Mulheres e ativistas fazem protesto em Belo Horizonte contra impunidade em caso de violência sexual -  (crédito: Gladyston Rodrigues/EM/D.A Press – 7/11/2020)

Mulheres e ativistas fazem protesto em Belo Horizonte contra impunidade em caso de violência sexual

crédito: Gladyston Rodrigues/EM/D.A Press – 7/11/2020

Clara Mariz e Mariana costa

 

A prisão de um homem de 47 anos, após confessar o estupro da enteada, de 11, em Lavras, no Sul do estado, em 18 de junho, e a repetição de casos do tipo acendem o alerta para uma estatística que vem tomando proporções preocupantes em Minas Gerais: a cada dia, nove crianças, adolescentes e pessoas em situação de fragilidade, em média, sofrem violência sexual no estado, conforme revelam dados da Secretaria de Estado de Justiça e Segurança Pública (Sejusp) relativos a 2023.

 

O estupro de vulnerável, previsto no artigo 217-A do Código Penal, envolve vítimas menores de 14 anos ou pessoas que, por enfermidade, deficiência mental ou outra condição limitante, não têm discernimento para consentir com a prática de ato sexual. De acordo com dados da Sejusp, de janeiro a dezembro de 2023, foram registrados 3.420 casos em Minas, alta de 9,2% em relação ao mesmo período do ano anterior, quando foram contabilizadas 3.133 ocorrências.

 

O quadro se mantém preocupante este ano: somente nos cinco primeiros meses, já são 1.335 registros oficiais no estado. São casos que vêm aumentando escaladamente nos últimos anos. Embora haja períodos de baixa, eles surgem intercalados com números sempre em patamares altos. Entre 2013 e 2023, o aumento de denúncias foi de 36,3% em Minas, e chegou a 50,8% em Belo Horizonte.

 

A maioria das denúncias de estupro registradas em Minas Gerais neste ano envolve vítimas vulneráveis – 72%. Em BH, entre janeiro e maio, 127 sofreram esse tipo de violência, o que representa quase um caso por dia. Em 2023, foram 436 ocorrências em 12 meses, 22,1% a mais do que no ano anterior na capital. Nas últimas semanas, em um rápido levantamento feito pela reportagem do Estado de Minas, pelo menos quatro casos foram notificados pela Polícia Civil em diferentes regiões de Minas.


Quando o perigo mora em casa

Enquanto os números indicam a escalada da violência, por trás de cada estatística há uma história de dor e trauma. Esse tipo específico de violência sexual tem uma característica agravante: parte significativa dos agressores são familiares da vítima – pais, mães, tios e avós.

Dados do 17º Anuário Brasileiro de Segurança Pública mostram que, na maioria dos casos, os abusadores são conhecidos das vítimas (82,7%), e que apenas 17,3% dos registros de 2022 tinham desconhecidos como autores da violência sexual.

 

São números que refletem casos como o ocorrido em Itabirito, na Grande BH, onde um homem de 61 anos foi preso suspeito de estuprar a bisneta da companheira dele, de 6. De acordo com a Polícia Civil, o abuso foi gravado pelo idoso – que chegou a mostrar o próprio rosto – e publicado em um aplicativo de compartilhamento de vídeos curtos.

 

PL Antiaborto

No caso do abuso em Lavras, a menina ficou grávida do padrasto. O estupro foi descoberto pela mãe da vítima, que levou a filha para fazer o exame de gravidez após um atraso menstrual. Segundo o delegado Pedro de Queiroz Monteiro, a mulher suspeitava que a filha estivesse grávida de um “rapazinho” que seria próximo dela. A menina foi ouvida por uma equipe do Conselho Tutelar e apontou o padrasto como autor do crime. Durante a conversa, o homem confirmou o fato e confessou o crime à polícia.

 

A gestação estava em torno da 20a semana, em meio à discussão no Congresso do PL 904/24, que dispõe sobre a alteração o Código Penal para criminalizar como homicídio o aborto acima de 22 semanas. A punição, caso o texto fosse aprovado, seria equiparável àquela prevista em caso de homicídio simples, ou seja, de 6 a 20 anos de prisão. Já a pena prevista para estupro no Brasil é de 6 a 10 anos.

 

Em 12 de junho, a Câmara dos Deputados aprovou um requerimento de urgência do PL, em votação-relâmpago. A urgência acelera a tramitação de uma proposta na Casa, já que ela segue direto ao plenário, sem passar pela análise das comissões temáticas.

 

A possibilidade de mulheres e meninas serem responsabilizadas pelo aborto com penas maiores que os estupradores gerou revolta e protestos em várias partes do país. Diante da pressão, o presidente da Câmara, Arthur Lira, afirmou que o projeto será analisado apenas no 2° semestre e anunciou a criação de uma “comissão representativa” com todos os partidos para analisar a proposta.

 

Hoje, o aborto é permitido no Brasil em três casos: se gestação for fruto de um estupro, caso o feto apresente anencefalia, ou a gravidez represente riscos à vida da mulher.


A dificuldade de romper o silêncio

O contexto intrafamiliar desse tipo de crime, que acontece na maioria das vezes em casa – 68,3% dos casos, conforme o Anuário Brasileiro de Segurança Pública – torna ainda mais desafiador para as vítimas reconhecerem as violências sofridas. E, quando o fazem, muitas ainda têm dificuldade de denunciar ou buscar ajuda.

 

“O estupro de vulneráveis é um assunto extremamente delicado e, infelizmente, ainda envolto em tabus e silêncio dentro de muitas famílias e comunidades. Esse tabu cria uma barreira significativa para a identificação e denúncia desses casos, muitas vezes perpetuando o ciclo de abuso”, afirma a psicóloga Liliane Souza, especialista em tratamento psicoterápico para vítimas de abuso sexual e integrante de movimentos de proteção à criança e ao adolescente.


Tabu estimula subnotificação

Nos casos de abuso sexual contra pessoas vulneráveis que envolvem pessoas da convivência das vítimas, quando o agressor não é parente, é alguém próximo da família. Segundo os registros do 17º Anuário Brasileiro de Segurança Pública, 21,6% dos abusadores são conhecidos de quem sofre a violência, embora sem relação de parentesco.

 

Essa realidade ainda pode ser mascarada pela subnotificação do crime, que muitas vezes, por inúmeros fatores, nem chega a ser denunciado. “O crime de estupro já carrega, pela sua própria natureza e tabu envolvido, uma subnotificação. Quando se fala em estupro de vulneráveis, o fato de grande parte dos agressores serem pessoas próximas das vítimas complica ainda mais a situação, pois cria um ambiente confusão, medo e culpa, em que a vítima, muitas vezes, se vê sem opções de escape”, destaca o pesquisador em segurança pública e advogado criminalista Jorge Tassi.
O fato de um parente próximo ser o agressor também causa graves danos psicológicos. “É compreensível que a vítima tenha um sentimento de carinho e lealdade pelo agressor, e muitas vezes não entenda o que aconteceu”, completa a psicóloga Liliane Souza.


Escola tem papel fundamental


Por ser um problema histórico e arraigado nas relações familiares, a escola tem papel fundamental na prevenção de abusos e violência sexual contra crianças e adolescentes. Para Liliane Souza, é importante levar o tema para a sala de aula, para incentivar que as vítimas falem.

 

“Elas precisam entender o que é um abuso, que o corpo é algo íntimo. Além disso, os professores, no contato diário, observam o comportamento das crianças, como elas brincam, como se relacionam com outras crianças. As vezes é uma coisa muito sutil”, aponta.

 

Familiares também devem estar atentos aos sinais, indicam especialistas. Para denunciar casos anonimamente, é possível ligar para o número 181. Em caso de emergência, a orientação é ligar 190 e chamar a Polícia Militar ou denunciar em qualquer delegacia.

 

Condenação de pai de santo por abuso

faz 15 vítimas romperem silêncio

Sentença contra suposto líder espiritual que estuprou a enteada por nove anos, desde os 7, abre caminho para outras denunciantes contarem o que sofreram

 

O processo contra um pai de santo de 59 anos que atuava no Bairro Jaqueline, na Região Norte de Belo Horizonte, resultou em condenação diante da acusação de abuso sexual de uma enteada menor de idade. O Estado de Minas teve acesso à sentença contra ele, decretada um ano depois de o caso vir à tona, no início do mês de abril.

 

O homem foi condenado a 26 anos e 10 meses de prisão por estuprar a enteada, atualmente com 16 anos. Os abusos, cometidos no decorrer de nove anos, começaram quando a menina tinha apenas 7, conforme os autos. Ele também foi condenado a pagar R$ 2 mil por danos morais à vítima.
Agora, a condenação representa uma nova esperança para outras 15 denunciantes, entre elas duas enteadas de Carlos, que também acusam o homem de estupro. Conforme apurou o Estado de Minas, duas denúncias, de 2019 e 2020, já estão em processo avançado na Justiça. As demais estão paradas na Polícia Civil.

 

“É uma chama que se acendeu. A expectativa é que essa condenação sirva de caminho para as outras sentenças, porque infelizmente as outras denúncias estão paradas, não correram. Isso causa muita aflição nessas mulheres”, contou Karina Barbosa, advogada das vítimas à reportagem do Estado de Minas.

 

À polícia, o homem confessou o crime, disse que se arrepende, mas alegou que as relações foram consensuais. Os abusos fariam parte de um suposto ritual religioso. As primeiras denúncias contra ele partiram das três enteadas, e as investigações tiveram início em março de 2023. Em 2019, uma das jovens, à época com 18 anos, contou que havia sido estuprada pelo homem. A mãe dela, no entanto, não acreditou.

 

Quatro anos depois, a filha de 15 anos também contou à mãe que, assim como a irmã, sofreu abuso por parte do padrasto. Outra enteada dele resolveu expor a situação depois que descobriu os abusos praticados contra a irmã mais nova. “Apareceram mais mulheres, vítimas dele que procuraram o centro em busca de auxílio espiritual e que acabaram sofrendo abuso”, afirmou a advogada Karina Barbosa.


ALVOS NÃO SÃO APENAS MENORES

Caso ocorrido em julho do ano passado em BH mostra que o estupro de vulnerável não é um crime que faz vítimas apenas entre crianças e adolescente: uma jovem de 22 anos foi encontrada desacordada e seminua no campo do Grêmio Mineiro, no Bairro Santo André, na Região Noroeste de BH, depois de ter sido estuprada. Ela foi abandonada, desacordada, por um motorista de aplicativo na porta de casa após sair de um show, e carregada por um homem, de 47, até o local do crime.

 

Em fevereiro deste ano, o acusado foi condenado a 10 anos, 8 meses e dez dias de prisão em regime fechado. Conforme a decisão, a pena imposta foi “no patamar mínimo”, sem agravante de lesão corporal grave.

 

Além do autor do estupro que chocou o país, o Ministério Público de Minas Gerais denunciou por estupro de vulnerável o motorista de aplicativo que abandonou a vítima, desacordada, na calçada. A denúncia se baseou no entendimento de que a omissão é penalmente relevante quando o responsável poderia ter evitado o crime.

 

Porém, o motorista foi absolvido da acusação mais grave. Quanto à denúncia por abandono de incapaz, ele foi condenado por sua forma mais simples e por isso, o caso voltará ao MP para eventual acordo. 

 

Prisão e busca de vítimas

Em abril, um líder religioso de 62 anos foi preso, em Engenheiro Caldas, no Vale do Rio Doce, suspeito de abusar de duas crianças, de 3 e 8 anos. Conforme apuração da polícia, o homem levava as vítimas para a casa dele, onde oferecia doces e, depois, praticava atos libidinosos com elas. Investigações buscam esclarecer todos os detalhes e apurar se há outras vítimas ou envolvidos no caso.