa da Pampulha, com a inundação de áreas e grande número de desabrigados

1983

BH vive uma de suas maiores tragédias, quando águas invadem a favela Sovaco de Cobra e deixam 55 mortos

1997

Em janeiro, são registrados 66 mortos no estado, sendo 29 na Grande BH

 

Capa do Estado de Minas, de 1997 e 2003, mostra tragédias causadas por temporais

ARQUIVO EM/REPRODUÇÃO

2003

Chuva na madrugada de 16 de janeiro mata 20 pessoas em BH e causa destruição nos aglomerados dos morros das Pedras, Cafezal e Taquaril

2020

Em janeiro, BH registra o maior índice pluviométrico de sua história (934,7 mm), com a chuva arrasando bairros nobres da Região Centro-Sul




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