Silvana Lessa, Cozinheira gaúcha, 56 anos -  (crédito: Túlio Santos/EM/D.A Press)

Silvana Lessa, Cozinheira gaúcha, 56 anos

crédito: Túlio Santos/EM/D.A Press

“Nunca imaginei que ia passar por isso. Agora eu entendo o que é sentir dor, o que é perder, mas não é perder de coisa material.” As enchentes causadas pelas fortes chuvas que atingiram o Rio Grande do Sul transformaram em realidade um cenário trágico que Silvana Lessa via apenas na televisão. Cozinheira e avó de cinco crianças, a gaúcha teve a casa completamente atingida pela água e precisou sair de Eldorado do Sul, município na Região Metropolitana de Porto Alegre, onde morou por 48 anos. Depois de dias em abrigos, Silvana conseguiu ajuda para vir para Minas, acompanhada de um dos filhos e os cinco netos, todos que moravam com ela.

 

A gaúcha, de 56 anos, conta que teve uma pequena prévia do que estava por vir em novembro do ano passado, quando a água de uma enchente invadiu a cozinha de sua casa. Porém, diz que nunca imaginou que algo aconteceria nas proporções como na tragédia deste ano, principalmente porque, segundo ela, não houve aviso ou preparo por parte da Prefeitura de Eldorado do Sul. “O prefeito poderia ter alertado, pelo menos para tirar o pessoal”, desabafa. O município com quase 40 mil habitantes foi um dos mais atingidos pela catástrofe climática.


O início de tudo

Com lágrimas nos olhos, Silvana recapitula tudo o que aconteceu antes de ela chegar em Sete Lagoas, município da Região Central mineira, onde está há duas semanas. A gaúcha conta que Eldorado do Sul registrava pancadas de chuvas desde meados de março, mas as tempestades não eram constantes. Foi quando em uma manhã, cuja data exata é imprecisa, ela acordou e, por volta de 7h, viu o volume de água acumulando na esquina da casa onde morava com o filho caçula, Fabrício (17 anos), e os cinco netos: Marco Antônio (14), João (12), Bruno Leonardo (10), Arthur (6) e Ana Júlia (5).

 

Mais tarde, naquela manhã, a água entrou na residência e, em questão de segundos, chegou na altura dos joelhos da mulher. “Falei para meu guri ‘larga tudo. Seja o que o Senhor quiser’. Eu só consegui pegar algumas roupas para eles e uma bolsa que eu guardo os documentos e identidades. Também pedi ao meu guri para pegar umas mantas”, conta. Além disso, Silvana pegou as caixas de remédios de um dos netos, que é autista. Depois de reunir o pouco que conseguiu, saiu de casa pela última vez.

Com as crianças e o filho, a gaúcha foi para a casa de uma amiga localizada em um bairro mais alto da cidade. Porém, no mesmo dia, o nível da água também subiu naquela região. Desesperada, decidiu ir para um estabelecimento comercial que estava abrigando pessoas. Silvana precisou ir a pé para o refúgio. No caminho, o nível da água chegava até a cintura e a gaúcha precisou colocar o neto autista nos ombros e pedir para os outros se segurarem. “O Arthur [o neto com autismo] começou a gritar, esse aqui [apontando para o Leo] começou a chorar. Aí, achamos uma caixa d’água e colocamos as crianças dentro e começamos a empurrar”, conta afobada. 

 

DESESPERO

“Falei para meu guri ‘larga tudo. Seja o que o Senhor quiser’”

 


SEM NOTÍCIAS

“Minha filha falou que chegou a colocar no Facebook que eu estava desaparecida porque não tinha contato. Eu estava apavorada porque eu não sabia nada das minhas filhas e elas não sabiam nada de mim”

 

FOME

“Aquela água nós tivemos que fazer milagre para dar para as crianças e para as pessoas idosas. Fiquei com a minha boca toda cortada”


ALENTO

“Perdi duas amigas na enchente, mas no abrigo Deus me deu várias. A gente se tornou uma família”


ESPERANÇA

“Agora eu estou aqui na luta, mas sei que vou vencer”


Silvana Lessa, Cozinheira gaúcha, 56 anos

 

Refúgio e medo

Naquele dia, Silvana chegou no comércio, onde passou uma semana. Nos primeiros dois dias, ficou sem água e sem alimento. Ela conta que os abrigados ouviam os helicópteros passando e colocavam uma plaquinha pedindo ajuda, mas foi só depois do segundo dia que conseguiram alguns fardos de água. “Aquela água nós tivemos que fazer milagre para dar para as crianças e para as pessoas idosas. Fiquei com a minha boca toda cortada”, relata a gaúcha. Depois, os alimentos também chegaram, mas ela conta que foi desesperador ver as crianças com fome. A eletricidade foi mais um ponto para o desespero. A energia durou nos primeiros dias graças ao gerador da empresa, mas a maioria do tempo no refúgio foi sem contato com o mundo exterior e na penumbra.

 

“Minha filha falou que chegou a colocar no Facebook que eu estava desaparecida porque não tinha contato. Eu estava apavorada porque eu não sabia nada das minhas filhas e elas não sabiam nada de mim.” Duas das quatro filhas de Silvana, Thaiana e Paula — a mãe dos cinco netos — também moram em Eldorado do Sul e perderam tudo.

 

Aproximadamente uma semana depois, o resgate chegou. Silvana relata que médicos, bombeiros, policiais e outros profissionais vieram de helicóptero e atenderam os abrigados, que seriam deslocados para um abrigo em Porto Alegre. Foi narrando esse momento da trajetória, descrita por ela como “a parte triste”, que a gaúcha não conseguiu segurar as lágrimas.

 

 

Ela conta que, em determinado momento do resgate, um policial, que disse ser do Rio de Janeiro, começou a apressar todo mundo para sair dali. No entanto, Silvana conta que estava separada de seu filho, que estava ajudando outras pessoas, e por isso falou para o homem que não poderia sair.

 

“Ele estava com uma arma bem grande, não sei como chama aquilo, e olhou pra mim e disse que eu ia sair por bem ou por mal”, conta com a voz embargada. Susana continua reproduzindo o que o policial teria dito: “Você acha que a gente veio de longe para brincar? A gente veio aqui, mas a gente não estava afim, a gente veio obrigado”.

 

Ela conta que outro homem, usando a mesma farda camuflada cinza, interveio e acalmou o policial. “Eu fiquei pensando ‘eu não morri afogada e vou morrer agora’. Eu sempre ensinei meus filhos que quando houvesse um perigo, era para ir na polícia, que era seguro. Mas agora eu vou ter que ensinar meus netos a fugir da polícia? Que ela não mostra segurança, que ela mostra medo”, conta Silvana aos prantos e em meio a interrupções da neta caçula a confortando e pedindo para a avó não chorar. A gaúcha enfatiza inúmeras vezes que gostaria de esquecer essa parte da jornada.


Abrigo e amigos

No dia do resgate, após se reencontrar com o filho, a gaúcha e sua família foram levados ao abrigo na Escola Estadual Santos Dumont, em Porto Alegre. Ela conta que foram levados numa barca e encontraram com o surfista Pedro Scooby, que estava em Eldorado do Sul auxiliando no resgate de vítimas da enchente. Ela lembra que ele ajudou a acalmar os netos dela.

 

A gaúcha diz que o abrigo, onde passou quase dois meses, foi a melhor coisa que poderia ter acontecido. “Eu perdi duas amigas na enchente, mas no abrigo Deus me deu várias. A gente se tornou uma família”, diz. Silvana destaca a atenção e zelo que as pessoas voluntárias tinham pelos desabrigados, especialmente com o neto Arthur, que por ser autista, tem restrições alimentares.


Vinda para Minas

Silvana conseguiu vir para a casa da filha Roberta, em Sete Lagoas, onde está há duas semanas com as crianças e o filho, porque conseguiu ajuda da igreja que a filha frequenta. Um membro da instituição se solidarizou com a situação da família e custeou as passagens de ônibus do Sul para o município mineiro. A gaúcha conta que foram dois dias de viagem e que para achar o transporte foi díficil.

 

Silvana afirma que tem planos para alugar uma casa e ficar em Minas, mas o processo é longo e difícil. Ela diz que ainda não conseguiu retirar o dinheiro do auxílio SOS Rio Grande do Sul, destinado aos afetados, apesar de as filhas e os irmãos terem conseguido. De acordo com ela, a situação está em análise e tem demorado porque ela está fora do estado. “Eu liguei para lá e disseram que era para eu ir na prefeitura ou na assistência social em Eldorado do Sul”, diz.

 

Apesar de tudo que passou, Silvana tem fé que dias melhores virão. “Agora eu estou aqui na luta, mas sei que vou vencer”, diz confiante. 

 

Tragédia no RS

A Defesa Civil confirmou, nesta segunda-feira (10), mais duas mortes relacionadas às enchentes que devastaram o Rio Grande do Sul, elevando o número de mortos para 175 no total. Ainda há 38 desaparecidos, de acordo com o governo do estado. Após 42 dias desde o início da catástrofe climática, o estado tem 478 municípios afetados e mais de 423,4 mil pessoas desalojadas. O número de pessoas afetadas pelas enchentes de alguma forma ultrapassa 2,3 milhões, cerca de 20% da população do estado.

 

*Estagiária sob supervisão da editora Vera Schmitz