Cristiano nas ruínas de Bento Rodrigues:

Cristiano nas ruínas de Bento Rodrigues: "Primeiro, foi a luta para sobreviver. Depois, localizar desaparecidos, saber onde íamos morar e como proteger nossas propriedades de ladrões"

crédito: Jair Amaral/EM/D.A Press

Mariana – Tragédias envolvendo forças indomáveis da natureza, provocadas por erros humanos ou potencializadas por eles, têm castigado repetidas vezes o Brasil, expulsando pessoas de casa e causando mortes e destruição, por vezes seguida de saques. A mais recente delas ainda assola o Rio Grande do Sul, arrasado por chuvas associadas a mudanças climáticas, seguidas de enchentes de proporções nunca vistas e do colapso de barramentos. É mais um de uma lista de desastres que há quase 10 anos desafiam a capacidade de respostas de defesa civil e de reconstrução no país – uma das mais emblemáticas em Minas, quando a Barragem do Fundão se rompeu em Mariana, devastando a Bacia do Rio Doce até o mar, no Espírito Santo. E seu ainda incompleto processo de recuperação e reparação serve de alerta aos gaúchos.


Em Minas, a avalanche de lama que arrasou o que encontrava pela frente matou 19 pessoas, deixou quase mil desabrigados, 700 mil atingidos e um enorme rastro de destruição ambiental. O que as pessoas afetadas continuam enfrentando, quase uma década depois, é um exemplo preocupante para os que, no Sul, ainda lutam para sobreviver e terão um longo e doloroso caminho até se restabelecer plenamente.


A recorrência de tragédias, como a de outra barragem que se rompeu em Brumadinho, na Região Metropolitana de Belo Horizonte, apenas quatro anos depois, reforça o panorama de apreensão – e pode servir como lição, para que o quadro de penúria, espera, revolta e angústia enfrentado pelas vítimas mineiras não se repita no Rio Grande do Sul.


“Primeiro, foi a luta para sobreviver ao desastre. Depois, localizar as pessoas amadas desaparecidas. Aí, saber onde íamos morar e como proteger as nossas propriedades de ladrões. A nossa luta por reconhecimento, pela nossa memória e pela dignidade tem sido longa e desgastante”, detalha o motorista Cristiano Sales, de 41 anos, morador do distrito de Bento Rodrigues, em Mariana, que foi completamente destruído no desastre de 2015.

 


“Hoje, a área de Bento Rodrigues de origem (que foi arruinada pela barragem) está abandonada, com mato crescendo. Queremos ter o direito de utilizar o lugar para o que a comunidade decidir. Mas, para isso, tinham de tirar o rejeito da nossa propriedade e acabar com o dique que está alagando parte do lugar”, critica Cristiano.


A história dele e dos demais atingidos pela Barragem do Fundão, operada pela mineradora Samarco, de propriedade das mineradoras Vale e BHP Billiton, lembra em muitos aspectos os salvamentos, a solidariedade, a dor, a incerteza, a violência e a luta pela qual os gaúchos vêm passando.


“Estava voltando do trabalho de Mariana para Bento Rodrigues (a 21 quilômetros), no fim da tarde. Faltando um quilômetro, senti um cheiro forte de amônia, que era comum na mineração. Mas aí vi uma nuvem enorme de poeira descendo da Samarco. A estrada já estava tomada de lama e de um ponto mais alto vi aquele mar de ressaca de rejeitos estourando onde batia e tomando tudo o que tinha na frente. Quando vi as casas se desmanchando e só o teto de algumas, pensei que ninguém tinha sobrevivido”, lembra Cristiano Sales.

 
Onde MG e RS se encontram

 

 

“O que acontece no Rio Grande do Sul é muito parecido com o que aconteceu com a gente, em Bento Rodrigues, e com o que aconteceu em Brumadinho (o rompimento da Barragem da Mina Córrego do Feijão, em 2019, com 272 mortos). Embora eles digam que seja coisa da natureza, foram barragens que tinham de suportar o que elas estavam segurando. E quem as licenciou não poderia só visar ao lucro. Teria de fiscalizar, garantir que não se romperiam. É muito cômodo se esconder, dizendo que foi acidente ou culpar a natureza”, afirma a também ex-moradora de Bento Rodrigues e representante da comissão de atingidos, a assessora técnica Mônica dos Santos, de 39 anos.


O dia em que a vida parou

 

No dia em que a catástrofe de Mariana aconteceu, Mônica dos Santos, hoje com 39 anos, estava com a mãe, uma prima e uma amiga retornando para Bento Rodrigues do trabalho em Mariana, quando foi avisada por telefone sobre o rompimento. Ela foi retida na barreira policial, já que o acesso estava destruído pela onda de rejeitos. “Vimos um funcionário da Samarco que a gente conhecia e que almoçava muito no restaurante da minha tia. Minha mãe perguntou para ele sobre nossos parentes e amigos. Ele foi até um canto com ela e disse: 'Pela cena que eu vi, morreu todo mundo. Não sobreviveu ninguém'”, relata.

 


Mônica passou a noite no local e, quando o dia raiou, subiu em um ponto de onde poderia ver sua comunidade. O resultado foi aterrador. “Minha vida tinha acabado. Não conseguia ver minha casa. A igreja tinha acabado. Vi muito pedaço de telhado, carros no meio daquela lama, máquinas e até ônibus. Ali eu vi que eu não tinha mais nada. Na minha comunidade, morreram quatro amigos queridos: o Thiaguinho, a Emanuele, a Gracita (Maria Celestina) e o Totozinho (Antônio). Pessoas muito próximas. A gente se gostava muito. Todo mundo frequentava a casa de todo mundo”, recorda Mônica, quase nove anos depois, entre suspiros.

 


A busca por Justiça teve de sair do Brasil

 

O CEO (diretor-executivo) do escritório Pogust Goodhead – que representa em ação movida na Inglaterra contra a BHP Billiton mais de 700 mil atingidos pelo rompimento da Barragem do Fundão – vê uma dificuldade comum para as vítimas das tragédias seguidas ocorridas no Brasil, como as inundações no Rio Grande do Sul e o rompimento de Mariana. Para ele, o recurso aos tribunais brasileiros não tem representado reparação para essas pessoas.


Como exemplo, ele cita os quase nove anos de indefinição para milhares de vítimas desde o desastre de Mariana, em 2015. Sem resposta satisfatória no Brasil, atingidos mineiros e capixabas processam desde 2018 a BHP, multinacional anglo-australiana, na Justiça inglesa. O valor da causa é estimado em R$ 230 bilhões. A BHP é sócia da Vale no controle da Samarco, que operava o barramento que se rompeu.

 


“A situação atual no Rio Grande do Sul é um doloroso lembrete das consequências devastadoras que tragédias ambientais podem ter nas comunidades, e evidencia que, na maioria das vezes, as vítimas das catástrofes ficam desamparadas e sem a assistência adequada”, afirma Tom Goodhead.


“A ação das vítimas de Mariana na Inglaterra é uma tentativa de enfrentar essa falha sistêmica. Trabalhamos para garantir que as empresas sejam responsabilizadas nos seus países de origem e que as vítimas recebam compensação integral e justa”, afirma ele. “Como os afetados gaúchos, as vítimas de Mariana infelizmente não terão de volta as vidas perdidas, as lembranças e possivelmente o modo de se relacionar em comunidade que elas tinham anteriormente, porém as indenizações devem ao menos cobrir suas perdas financeiras”, completa o CEO do escritório internacional.

 

 

O "Novo Bento", como é chamado por moradores: estrutura modernizada, mas menos convivência e casas com as quais não se acostumam muitos dos reassentados

O "Novo Bento", como é chamado por moradores: estrutura modernizada, mas menos convivência e casas com as quais não se acostumam muitos dos reassentados

fotos: Jair Amaral/EM/D.A Press

 

De Minas para o RS, a batalha da recuperação 

 

Em meio a catástrofes que atingem milhares de pessoas, como ainda ocorre no Rio Grande do Sul e ocorreu nas piores tragédias em Minas, depois do resgate e transporte dos sobreviventes para locais seguros, começam as buscas por mortos e pelo que sobrou do desastre. Em Mariana (2015), o processo durou seis meses, e uma pessoa nunca foi encontrada. Em Brumadinho (2019), a lama ainda soterra três dos 272 mortos, e a operação de busca e resgate continua, passados cinco anos.

 


O período de buscar por desaparecidos – no Rio Grande do Sul, ainda contados na casa das dezenas – é um tempo de angústia para os parentes, que esperam ao menos o consolo de ter um corpo para um sepultamento digno. Mas, ao longo desse processo e mesmo depois dele, há toda uma discussão sobre indenizações, reconstrução de moradias e outros imóveis e recuperação do meio ambiente.


Na ruptura de Mariana, já são quase nove anos sem que isso tenha ocorrido, sendo que muitos atingidos buscam indenizações até no Reino Unido, uma vez que a Samarco, operadora da barragem rompida, é propriedade de uma sociedade da anglo-australiana BHP Billiton e da brasileira Vale.


Moradias definitivas e indenizações ainda não foram totalmente resolvidas em Mariana, onde a maioria dos atingidos perdeu suas casas. “Meu pai, meu irmão e eu fomos reconhecidos como atingidos. Eu recebi uma indenização. Minha mãe não é reconhecida até hoje. Como pode um absurdo desses se ela é de lá, tem casa lá e vivia lá?”, questiona o motorista Cristiano Sales, de 41 anos, um dos afetados pela devastação de Bento Rodrigues.


Cristiana vive há um ano no reassentamento em que a Fundação Renova, criada pelas mineradoras para fazer a reparação dos atingidos, está reconstruindo parte das comunidades devastadas. Mas o chamado “Novo Bento” ainda está longe do que o motorista, sua família e muitos dos reassentados consideram ideal.


Cristiano se queixa de vários impactos. “Há problemas de vazamentos que poderiam ser resolvidos em um dia, mas que levam de uma semana a um mês. Cheguei a ficar vários dias sem luz. As casas todas têm muros e não dá mais para encontrar as pessoas nas ruas, nas entradas das casas, nos quintais. Não há muitas sombras e por isso quase ninguém anda pelas ruas. Mudou demais para a gente que se encontrava o tempo todo”, afirma.

 


Antes de o antigo povoado ser devastado pela lama, ele vivia em uma casa de quatro cômodos, junto da qual o pai mantinha um bar e onde recebiam irmãos nos fins de semana. “Agora, a casa é menor. Meu quarto é tão pequeno que não posso comprar móveis de fábrica, só planejados. Não tem bar, nem os espaços que a gente tinha de quintal.”


Falhas do saneamento até a saúde e a educação

 

As dificuldades dos atingidos pelo rompimento da barragem de Mariana não se resumem a moradia e indenizações. De acordo com a assessoria técnica Cáritas, da Confederação Nacional dos Bispos do Brasil (CNBB), que auxilia os afetados pelo desastre, há dificuldade sobretudo para as comunidades rurais de acesso ao abastecimento e tratamento de água, à saúde e à educação, sem contar telefonia e internet.


“Destacam-se a falta de manejo de rejeitos, inexistência de ações diante da retomada produtiva e o perigo iminente diante da péssima condição das estradas”, afirma a entidade. A Cáritas informa ter percebido também empobrecimento e perda da soberania alimentar por parte dessas famílias. “Antes do rompimento, tinham uma relação forte com a terra e com a água. Hoje, as terras e água estão contaminadas pela lama de rejeitos.”


Outro fator relacionado ao estresse, expectativa por retomar a vida e outros problemas tem sido o surgimento ou agravamento de distúrbios mentais, como depressão, estresse, problemas do sono, síndrome do pânico e crises de ansiedade, segundo a Cáritas.

 


“Nos acompanhamentos realizados, é comum que uma ou mais pessoas da família apresentem relatos diretamente relacionados ao impacto na saúde mental. São quase nove anos de espera e, principalmente, mais de oito anos em que vida e sonhos foram interrompidos, o que impossibilita muitas pessoas atingidas de traçarem projetos futuros, porque estão presas em uma situação que nitidamente as adoece.”


Balanço das reparações

 

Segundo a Fundação Renova, criada em 2016 para lidar com a reparação pelo rompimento da barragem da Samarco, até 31 de março de 2024 foram destinados R$ 35,8 bilhões a ações de reparação e compensação, dos quais R$ 14,18 bilhões para o pagamento de indenizações e R$ 2,78 bilhões em auxílios emergenciais, em 442,7 mil acordos. Em 534 casos houve entrega de imóvel ou pagamento de indenização a atingidos, e outros 178 têm solução definida, segundo a entidade.


Um total de 179 famílias tem atendimento de moradias temporárias, segundo a Renova. Em Novo Bento Rodrigues, dos 248 imóveis previstos, 115 foram entregues; 192 construções estão com obras finalizadas, incluindo escola, estações de tratamento de água e esgoto e posto de serviços.

 


Em Paracatu de Baixo, diz a fundação, dos 94 imóveis previstos, 50 foram entregues; 75 construções estão com obras finalizadas, incluindo escolas de ensino fundamental e infantil, posto de saúde e posto de serviços.


Oferta bilionária em meio à espera

Enquanto os atingidos de Mariana esperam resposta da Justiça internacional em ação que deve começar a ser julgada em Londres em 7 outubro, a multinacional BHP Billiton fez uma oferta para fusão com outra gigante do setor em valores que cobririam 98,5% das indenizações cobradas por vítimas do desastre ocorrido em Minas. A BHP ofereceu em ações o equivalente a R$ 226,3 bilhões (US$ 44,12 bilhões) em proposta de megafusão com a Anglo American, o que daria origem à maior mineradora do planeta. Porém, a oferta, concretizada em 7 de maio, foi considerada insuficiente e recusada.