O prisioneiro 3.162 da Penitenciária José Maria Alckmin, de Ribeirão das Neves, na Grande BH, tinha 29 anos quando os jornais estamparam o seu nome pela segunda vez. Havia três anos que estava atrás das grades, pagando uma pena total de 24 invernos, resultado do insucesso no primeiro assalto à mão armada da história do país, em Lagoa da Prata, do qual havia sido o mentor intelectual.
Mas, naquele domingo, Francisco Antônio de Alencar não apareceu nas páginas policiais. O mineiro de Manhuaçu havia acabado de receber, no cárcere, o primeiro prêmio do Concurso de Contos da Prefeitura de Belo Horizonte, patrocinado pelo Estado de Minas. A narrativa chamada “O regresso” contava a história de um detento que volta para casa sem saber mais quem ele era – o destaque da seção de cultura do EM daquele 12 de agosto de 1951.
A mais nova sensação da literatura mineira veria a obra, em partes, se metamorfosear em realidade. Nos anos seguintes, Francisco Antônio se casaria e publicaria um livro, ambos atrás das grades, que ele deixaria temporariamente em uma fuga e, depois, permanentemente, em indulto concedido por Tancredo Neves, então ministro da Justiça.
Tudo isso foi acompanhado de perto pelo Estado de Minas e pela revista O Cruzeiro, dos Diários dos Associados, mas também pela imprensa nacional. O Arquivo EM resgata, na edição de hoje, a última da série de dez reportagens, essas páginas quase esquecidas da memória jornalística brasileira. As pesquisas tiveram como base a Gerência de Documentação (Gedoc) do EM e a hemeroteca digital da Biblioteca Nacional.
Conto premiado em 1951
“Chefe de ‘Gang’ laureado em concurso literário”, era o título do Segundo Caderno daquela edição dominical do EM. O jornal trazia um perfil do chefe da quadrilha de cinco indivíduos que assaltou o Banco Minas Gerais em Lagoa da Prata, no Centro-Oeste Mineiro, no ano de 1948. O crime resultou na morte de uma pessoa.
“Seus autores preferidos são Érico Veríssimo, Graciliano Ramos, José de Alencar, José Lins do Rêgo, Remarque e Dostoiévski. Conhece bem a Bíblia e a lê constantemente. Traduz e fala inglês, tendo conhecimentos de francês e espanhol”, descrevia a reportagem. O condenado trabalhava em um escritório dentro da penitenciária, de onde editava o jornal do presídio, chamado “Grades Abertas”.
Àquela altura, Francisco colecionava outros contos, sonetos e um livro pronto, “Romance de um condenado”. Publicado no ano seguinte, de forma independente, a obra, com traços autobiográficos, tem atualmente um exemplar disponível no acervo da Biblioteca Pública Luiz de Bessa, em Belo Horizonte.
“De uma coisa ficamos certos: Francisco Antônio de Alencar, pela sua inteligência e pela sua cultura, se destaca entre seus 600 companheiros. É, portanto, duplamente exilado: desterrado da sociedade e estranho ao ambiente em que vive. E, porque seus pensamentos o levam mais longe que os outros, seu anseio de liberdade é maior. Por isso, psicologicamente sua pena é dobrada: sofre na proporção do seu desejo de libertar-se”, refletia, sobre ele, o EM daquele dia, com uma reprodução na íntegra do conto laureado.
O assalto em Lagoa da Prata
Contraditoriamente, os primeiros escritos de Francisco Antônio a terem repercussão nacional foram repletos de violência. Num pedaço de papel, o sargento reformado do Exército esquematizou, com 25 anos, o assalto cinematográfico à agência bancária do interior de Minas. Mas, naquele 6 de abril de 1948, o plano deu errado. A polícia mobilizou mais de uma centena de homens para uma perseguição de 11 dias por Minas Gerais, culminando na prisão de todos os membros da gangue.
“Intensa caça aos bandidos em Lagoa da Prata”, informava, no dia seguinte ao assalto, o EM. O jornal chegou a fretar um avião para acompanhar o caso de perto. Armados de revólveres, dinamites e uma metralhadora, a quadrilha havia entrado na agência bancária no fim do expediente, rendendo os funcionários e esvaziando o cofre.
Do lado de fora, uma testemunha percebeu o assalto e correu para avisar o prefeito da cidade, que foi ao local tentar impedir a fuga. Acossado, o bando atirou. Caíram baleados o prefeito e dois comerciantes. Um deles, o sírio Farid Audan, foi alvejado no rosto e morreu.
O grupo de Francisco conseguiu despistar o cerco, em mais de 100 quilômetros a pé. Em Pará de Minas, um fiscal de trânsito e um soldado, encarregados das buscas, tentavam consertar o carro enguiçado. Foi quando avistaram Francisco e mais dois comparsas.
O chefe da gangue quis suborná-los. Diante da negativa, o mentor do crime sacou o revólver e atirou. A bala pegou de raspão o fiscal de trânsito José Ribeiro. A primeira história de Francisco terminou com ele e todos os comparsas atrás das grades, e o dinheiro roubado devolvido.
Casamento atrás das grades
A datilógrafa Raimunda Avelino vivia em Belo Horizonte quando se deparou com uma reportagem e o conto “O Regresso” na revista O Cruzeiro. Comovida pela história, a jovem de 25 anos escreveu para a Penitenciária Agrícola de Neves e pediu para visitar Francisco.
“Quando, dias mais tarde, as grades do presídio se abriram, ante o par que até então não se conhecia, foi como se tivessem sido abertas pelo próprio amor”. Dessa vez, era o jornal carioca “A Noite”, em 3 de março de 1952, que noticiava que ambos haviam se casado dentro da prisão.
O matrimônio foi sacramentado em Neves pelo juiz Oscar Augusto Ribeiro e pelo padre Pedro Pinto. “Como todas as noivas, eu me considero a mulher mais feliz do mundo”, declarava Raimunda, ao receber o primeiro abraço do esposo.
Os indícios de que a veia artística de Francisco o levava à reabilitação também comoviam fora das grades. Intelectuais “mineiros e cariocas”, completava o jornal, haviam enviado ao presidente da República, Getúlio Vargas, um abaixo assinado, com mais de mil signatários. Queriam um indulto para reduzir a pena e livrar o recém-casado de dentro da cadeia.
Mas nem tudo eram flores. Os demônios ainda rondavam o condenado, ou melhor, assombravam Raimunda, que agora vivia na penitenciária junto do marido. Acessos frequentes de ciúmes tinham se transformado em agressões, com Francisco tendo chegado, segundo o EM, “ao extremo de feri-la a ponta de faca”.
Em 18 de novembro de 1952, o jornal noticiava que a mulher, grávida da primeira filha do casal, se refugiara em casa de amigos no Centro de BH para se livrar dos maus-tratos. Francisco foi atrás para tentar buscá-la à força. Uma confusão foi contida, mas a jovem concordou em voltar.
A fuga da prisão
Com segurança afrouxada no presídio, era difícil de imaginar que a tentação de transgredir as regras não instigasse Francisco Antônio. A violação da pena veio facilmente. No ano seguinte, 1953, o detento-escritor fugiu da cadeia. Em 11 de março, o EM divulgava que o chefe da quadrilha do assalto em Lagoa da Prata estava foragido.
“Sábado pela manhã, Alencar solicitou permissão para vir a Belo Horizonte visitar a sua família. Obtida a licença, veio acompanhado de sua esposa e um guarda. Aqui chegando, habilmente conseguiu ludibriar o seu guarda e escapar.”
Francisco levara consigo 30 mil cruzeiros, soma proveniente de aulas dentro da cadeia e de produções literárias. A facilitadora da fuga seria uma escritora rica, apaixonada pelo detento, “que mantinha encontros clandestinos” com ele. O nome da amante misteriosa ficava em segredo.
O escritor ficou um mês foragido. Em 16 de abril de 1953, o mineiro se apresentou à polícia de Ponta Grossa, no Paraná. Alcançado pela reportagem, descreveu as semanas de fuga como uma incursão pela América do Sul. Saíra de Belo Horizonte passando por Rio, São Paulo e Mato Grosso, de onde apanhou um trem para a Bolívia.
“Visitei Serro Corá, onde morreu Francisco Solano López, que por sinal é considerado um grande herói do Paraguai. Em seguida, tomei um barco e desci o Rio Paraguai indo a Assunção. Rumei depois para a Argentina e nas cataratas do Iguaçu”.
Mas, nas palavras do prisioneiro, a fuga tinha como objetivo pressionar as autoridades para uma redução na pena que o tiraria da cadeia. Afinal, o pedido de indulto já somava dois anos. “Foi um protesto meu a favor da minha liberdade, pois sempre tive a intenção de voltar.”
No dia seguinte, o notório fugitivo chegava à delegacia, em Belo Horizonte, recebido por Raimunda e pela filha, Thelma Heloisa. “Logo que viu a garotinha, o detento-escritor tomou-a nos braços, beijando-a repetidas vezes. ‘Este é um dos motivos que me obrigaram a voltar”, disse ao EM.
A liberdade vira realidade
O extenso currículo de Francisco Antônio nas páginas do Estado de Minas cessou ali. O indulto, porém, finalmente saiu do papel. Em 2 de fevereiro de 1954, o jornal paulista “Diário da Noite” trazia uma pequena nota indicando o fim das agruras do condenado de Neves. A pena seria reduzida para oito anos.
“O secretário particular do Ministro da Justiça telegrafou ao detento-escritor Francisco Antônio de Alencar, informando-lhe de que o ministro Tancredo Neves deu parecer favorável ao seu pedido de indulto. O processo foi encaminhado ao Presidente da República, que deverá despachá-lo dentro de mais alguns dias.”
Em contato com a Secretaria de Estado de Justiça e Segurança Pública de Minas Gerais (Sejusp), o Arquivo EM apurou que o mineiro recebeu a liberdade total em maio de 1956, dois anos depois da notícia do “Diário da Noite”. Longe dos holofotes e das grades, o escritor submergiu. Por mais de uma década.
Até que, em uma manhã de 1970, um homem grisalho, “de olhos quase sofridos”, entrou na redação do Cruzeiro, em Belo Horizonte. “Sou professor e me chamo Alencar. Talvez se lembrem, tive uma história em Neves”. Vinha acompanhado de três filhos, ainda em idade escolar. De Raimunda tinha se divorciado.
“Sim, Alencar triunfara sobre o infortúnio, abrira seu caminho para a reabilitação, mas ainda hoje sente aquela mesma solidão do cárcere”, dizia a reportagem de José Franco, publicada na edição daquele ano de 7 de abril – exatamente o mesmo dia da primeira reportagem sobre o assalto em Lagoa da Prata.
Vivia em Barbacena, no Campo das Vertentes, em uma casa pequena e pobre havia alguns anos. Ao sair da cadeia, se formou no ensino médio, depois em Pedagogia e Filosofia, matéria que lecionou como convidado na Escola Preparatória de Cadetes do Ar (Epcar), em Barbacena.
“Tudo isso Alencar conquistou, a duras penas, só que jamais deixou de ser um prisioneiro de si mesmo”, dizia o texto, no qual o repórter descrevia a dura tarefa de viver entre o passado no cárcere, o trabalho diário e o cuidado aos filhos. “Vive como um estranho no meio onde leciona, onde só o conhecem como o professor, e é um anônimo no distante bairro onde reside.”
A reportagem terminava descrevendo o sonho do agora professor: se tornar um pedagogo para “dar às crianças desamparadas o afeto, a educação e o amor. Aquilo que não encontrou na infância, quando mais precisava”.
Francisco Antônio de Alencar morreu em Barbacena, em 4 de abril de 1996, aos 74 anos, sem que o Arquivo EM tenha encontrado obituários ou notícias do fato na imprensa – somente o atestado de óbito.