A retirada do calçamento em paralelepípedo, o chamado pé-de-moleque, na Rua do Rosário, um importante ponto do centro histórico de Ferros, revolta moradores da cidade da Região Central de Minas, terra do escritor Roberto Drummond. O local é palco de manifestações artísticas e culturais desde 1986 e abriga a Igreja de Nossa Senhora do Rosário. Segundo o Executivo municipal, bloquetes serão colocados no lugar do calçamento pé-de-moleque por questões logísticas relacionadas ao trânsito.
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Sandra Viana, moradora de Ferros, aponta que a obra é uma falta de respeito com a população. “É uma coisa que impacta a vida de todas as pessoas que moram aqui, mas ninguém foi ouvido. Simplesmente removeram nosso calçamento de pedras do início do século passado para colocar bloquetes vulgares, apagando a nossa história, nossa identidade, transformando o cenário da cidade que já foi turística em uma coisa qualquer, sem valor”, relata.
A historiadora e pesquisadora pela Universidade Federal de Ouro Preto (Ufop) Maura Britto alerta para uma possível descaracterização da cidade histórica. “A construção da capela é datada no fim do século 19. Além disso, essa área da cidade tem toda uma relevância cultural, porque os festejos em homenagem à Nossa Senhora do Rosário acontecem por lá, é uma festa popular que envolve uma devoção comunitária”, explica.
“Isso também se relaciona à preservação da cultura negra, já que essa região da cidade é ocupada por parte da população afrodescendente e é em um dos núcleos mais antigos de povoamento”, destaca a pesquisadora.
A igreja é tombada como Patrimônio Cultural do Município. Por isso, a especialista ressalta a necessidade de preservar não só a estrutura, mas também o entorno e a paisagem do local.
Maura Britto pontua ainda que o calçamento em paralelepípedo permaneceu em toda a cidade, exceto na Rua do Rosário, e que a obra foi imposta à população. “Foi uma medida completamente impositiva. Não houve nenhuma comunicação com a comunidade para que fosse apresentado um plano de execução da obra, um planejamento para retirada das pedras. Não há informação a respeito de onde estão essas pedras e para onde elas vão”, critica a historiadora, que procurou a ouvidoria do Ministério Público de Minas Gerais (MPMG) para apurar a questão.
‘Logística ruim’
Procurado pelo Estado de Minas, o prefeito de Ferros, Raimundo Menezes “Diquinho” (PSD), afirma que “não foi feita uma consulta pública porque não tinha necessidade” e que “a Câmara Municipal estava ciente de tudo”. Diquinho ainda informou que a verba para a obra foi viabilizada pelo governo federal.
“Essa rua tem uma logística muito ruim. As carretas costumam ficar atrapalhando o trânsito ‘todinho’, têm dificuldade para manobra porque essas pedras soltam muito, e temos de ficar repondo e reconstituindo, dá muito trabalho. Muitos carros estragavam, era impossível andar dentro da cidade do jeito que estava”, justifica o prefeito.
O chefe do Executivo de Ferros ressaltou o compromisso da gestão com a preservação do patrimônio histórico e afirmou que não estão previstas outras obras como essa. “A maioria dos tombamentos na cidade foi realizada na minha gestão”, defende.
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Diquinho afirma que as pedras retiradas estão armazenadas em um local seguro no próprio município, sem detalhar o lugar exato. Imagens cedidas por ele à reportagem mostram montes de paralelepípedos em uma área descampada.
Polêmica da Matriz
Esse não é o primeiro conflito envolvendo a Prefeitura de Ferros e o patrimônio histórico da cidade. Em 1962, foi reinaugurada a Igreja Matriz de Sant’Ana, após a edificação original, construída no século 18, ser demolida. Isso aconteceu porque, quando o padre José Casimiro da Silva assumiu o cargo de vigário da paróquia, em 1959, ele notou que a igreja precisava de uma ampla reforma, então, propôs um plebiscito para que a população decidisse entre a reforma ou a construção de uma nova sede mais moderna.
A artista plástica Yara Tupinambá foi convidada a pintar um mural decorativo para o altar da nova igreja, o que deu origem a uma nova rodada de debates e burburinho com repercussão internacional. Quando recebeu a encomenda do trabalho, Yara conta que refletiu bastante sobre o que poderia fazer, optando por retratar a criação do mundo.
“Fiz a história da religião católica. Começa com a criação do mundo e a separação de água e terra. Em seguida, a criação de Adão e Eva. Daí, vêm o pecado do homem e sua expulsão da natureza. Na quarta cena, temos a anunciação, quando um anjo revela a Maria que ela conceberá o filho de Deus. A imagem seguinte é Jesus carregando a cruz. As duas últimas imagens retratam Pentecostes, com a descida do Espírito Santo sobre os apóstolos de Jesus Cristo e, por fim, após sua morte, uma imagem de santos da igreja saindo de seus ombros. O fiel que conhece o Evangelho vai identificar tudo isso na imagem”, disse a artista em entrevista ao EM em 2013.
Para ela, o nu faz parte da arte há anos e não seria ofensivo. “O Vaticano tem a maior coleção de arte romana do mundo, onde há vários personagens nus. Mas o que as pessoas precisam entender é que o nu não é pornográfico. E Adão e Eva, assim como os índios, andavam nus. Mas esse caso repercutiu bastante. E depois ainda foi parar nas páginas do livro Hilda Furacão, no qual Roberto Drummond escreveu sobre as tias que entravam na igreja de costas para não ver o Adão nu”, recordou a artista.
*Estagiária sob supervisão da editora Vera Schmitz