Dolly Piercing, Drag queen -  (crédito: Larissa Kümpel e Maria Lúcia Passos/EM/D.A.Press)

Dolly Piercing, Drag queen

crédito: Larissa Kümpel e Maria Lúcia Passos/EM/D.A.Press

com Maria Lúcia Passos


Com 13 milhões de seguidores e mais de 3,8 milhões de ouvintes mensais no Spotify, Pabllo Vittar é a drag mais popular do mundo. Junto dela, outras drag queens conquistaram espaço na mídia, como Gloria Groove e Grag Queen – em maior evidência hoje, quando se celebra o Dia Internacional do Orgulho LGBTQIAPN+. Este é um momento em que a arte drag está mais valorizada do que nunca. Mas nem sempre foi assim.

 

 

Ao longo da história, esses artistas ocuparam um lugar de luta e resistência, com seus corpos renegados aos espaços públicos. Questionando os papéis de gênero e as expectativas sociais da binariedade, são figuras importantes dentro da comunidade LGBTQIAPN+ – por mais que o fato de ser drag queen não esteja diretamente ligado a identidades de gênero ou orientações sexuais específicas, podendo elas ser cisgênero, transgênero ou até mesmo não-binárias.

 

Por muito tempo, as drag queens foram colocadas apenas em boates, com shows durante a madrugada e cachês pífios, tornando viver de drag praticamente impossível.

 

Esse é um panorama resumido de quando Dolly Piercing surgiu, em 1995. A drag queen de 46 anos se “monta” há 29 anos. Também é atriz e cantora, além de ser formada em Moda pela UFMG e ex-estilista da grife Vide Bula. E um dos nomes mais famosos da cena drag em BH.

O nome, Dolly Piercing, já mostrava sua personalidade. Dolly vem de “doll”, que é boneca em inglês, mas ela não queria ser resumida a uma imagem de delicadeza. Enquanto isso, o Piercing, que se tornou uma febre nos anos 1990, representava a rebeldia. “Eu queria uma coisa equilibrada, porque Dolly vem de boneca e aquela coisa doce e eu queria alguma coisa que fosse contrária a isso. E piercing é penetrante, cortante, então é uma boneca que penetra”, explica ela, durante conversa com a reportagem do Estado de Minas.

 

Transformista e drag

Os registros de homens que se vestiam de mulheres para apresentações artísticas existem desde a Grécia Antiga, passando pela Europa medieval e a tradição japonesa. Nessas sociedades, mulheres eram restritas ou proibidas de frequentar teatros, fazendo com que os papéis femininos fossem interpretados por homens.

 

No Brasil, as chamadas transformistas já faziam apresentações pelo menos desde a década de 1920. O principal artista da época era Norberto Américo Aymonino, a Aymond, reconhecido por se tornar uma mulher elegante que imitava as principais cantoras da época.

 

Mas as transformistas, como eram chamadas, ficaram mais populares a partir da década de 1950. Nessa época, havia uma grande confusão entre os conceitos de drag queens e transexuais, além de uma repressão destas identidades durante a ditadura militar. Ao mesmo tempo, o cenário artístico passou a ganhar cada vez mais artistas, que chegaram até à TV.

 

Em 1977, Silvio Santos criou um concurso de beleza chamado “Os transformistas”, em que as drag queens, artistas transformistas trans e travestis eram admiradas por seu potencial performativo, mesmo que fossem oprimidas fora dos palcos.

 

O programa foi extremamente importante para o surgimento de Dolly Piercing. “Desde criança eu venho construindo essa Dolly. Pegava as roupas da minha mãe, me trancava no banheiro, me maquiava e era um momento lúdico. Então, teve esses embriões de Dolly mas foi no dia 28 de janeiro de 1995 que nasceu Dolly Piercing numa necessidade expressiva mesmo. Eu gostava muito de assistir um programa de TV chamado ‘Show de calouros’, do Silvio Santos, e tinha um quadro que tinha as drag queens que, na verdade, era ‘transformistas’ que falavam. Eu amava ver isso e eu já gostava também da Madonna, então ficava imaginando fazer uma performance imitando a Madonna”, relatou.

 

Outra virada significativa aconteceu no Brasil na década de 1990, com alguns nomes como Elke Maravilha, Nany People e Silvetty Montilla conquistando fama nacional. BH era um reflexo do que acontecia no cenário brasileiro e é nesse contexto que surgiu Dolly Piercing, que, em 2025, completa 30 anos de “montação”.

 


Segredos e obstáculos

Naquela época, Dolly, que hoje se identifica como travesti, era um adolescente cis que tentava esconder da família que era uma drag queen. “Eu era bastante ingênua, sem nenhum tipo de esclarecimento a respeito da sexualidade, de gênero. Não podia abrir que era drag queen para minha família, embora já fizesse teatro. Mais tarde, fazer teatro fez ser drag queen algo aceitável para minha família”, conta.

 

Os obstáculos também aconteciam fora de casa. Dolly relata que era uma luta para encontrar perucas, roupas e sapatos para montar sua personagem. Ela tinha que garimpar por brechós para construir seus figurinos.

 

Outro ponto que ela aponta é a competitividade no mercado. Para ela, o meio LGBT muitas vezes é cruel com quem busca um lugar de destaque. Mesmo assim, ela avalia que teve sorte na sua trajetória, já que, desde o início, conseguiu ganhar dinheiro com sua drag queen.

 

“Ser drag é terapêutico, é revolucionário tanto para a gente quanto para os outros. Ser drag queen também é uma possibilidade de uma militância ativa, verdadeira, leve e divertida. É cultura sendo propagada, é beleza. E eu me sinto uma heroína”, reflete.

 

Agora, o mundo drag vive um novo boom, especialmente após o surgimento do reality show “RuPaul’s drag race” e da fama de Pabllo Vittar. Para Dolly, a projeção ajuda que mais pessoas tenham liberdade de ser quem são. No entanto, a influência de drags famosas acaba fazendo com que a nova geração de drags fiquem mais engessadas. “Acho que todas as drags que eu já vi na minha época ou que me inspiraram para ser drag tiveram referências da sua vida, da sua história, que tivessem coerência com a sua existência. Então, acho que eu vejo coisas muito prontas agora. Acho que tem muitas cópias e eu acho isso problemático, porque a arte drag é uma expressão de contestação o tempo todo. Se você reproduz uma arte pronta, o que você está contestando?”, questiona.


História e espaço

Quando questionada sobre os conselhos que daria para as novas drag queens, Dolly nega ser uma referência para esta geração. “Talvez eu entrasse naquela filosofia que fala ‘aquelas que vieram primeiro temos que reverenciar’. Nunca fui referência para ninguém nem espero ser. Hoje, eu acho que as pessoas têm que ser elas, que escolham suas verdades”, aconselhou.

 

Apesar de acreditar que conquistou seu lugar na história das drags de Belo Horizonte, Dolly se queixa da falta de espaço que tem. “Acho que eu já desisti. Quer dizer, me fizeram desistir. Quando você tem muita personalidade, você é tida como chata e as pessoas não sabem escutar os posicionamentos. Então, elas começam a não te chamar para festas. Tem a questão também etária, né? Eu tenho 46 anos e já sou considerada velha, embora seja jovem. Eu quero desistir do meio, que às vezes pode ser muito ingrato”, desabafa.

 

Dolly também reflete sobre a mudança que ocorreu na cena drag belo-horizontina. Para ela, faltam espaços onde as artistas ocupem um papel principal. “Existiam casas que tinham shows de drag queen e que era esperado esse momento da noite. Hoje não existe isso. A drag queen chega com essa roupagem americanizada de um reality show. A cena começa esse declínio quando os DJs passam a ser a celebridades da noite e as drags algo chato, inconveniente”, pondera.


Descoberta e orgulho

Em meio a tantas mudanças, Dolly celebra seu entendimento enquanto travesti. Apesar de desde criança já observar alguns trejeitos femininos, ser drag fez parte do entendimento de sua identidade de gênero.
A identificação com o mundo feminino fez Dolly se sentir mais forte, mesmo em cenário ainda de muito preconceito. “É terrível ser travesti neste país, mas, na minha relação pessoal, me sinto muito realizada, eu me sinto muito bem com meu corpo, com a pessoa feminina que eu me tornei, com as roupas femininas que eu ando no dia a dia, em usar maquiagem no dia a dia. Com certeza a drag me ajudou a passar por isso sem nenhum conflito”, celebra.