Vista da antiga fazenda araújo, onde se pretende erguer o empreendimento: área é

Vista da antiga fazenda araújo, onde se pretende erguer o empreendimento: área é "receptáculo das enchentes do velhas" e não pode ser ocupada, alerta especialista

crédito: JAIR AMARAL/EM/D.A pRESS

Moradores de Santa Luzia temem que tragédia como a que assolou o Rio Grande do Sul ocorra na cidade da Região Central de Minas. O temor se deve a um projeto para a implantação de um empreendimento com mais 500 lotes para imóveis residenciais e comerciais. De acordo com os moradores, que na quarta-feira fizeram protesto em frente ao local destinado ao loteamento, um projeto dessa dimensão comprometeria o escoamento da água do Rio das Velhas, além de alterar a paisagem do Centro Histórico do município. De acordo com a prefeitura, o projeto segue os trâmites legais.

 

Moradora de Santa Luzia e testemunha de diversas enchentes na região nos seus 77 anos de vida, Sandra Grabrich estava entre os manifestantes contra a construtora Emccamp Residencial, responsável pelo projeto, que levavam uma faixa com os dizeres: “A comunidade é a melhor guardiã do seu patrimônio histórico”. “Quando o rio transborda, ele tem dois caminhos para seguir: um na parte baixa da cidade e o outro para o local onde se pretende erguer o empreendimento. Caso isso se concretize, as águas, quando vierem, serão canalizadas quase que totalmente para a parte baixa”, afirma.

 

E é aí que se concentraria o principal risco. Com o nome Cidade Jardim, o empreendimento da Emccamp prevê a implantação de 548 lotes de uso residencial e comercial, em uma área de 49 hectares, onde está a antiga Fazenda Araújo. Na parte alta do rio, esse terreno funciona, junto com o que fica às margens do baixo curso do manancial, como uma bacia e, principalmente, ponto de absorção das águas.

 

“Aquela localidade eu conheço bem, desde minha época de criança. Na área da fazenda não pode ser construído absolutamente nada. Primeiro, é uma área que alaga, além de ser um receptáculo das enchentes das águas do Velhas”, explica o professor de direito ambiental Mário Werneck, de 65, ex-secretário de Meio Ambiente de Belo Horizonte.

Os moradores expuseram que a solução proposta pela Emccamp Residencial foi a criação de um dique, uma contenção de concreto, que impossibilitaria a entrada da água nos loteamentos, mas tal solução foi negada pela empresa. Para Werneck, entretanto, caso o dique seja a solução, isso significaria um risco. “Construir ali vai piorar a situação das pessoas na parte baixa da cidade. Vai nivelar com o asfalto e causar um impacto hídrico absurdo na época de chuva, porque a parte baixa não tem condições de suportar as enchentes como as que já existiram nesta mesma localidade nos últimos 20 anos”, explica o professor.

 

Parte da maior tragédia climática da história do Rio Grande do Sul, que atingiu 446 municípios gaúchos e provocou mais de 170 mortes no estado, foi reflexo da construção indevida em áreas de alagamento, além da falta de manutenção dos diques de contenção, que não suportaram o volume de água. “Então, eles vão mudar a situação hídrica do rio com um paredão e vai ficar por isso mesmo? Isso é um absurdo. Para que colocar um paredão? Se não causar (enchentes) de um lado, causa do outro”, afirma o professor.

 

Enchentes que o aposentado João Bosco Gabrich, que mora há décadas na cidade, não quer vivenciar mais em Santa Luzia. “Vai acontecer uma tragédia aqui. Tivemos uma série de avisos, como o Rio Grande do Sul, que não agiu preventivamente e ocasionou mortes. Já passei por várias enchentes em que tive que sair de casa apenas com a roupa do corpo”, diz. Trauma vivido pelo também morador da região Valdoveu Vitor, que compartilhou fotos sobre as recentes enchentes que atingiram Santa Luzia nos anos de 2020, 2021 e 2022, nas quais sua residência ficou submersa e seus bens se perderam.

 

 

Manifestantes protestaram contra o loteamento, na quarta-feira

Manifestantes protestaram contra o loteamento, na quarta-feira

JAIR AMARAL/EM/D.A pRESS

 

PATRIMÔNIO AMEAÇADO

Não é só a questão ambiental que está em jogo, aponta o presidente da Associação Cultural Comunitária de Santa Luzia, Adalberto Andrade. Ele prevê impactos negativos também na paisagem do Centro Histórico de Santa Luzia, tombado pelo Instituto Estadual do Patrimônio Histórico e Artístico de Minas (Iepha), em 28 de dezembro de 1998. “Hoje se tem uma fisionomia urbana do Centro Histórico que ainda é do século 18. E com o novo empreendimento, essa fisionomia da paisagem se altera, com novos elementos que vão prejudicar a história da cidade”, explica. O presidente da associação acredita que a implantação dos loteamentos abrirá um caminho para a construção de novas edificações de grande porte, altura e volumetria, que vão impactar a relação do visual do Rio das Velhas com o Centro Histórico.

 

Por sua vez, o coordenador do Movimento Negro Unificado de Minas Gerais, José Carlos de Souza, destaca a importância cultural da área para os povos negros. “É uma história muito rica no que diz respeito à população negra. Temos um sítio arqueológico importante aqui dentro dessa fazenda e esse empreendimento, com certeza, traria danos à nossa cultura. Por isso estamos nessa luta de defesa das palmeiras e da Fazenda Vicente Araújo”, disse. As palmeiras citadas por ele, da espécie macaúba, são consideradas patrimônio cultural da cidade.

 

Integrante do Conselho Municipal do Patrimônio Cultural de Santa Luzia, Glaucon Durães relembra que o terreno da fazenda é alvo de disputa desde a década passada. “A primeira proposta (empresarial) foi a construção de prédios de vários andares, que tampariam o Centro Histórico. Lutamos para que fosse feito um novo projeto”, conta.

 

Como ficou proibida a construção de prédios, por ser uma área de relevante interesse ambiental, cultural e histórico, o Ministério Público de Minas Gerais (MPMG) disse que a instalação do loteamento necessitava de uma autorização prévia por, parte dos órgãos incumbidos da tutela do patrimônio cultural – o Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (Iphan) e o Iepha.

 

A Emccamp apresentou uma nova proposta, o projeto Cidade Jardim, com residências de alturas limitadas em uma área de 360m², com o objetivo de não afetar a visão do entorno histórico do empreendimento. Eles afirmam que a mudança foi atendendo ao pedido de Adalberto Andrade. Depois de apresentar os estudos técnicos exigidos tanto pelos órgãos de licenciamento, quanto pelas normas técnicas de engenharia, a construtora recebeu a licença prévia para projeto, confirmou a Prefeitura de Santa Luzia.


LICENÇA PRÉVIA

De acordo com o Executivo municipal, o projeto segue todos os trâmites legais e administrativos para implantação. “Possui licença prévia expedida pela Secretaria de Meio Ambiente, apresentou estudo de impacto de vizinhança junto à Comissão de análise coordenada pela Secretaria de Desenvolvimento Urbano (sendo aprovado pela equipe técnica que estipulou medidas mitigadoras e compensatórias urbanísticas e ambientais) e, atualmente, está em fase de análise no Conselho Municipal do Patrimônio Cultural de Santa Luzia (Compac)”, diz nota da prefeitura.

 

Para a elaboração dos estudos e apresentação das soluções, afirma a construtora, foram considerados diversos parâmetros hidrológicos, entre eles as cheias de janeiro de 1997 e 2020, registradas pelas estações fluviométricas, como as maiores nos últimos 112 anos. A empresa informa que a solução de engenharia encontrada, com o alteamento parcial do terreno, acima da cota de inundação, vai intervir em “menos de 0,1% da área de drenagem da Bacia do Rio das Velhas”, não tendo a capacidade de causar “alteração das vazões de cheias naquele curso de água”. Assim, o estudo da empresa aponta que o alteamento não afetará a dinâmica de vazão do Rio das Velhas.


MP PEDE REVISÃO

O projeto, no entanto, ainda não convenceu todas as instâncias públicas. O Ministério Público de Minas Gerais (MPMG) recomendou, neste mês, que a Prefeitura de Santa Luzia efetuasse a revisão ou anulação da licença prévia concedida em favor do empreendimento. Entretanto, durante reunião na quinta-feira, os moradores afirmaram que o secretário municipal de Cultura de Santa Luzia, Cassiano Boldori, não acatará a recomendação do órgão.

 

Antes, em 22 de abril, o Poder Executivo de Santa Luzia protocolou, na Câmara Municipal, o Projeto de Lei (PL) Nº 038, que estabelece normas e condicionantes para a ocupação de terrenos em áreas suscetíveis a inundação na cidade. “O PL foi apresentado ao Legislativo sem discussão com a população. Então, a gente está falando de uma legislação que regulamenta, de certo modo, o uso e ocupação do solo. E que, por diretrizes constitucionais e também estabelecidas pelo estatuto da cidade, necessariamente, deveria passar por uma discussão prévia com a população”, afirma o advogado Alexandre Gonzaga.

 

Para o jurista, o movimento de Santa Luzia na direção da ocupação de terrenos que seriam um forte aliado contra as inundações no município vai em contramão das ações de Belo Horizonte, que vem construindo grandes bacias de contenção para receber as águas provenientes das chuvas. “Isso não só atinge regiões prósperas do ponto de vista econômico, como é o caso da Rua do Comércio, cujas imediações, inclusive, possuem proteção em razão de tombamento cultural patrimonial, como também outras áreas socioeconômicas mais frágeis, como a região conhecida como Pantanal, mais baixa, que certamente sofrerá um impacto maior”, destaca.

 

 

consideradas  patrimônio cultural da cidade, palmeiras  também estariam ameaçadas

consideradas patrimônio cultural da cidade, palmeiras também estariam ameaçadas

AIR AMARAL/EM/D.A pRESS


PALMEIRAS

O futuro é incerto também para as palmeiras macaúbas da Fazenda São Vicente, que são tombadas como patrimônio cultural natural de Santa Luzia. Segundo Glaucon tema será discutido na quinta-feira, 27 de junho, às 9h, em reunião no Conselho Municipal do Patrimônio Cultural, no Teatro Municipal de Santa Luzia. Mesmo com o tombamento, explica Glaucon, o empreendimento ainda pode ser construído. “O problema é que nós ainda não temos as diretrizes da proteção (…). Então, esse condomínio Cidade Jardim ainda ameaça a Fazenda Vicente Araújo”, diz.

 

Em defesa, a Emccamp desconhece sobre a instauração de processo de tombamento das Macaúbas que atenda os parâmetros legais mínimos determinados pela legislação municipal e federal e exige que o processo seja iniciado após estudos fundamentados. A empresa informou que poderá realocar as palmeiras, se este for o interesse da população local.

 

"Respeitamos e nos solidarizamos com a preocupação da sociedade, mas insistimos que agimos com responsabilidade para oferecer soluções técnicas robustas, que seguem todos os parâmetros de engenharia, além, obviamente, das normas legais aplicáveis", terminam.