Quando o Anel Rodoviário de Belo Horizonte foi construído, entre as décadas de 1950 e 1960, o objetivo era criar uma via que retirasse o trânsito de veículos pesados da área urbana da capital. Mas, poucos anos depois de as obras serem entregues, o corredor já apresentava sinais de saturação. À medida que a cidade se expandiu, o Anel deixou de contorná-la e se tornou, então, uma espécie de avenida no meio urbano, mas com características bem particulares: nela, condutores de carros, motos, ônibus, caminhões e carretas disputam espaço em alta velocidade, enquanto lidam com tráfego intenso, afunilamentos de pista e trechos sinuosos, quase sempre acompanhados de desníveis.

 

Compreender esse cenário pode ser a chave para entender por que o Anel Rodoviário se tornou uma das vias mais perigosas de Belo Horizonte. Ao longo do ano de 2023, a Polícia Militar Rodoviária (PMRv) registrou no corredor 755 acidentes de trânsito. Um número que representa a média de duas ocorrências a cada 24 horas, nos 365 dias do ano.

 

Ao longo dos seus 25 quilômetros de extensão, o Anel Rodoviário faz a ligação entre rodovias federais que cortam a capital mineira: a BR-356, que segue em direção ao Norte fluminense; a BR-040, que vai do Rio de Janeiro (RJ) a Brasília (DF); a BR-262, que atravessa o Brasil horizontalmente, de Vitória (ES) a Corumbá (MS); e a BR-381, que liga São Paulo a São Mateus (ES).

 

Sendo também uma via urbana, o Anel corta avenidas movimentadas de Belo Horizonte, como a Teresa Cristina, a Amazonas, a Pedro II, a Antônio Carlos e a Cristiano Machado. São ligações de extrema importância para deslocamentos entre diferentes regiões da cidade. Não à toa, a via recebe aproximadamente 130 mil veículos por dia.



“O sistema principal de Belo Horizonte é radial, com as vias indo em direção ao Centro. Nós temos praticamente um único grande eixo que liga a cidade de forma periférica, que é o Anel Rodoviário. E ele funciona no sistema expresso, sem semáforos. Dessa forma, acabou atraindo um tráfego muito grande de viagens que fogem do Centro”, explica o engenheiro civil e consultor de transportes Silvestre de Andrade. Para o especialista, o conflito entre o tráfego urbano e o tráfego rodoviário, associado à engenharia obsoleta do Anel, podem ajudar a explicar o altíssimo número de acidentes no trecho.

 

Obras de ampliação de faixas, no início da década de 1970: estruturas como viadutos não foram adequadas ao alargamento na pista

Arquivo EM – 5/11/1973


Saturação começou cedo


O Anel Rodoviário foi entregue à população em 1964, quando Belo Horizonte tinha cerca de 693 mil habitantes, conforme aponta o censo mais próximo da época, de quatro anos antes. No levantamento seguinte, de 1970, esse número já havia quase triplicado, ultrapassando 1,8 milhão de moradores.

 

 

A população se multiplicou rapidamente, o trânsito na cidade se tornou mais intenso e o Anel Rodoviário começou a apresentar sinais de saturação. Entre 1974 e 1975, foram feitos estudos para a duplicação da via, que contava com pistas simples. A maior parte dos trechos passou a ter, então, três faixas de tráfego, mas as obras de arte, nome dado na engenharia civil a estruturas como viadutos, túneis e pontes, não acompanharam a duplicação.

 

Como resultado, os alargamentos e afunilamentos frequentes do número de faixas ao longo do trajeto do corredor provocam gargalos que, para Silvestre de Andrade, são responsáveis por grande parte dos acidentes. “Isso gera insegurança, porque tem veículo entrando e saindo de faixa com muita frequência”, explica o especialista.

 

Pontos críticos

 

Não por acaso, três dos quatro quilômetros do Anel Rodoviário que mais registraram acidentes com vítimas no ano passado têm em comum os afunilamentos de pista (veja mapa). Esses trechos contabilizaram juntos 170 desastres com vítimas no ano passado, o que representa 22,5% da totalidade de registros.

 

Por esse critério, o Km 464, na curva do antigo Aeroporto Carlos Prates, foi o mais perigoso no período, com 45 acidentes com vítimas. Ali, no dois sentidos, as três faixas da rodovia se transformam em duas, na chegada ao viaduto sobre a Avenida Ivaí. Soma-se a esse gargalo uma curva que se estende por quase um quilômetro em desnível, condição que agrava os perigos do trecho.

 

Gargalos em acessos viram armadilhas

 

Empatados em segundo lugar, com 42 acidentes com vítimas, o Km 458 e o Km 466 continuam a lista dos trechos mais perigosos. No primeiro fica o Viaduto São Francisco, onde, além da redução de faixas, há trânsito intenso devido à confluência com a Avenida Antônio Carlos, que passa por baixo do elevado.

 

Outro trecho crítico é o trevo do Bairro Califórnia, que também enfrenta constantes congestionamentos devido ao fluxo de veículos que vão da Avenida Vereador Cícero Ildefonso em direção à BR-040. É por essa avenida, inclusive, que parte do tráfego da Via Expressa segue em direção ao Anel Rodoviário, já que não há trevos ou obras do gênero no cruzamento das duas vias.

 

“Como a Via Expressa foi construída depois do Anel Rodoviário, não há uma ligação direta entre esses corredores. O que há são cruzamentos com algumas ruas, o que diminui muito a velocidade”, pontua Silvestre Andrade. O trecho, tanto no trevo do Bairro Califórnia quanto no acesso à Via Expressa, faz parte de projeto da Prefeitura de BH, com verbas do governo federal, para obras de melhoria de acesso em vários pontos do corredor.

 

Perigos concentrados

 

Por fim, o quarto trecho mais perigoso do Anel em Belo Horizonte é o Km 470, próximo ao viaduto sobre a Avenida Teresa Cristina. Ali se concentram diversos tipos de ameaças que a via carrega. Além do afunilamento de faixas e do trânsito sobrecarregado, dois fatores contribuem com o risco: ocupações irregulares nas margens e ausência de pistas marginais.

 

“Deveria haver ali as pistas marginais, devido ao tráfego local de acesso a ruas próximas, vindo de garagens e por conta dos ônibus, que têm dificuldades de parar nos pontos. Como não tem a marginal, os motoristas têm que fazer isso na própria rodovia. Do ponto de vista técnico, há muitos problemas”, explica o especialista Silvestre Andrade.

 

Próximo à confluência com a Avenida Teresa Cristina, afunilamento do tráfego ao passar sob pontilhão é agravado por trecho em curva e pressão de vias do entorno

Túlio Santos/EM/D.A Press


Motoristas fogem da via


Os acidentes diários no Anel Rodoviário fazem com que alguns motoristas evitem, a todo custo, dirigir pela via. É o caso da engenheira civil e professora Jacqueline Ávila Ribeiro. Por alguns anos, ela fez diariamente o deslocamento de casa, no Bairro Buritis, na Região Oeste de BH, até a Escola de Design da UEMG, no Bairro São Luiz, na Região Pampulha.

 

Em vez de seguir pelo Anel Rodoviário e pela Avenida Cristiano Machado, trajeto de aproximadamente 21 quilômetros que, sem trânsito, consome cerca de 30 minutos, a professora preferia seguir uma rota alternativa pela Avenida Barão Homem de Melo e pelo Bairro Padre Eustáquio. Caminho que pode levar o dobro do tempo para ser percorrido.

 

“Eu não tenho medo dos carros, o que me traumatiza mesmo são os caminhões. A velocidade que eles andam e o fato de eles não respeitarem a pista”, explica Jacqueline, referindo-se aos motivos de evitar trafegar pelo Anel Rodoviário.


Múltiplas soluções


Em uma tentativa de diminuir os acidentes causados por veículos pesados em um dos trechos críticos do Anel Rodoviário, foi construída uma área de escape às margens da chamada – e temida – “descida do Bairro Betânia”. Apenas no primeiro ano de operação, a obra, bancada pela prefeitura da capital, evitou 22 acidentes.

 

O trecho é um entre os vários aclives e declives ao longo da via. O relevo é outro ponto de atenção que o engenheiro civil Silvestre de Andrade define como agravante para a segurança do Anel Rodoviário. “Em trecho de rampa forte, há problemas com os caminhões, principalmente com má utilização de freios, e muitas vezes o condutor perde o controle do veículo. Com o tráfego intenso, qualquer problema tem consequências graves”, destaca o especialista.

 

Armadilhas na pista

Arte


Outras intervenções

 

A área de escape, inaugurada em julho de 2022, foi a obra mais recente que o Anel Rodoviário recebeu. Em agosto de 2023, a Prefeitura de Belo Horizonte anunciou um conjunto de oito obras na via que serão custeadas com recursos do Programa de Aceleração do Crescimento (PAC), em valor total de R$ 1,5 bilhão. Na primeira fase das intervenções serão construídas alças de acesso com a BR-040, no trevo do Bairro Califórnia, e a ligação com a Via Expressa. A previsão de início dos trabalhos era abril deste ano, mas as obras ainda não começaram.

 

Outra intervenção que deve ajudar a solucionar parte dos problemas da via é o Rodoanel, que, com 70 quilômetros de extensão, deve atravessar oito municípios da Região Metropolitana de BH. A nova estrada fará a ligação entre as mesmas rodovias federais conectadas pelo Anel Rodoviário, além das estaduais MG-040, MG-434, MG-006, MG-424, MG-010 e MG-020.

 

Orçadas em R$ 5 bilhões, as obras estão em processo de licenciamento ambiental e a expectativa é que sejam iniciadas em 2025. A estimativa do governo estadual com a obra é de que 5 mil caminhões deixem de trafegar pela área urbana da capital por dia e que cerca de 1 mil acidentes sejam evitados por ano.

 

Mas, para o especialista Silvestre de Andrade, o Rodoanel não será capaz de solucionar sozinho os problemas do Anel Rodoviário, que vão além do tráfego excessivo de veículos leves e pesados. “Como o Anel foi construído para ser uma rodovia, ele precisa ser adequado às funções de uma via urbana. Isso significa que precisa de passeios, pontos de ônibus, passarelas e vias marginais adequadas. Uma série de coisas que precisam ser executadas no Anel atual para que funcione adequadamente como uma via urbana. Uma via expressa, mas urbana”, conclui.

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