Uma morte a cada seis dias, um acidente grave a cada 13 horas e uma ocorrência de trânsito a cada 37 minutos. Esse é o tamanho do risco de pilotar uma motocicleta em Belo Horizonte, mostra o Núcleo de Dados do Estado de Minas em sua última publicação da série de reportagens “Risco sobre Rodas”. Durante a última semana, o EM trouxe números que colocam o Anel Rodoviário e as avenidas Cristiano Machado, do Contorno, Amazonas, Antônio Carlos, nessa ordem, como as vias mais perigosas da cidade, ao considerar a soma de acidentes de cada uma delas.
A série, no entanto, não poderia ser finalizada sem analisar o drama dos motociclistas de BH. A realidade soma a imprudência dos próprios condutores sobre duas rodas à dos motoristas de carros de passeio e veículos de carga de maneira geral, além da infraestrutura obsoleta de alguns corredores da capital mineira. De acordo com o Observatório de Segurança Pública de Minas Gerais, BH registra 149.931 acidentes de trânsito com motos nos últimos 10 anos. O recorte considera o período entre janeiro de 2014 e maio deste ano.
Ao mesmo tempo, os números mostram que BH registra no período 86.260 acidentes com vítima, ou 23 por dia. O número de ocorrências com feridos graves chega a 6.976 na década citada, enquanto as autoridades computam 719 mortes em igual intervalo de tempo. Em suma, 52% das vidas perdidas no trânsito da cidade são de motociclistas, ainda que esses veículos comportem no máximo duas pessoas.
“Os motociclistas, muitas vezes, circulam entre os veículos, e isso aumenta a possibilidade de acidentes. A moto tem um papel socioeconômico importante para a população. A de baixa renda saiu do transporte público e foi para esse veículo, principalmente homens jovens, que trabalham com esse tipo de meio de transporte, os motoboys. O número de acidentes já vinha crescendo antes da pandemia, mas se consolidou após a crise sanitária”, diz o professor de educação e segurança no trânsito do Cefet-MG, Agmar Bento Teodoro.
Os números do Observatório da Segurança Pública de Minas Gerais indicam um caminho semelhante ao apontado pelo especialista. Em 2014, BH registrou 76.944 acidentes com motociclistas. Essa soma aumentou para 79.071 no ano passado, uma diferença de 2.127 ocorrências. Não é possível, no entanto, assegurar que esse acréscimo tem como causa a popularidade do trabalho de delivery por aplicativos, já que a base de dados não apresenta esse recorte. A tabela também não detalha a evolução da frota de veículos do tipo.
Não é preciso voltar muito no tempo para rememorar uma tragédia envolvendo motociclistas em BH. Em 14 de maio, um idoso de 62 anos morreu ao bater seu veículo no retrovisor de um carro na Avenida Mem de Sá, no Bairro Paraíso, Região Leste da cidade. Segundo o boletim de ocorrência, a motorista do carro relatou que estava parada no trânsito, quando viu uma ambulância passando pelos veículos e uma motocicleta logo atrás. Em dado momento, a vítima se desequilibrou, atingiu o veículo da mulher e caiu. O homem perdeu a vida ainda no local.
A perda do controle de uma moto também tirou a vida de um homem de 35 anos em 18 de agosto do ano passado, no Viaduto A do Complexo da Lagoinha, Região Noroeste da cidade. Ele se desequilibrou e bateu na mureta do pontilhão. O Samu se deslocou ao local, mas constatou a morte da vítima ainda na pista.
Relatos e cicatrizes
O técnico administrativo em educação do Cefet-MG Rossine Gonçalves, de 51 anos, sofreu um grave acidente de moto no Bairro São José, na Pampulha, em 2015. Em uma descida, ele precisou acionar o freio, mas foi surpreendido por um problema mecânico. "A minha motocicleta era até nova, zero quilômetro, mas não tinha freio a disco. Passou um cachorro na frente e precisei parar, mas ela capotou. Tive que fazer uma cirurgia no cotovelo", diz.
Ele sofreu outro tombo em 2019, mas por uma fatalidade. O servidor público fazia uso de uma medicação para a saúde mental, que o apagou no trânsito, em plena Avenida Tancredo Neves, Região da Pampulha. "O sinal fechou, e eu não vi nada. Bati na traseira de um carro. Fui levado ao Hospital Odilon Behrens pelo Samu, totalmente desacordado. Eu tomava um remédio para ansiedade, mas o psiquiatra nunca me disse que eu não poderia pilotar. Quebrei algumas costelas e o pé", relembra.
Rossine chegou a largar o transporte por esse meio após os dois acidentes, mas retornou recentemente em busca de mais praticidade. Ainda assim, ele reclama dos outros motociclistas. "Alguns pressionam os outros, principalmente os de aplicativo de entrega. Se você não estiver veloz à frente deles, começam a xingar, pressionar. Para andar de moto hoje é preciso muita calma e paciência", afirma.
O técnico em refrigeração Caio Lucas Souza, de 30, é outra vítima da combinação entre o trânsito intenso e o transporte por moto. No ano passado, sofreu um acidente nas proximidades do Zoológico de BH. “Eu estava descendo uma avenida que não me lembro o nome, no sentido da Orla da Lagoa da Pampulha. Estava na pista da direita, quando joguei para o corredor. Um outro carro, que estava na esquerda, me fechou e me jogou em cima de um caminhão que estava parado. Caí em cima do ombro e tive uma luxação”, diz.
Além do ferimento, Caio precisou conviver com a estupidez do motorista que o fechou. “Ele não parou. Simplesmente, arrancou e foi embora. Quem me ajudou foi o dono do caminhão, que me viu caindo”, afirma.
Ligeiro e no YouTube
O entregador autônomo Romero Raiz, 31, está entre os milhares de motociclistas que se aventuram diariamente no trânsito caótico de Belo Horizonte para ganhar a vida. Ele, que trabalha para as plataformas de entrega de comida e de transporte privado por aplicativo, registra as suas corridas por meio de uma câmera no capacete. Depois, publica o conteúdo em seu canal no YouTube, chamado Motoca Raiz BH. O endereço na web já tem cerca de 28 mil inscritos.
Em entrevista ao EM, Romero conta que faz as gravações tanto como uma forma de se proteger, caso se envolva em um acidente, quanto para aconselhar outros motociclistas. "Eu comecei a gravar os vídeos querendo ajudar pessoas desempregadas, que queriam fazer algum dinheiro com moto. Também para mostrar como é a realidade no trânsito. Tem dia que você está pilotando e leva fechada o tempo todo", diz.
Romero afirma que "graças a Deus" nunca se envolveu em um acidente grave. O mais próximo que chegou de se machucar foi quando o motorista de um carro bateu na sua moto, enquanto estava parado no cruzamento das avenidas Afonso Pena e do Contorno. Com a batida, o youtuber caiu, mas sofreu apenas ferimentos leves.
Apesar de nunca ter se acidentado gravemente, não é difícil encontrar nos registros do seu canal, e no de outros motociclistas, motoristas de carros que mudam de faixa sem dar a seta ou até mesmo sem olhar o retrovisor, entre outras atitudes imprudentes.
"Quando você está a uma certa distância, você consegue parar. Mas, se estiver um pouquinho mais acelerado, ou se a moto não estiver com freio bacana, é perigoso você bater", diz. Há mais de 10 anos pilotando diariamente, o entregador atribui boa parte dos acidentes com esse tipo de veículo às imprudências praticadas pelos mais apressados. "Tem motociclista que insiste e entra em corredores estreitos. Tem hora que não dá. Você vai fazer um serviço com pressa, bate num carro e arruma um problema", afirma.
Ele próprio não se exime de registrar as suas corridas mais imprudentes, mesmo se considerando cauteloso na maior parte do tempo. Em um vídeo publicado há dois meses, Romero mostrou as manobras que teve que fazer para percorrer cerca de 15 quilômetros em 20 minutos em meio ao trânsito do Centro de BH. "Eu não estou incentivando ninguém a andar do jeito que eu estou andando. [...] Como a gente conhece as avenidas e os esquemas, a gente vai de boa", disse na gravação.
Na guerra por espaço entre carros, ônibus, caminhões e motos, o entregador acredita que a redução de acidentes envolve melhorias nas vias da cidade, como a implantação da chamada faixa azul, que é uma pista exclusiva para motociclistas. A ideia com a estratégia é evitar acidentes nos corredores. O entregador conta ter sentido o trânsito de Belo Horizonte cada vez mais congestionado nos últimos anos. "Eu tenho certeza que a faixa azul iria eliminar boa parte dos acidentes. Lá em São Paulo tem e está funcionando muito bem", defende.