Trabalhadores e máquinas em meio a obras no espaço que virou point de gastronomia e encontro de jovens de diferentes origens -  (crédito: Leandro Couri/EM/D.A.Press)

Trabalhadores e máquinas em meio a obras no espaço que virou point de gastronomia e encontro de jovens de diferentes origens

crédito: Leandro Couri/EM/D.A.Press

 

Quem circula pelo Bairro Floresta, na Região Leste de Belo Horizonte, dificilmente imagina que aquele espaço já foi uma comunidade habitada por operários pobres, de maioria negra, uma realidade que remonta à época da construção da capital mineira. Hoje considerada uma área de classe média, majoritariamente ocupada por pessoas brancas, por lá ainda resiste uma rua que procura preservar as origens sem deixar de se apresentar como espaço diverso, ainda que bastante limitado: a Sapucaí.

 


“Aquele entorno é um portal de chegada. Lá havia casas que eram chamadas de favelas, casas que eram das pessoas negras e das pessoas pobres que ocupavam Belo Horizonte no início da sua construção: trabalhadores braçais, pedreiros e serventes”, conta a gestora cultural Karla Danitza, que integrou o grupo de pesquisadores Africanidades BH.


A partir de sua pesquisa “Percursa: Uma cartografia das africanidades em Belo Horizonte”, Karla e outros pesquisadores foram descobrindo que a Sapucaí existia como um território negro, de pessoas pobres e migrantes de outras regiões do país e de fora dele. Com a expansão urbana, no entanto, esses grupos foram expulsos para dar espaço ao que foi chamado de modernidade: um ideal de bairro destinado à classe média.


Monta e desmonta

 

Com um histórico de “monta e desmonta”, Belo Horizonte já passou – e ainda passa – por muitos projetos de revitalização e da chamada gentrificação. Um dos exemplos mais recentes ocorreu na Praça Raul Soares, por onde pessoas em situação de rua deixaram de circular após a reforma.


Por mais que o processo seja bem visto por moradores e comerciantes, por considerarem que a mudança traz segurança, a expulsão de determinados grupos de certas regiões desperta questionamentos de especialistas e uma reflexão: afinal, quem tem direito à cidade?


“À medida que as cidades crescem, seu público fica cada vez mais variado e os acessos vão sendo divididos. Em parte da cidade, pode haver uma circulação que, em outra parte, não pode ocorrer. E esse abismo social – em que o Brasil como um todo vive inserido – faz com que determinadas pessoas não tenham acesso a atividades de lazer, de educação, de cultura, de esporte. E isso é um combustível para que violências aconteçam”, afirma Danitza.

 


“A gente acaba olhando para a criminalidade, mas não para a cidade como um todo. As pessoas têm direito à circulação dentro da cidade, e a segurança pública acaba não tendo um diálogo com todas as possibilidades que a cidade tem. Ela se limita a uma segurança excludente, que, nas perspectivas de um país fundado em uma lógica racial – e racista –, define quem é quem dentro dos territórios”, acrescenta.


E, na Rua Sapucaí, o debate também se faz presente. Apesar de a revitalização iniciada no espaço ser bem recebida, o fechamento da via gera preocupações para quem frequenta o local nos fins de semana – principalmente aqueles que saem de outras regiões da Grande BH.


“É um lugar muito interessante, mas acontecem certas coisas que eu não acho muito legais, como o alto índice de roubos e o policiamento, às vezes violento, contra civis. Não temos liberdade nem para escutar música, porque geralmente quando tem alguém com uma caixinha de som – mesmo que o volume não seja alto –, eles abordam a gente. Segundo eles, incomoda os moradores. Ameaçam e ficam nos observando, até irmos embora, e isso é muito chato em um espaço que deveria ser público”, avalia Ariel Marques Rodrigues, estudante de 16 anos.


Gentrificação?

 

Segundo definição do braço brasileiro da organização internacional da sociedade civil Habitat, gentrificação refere-se à transformação socioeconômica e cultural de uma região ou bairro, que ocorre quando pessoas de maior renda começam a se mudar para áreas com valores imobiliários mais baixos. Para entusiastas do desenvolvimento urbano, é vista como uma espécie de alavanca de progresso, que traria ruas mais limpas, maior segurança e serviços de melhor qualidade. Para os críticos, a face menos positiva se caracteriza pela expulsão de habitantes mais antigos e tradicionais e pela diluição da face cultural desses espaços. “Esse aspecto levanta questões importantes sobre equidade e justiça social nas cidades. Seu impacto vai além da reestruturação física, afetando profundamente a composição social das comunidades”, acrescenta a Habitat Brasil.

 

Nascido e criado no Alto Vera Cruz, na Região Leste de BH, Ariel gosta da região por oferecer opções de lazer acessíveis e com públicos diversos, mas questiona as obras de revitalização. “Querendo ou não, quando o poder público pega um espaço para revitalizar, eles demoram muito tempo, e parece proposital, principalmente quando se trata de lugares com bastante público noturno, como a (vizinha) Praça da Estação. O fato de a Sapucaí ser uma rua não incomoda as pessoas, mas se o policiamento fosse mais balanceado, seria muito melhor”, complementa.

 


Para Karla Danitza, a questão da segurança pública deve dialogar com todas as partes – econômica, social, cultural, educacional, de saúde etc. – para que as pessoas que desejam usufruir dos espaços possam fazê-lo com segurança, e que esse direito não seja limitado a apenas uma parte da sociedade.


“A segurança tem que ser pensada para o cidadão, não para a propriedade ou para objetos, mas não é isso que a gente vê hoje em dia. Há uma preocupação excessiva com propriedades e uma preocupação muito frágil com pessoas, principalmente aquelas moradoras da periferia, ou até aquelas que sequer têm moradia. Precisamos olhar para essas pessoas como indivíduos que têm direito de acessar a cidade, e não como criminosas ou bagunceiras, que estão ali para sujar a cidade, como é normalmente dito”, afirma.


“Assim como nos tempos da Praia da Estação, a periferia chegou e também quer exercer seu direito à cidade. Mas, sem ações de políticas públicas, sua chegada traz facilmente as propostas de criminalização e marginalização”, completa.


Revitalização

“O que está acontecendo na Sapucaí hoje? O morro desceu, há muitos jovens das favelas frequentando, junto com outros jovens de outras periferias da cidade. Há, também, os ‘tilelês’ e uma galera classe média conhecida como ‘cirandeira’. Há um certo nível de democratização do espaço, no mesmo nível do mito da democracia racial brasileira e, óbvio, muitas reclamações dos moradores e proprietários de casas do entorno”, relata Danitza.


Para ela, apesar de o fechamento da Rua Sapucaí ter começado no início de 2023, a ação não recebeu a publicidade e nem a atenção de políticas públicas que merecia. “Há pouco tempo, a prefeitura tentou um fechamento da Sapucaí, fazendo algo parecido com o que acontece na cidade de São Paulo, na Avenida Paulista. Lá, a via é fechada para veículos aos domingos para que as pessoas possam circular com skates, bicicletas, crianças, animais, com atividades culturais e visitação. Em BH houve essa tentativa, mas não de maneira que a cidade – principalmente seus extremos – soubesse que aquilo estava acontecendo, e que ocorreria com frequência maior”, avalia Danitza.

 

Obra gera debate sobre Ocupação da Rua Sapucaí no Bairro Floresta, Leste de BH, como espaço de lazer de diferentes "galeras" urbanas

Obra gera debate sobre Ocupação da Rua Sapucaí no Bairro Floresta, Leste de BH, como espaço de lazer de diferentes "galeras" urbanas

Túlio Santos/EM/D.A Press – 7/06/2024


A pesquisadora entende que, para que ocorra uma política pública de fechamento da rua, também é preciso garantir mobilidade para as pessoas. “Em São Paulo, por exemplo, o transporte por ônibus é gratuito para todo cidadão, seja ele morador da cidade ou não. Em Belo Horizonte, não se trabalha uma política de mobilidade nesse formato”, sustenta.


De acordo com ela, a movimentação no local deveria impulsionar as políticas públicas de ocupação popular, mas não é o que acontece, por mais que a rua tenha se tornado um corredor cultural e gastronômico nos últimos tempos. “É preciso pensar em ações que não comecem esvaziadas. Ainda temos um fluxo muito grande: o metrô passa por ali; os ônibus chegam de boa parte da cidade. Então, faz muito mais sentido ampliar esse acesso do que colocar cancelas que digam quem entra e quem sai, que é o que acontece hoje, por estar inserido na Região Centro-Sul, em um bairro de classe média, tradicional. Acaba tentando se fazer essa seleção de pessoas”, diz.

 

Novas ocupações

 

Apesar de movimentada durante o dia, a Rua Sapucaí acaba sendo mais conhecida por sua vida noturna. Não à toa, abriga um trecho da Festa da Luz – que transforma áreas do chamado “baixo Centro” de Belo Horizonte em um circuito iluminado – importante manifestação artística gratuita na capital mineira –, além de contar com bares, restaurantes e casas de show cuja procura ocorre majoritariamente à noite.


Para frequentadores que saem do trabalho, da escola ou da faculdade, a via é conhecida pelo “encontro de tribos”, principalmente nos fins de semana. “A gente mora em Contagem e acabamos vindo para cá para conhecer novas pessoas. Viemos na Festa da Luz, na Parada Negra LGBT que aconteceu recentemente, frequentamos o Mercado Novo, e costumamos frequentar esses eventos que levam a população para ocupar a cidade, porque é muito importante que estejamos nesses lugares”, conta Mikaela Limp, de 26, arquiteta e urbanista.


Ela e outros amigos que trabalham no Centro de Belo Horizonte costumam parar na Sapucaí, entre o fim do expediente e a ida para casa, na Grande BH, para espairecer de tempos em tempos. “É um espaço bacana, relaxante, fica perto de tudo, então ainda dá para encontrar amigos que são de longe, marcar um 'date'. Além de ser um espaço acolhedor, porque BH tem muito rolê que é só de branco”, afirma Rick Júnior, publicitário de 25 anos.

 

 


O lugar é opção também de Eduarda Evelyn Ribeiro Silva, de 19, que sai do trabalho como auxiliar de cozinha no Bairro São Bento, Região Centro-Sul, para fechar a noite na Sapucaí antes de ir para casa, na Região de Venda Nova, de metrô. Para ela, estar na rua é sentir-se livre e poder ser ela mesma.


“Comecei a frequentar a Sapucaí há poucos meses, e foi por conta de amigos que já vinham para cá. E é um lugar bom, por que não dar uma passada?” Para ela, é um ótimo lugar para se distrair. “Trabalho no dia seguinte, mas pelo menos fiz alguma coisa na sexta à noite”, comenta.


Para Danitza, é importante possibilitar novas ocupações no espaço, mas também é preciso que o poder público pense em todos os frequentadores como cidadãos com direito à cidade. “O fundamental para este momento da Sapucaí é pensar a cidade para todos, sem exceção. Belo Horizonte tem um perfil cultural riquíssimo, mas é preciso pensar em como abrigar essa diversidade de pessoas, porque a cidade ainda carece de muitos espaços e atividades acessíveis para seus diferentes públicos”, diz.


“Nosso DNA é de uma cidade dedicada aos botecos, bares e restaurantes, mas também precisamos ser uma cidade dedicada à vida em circulação com qualidade”, completa. 

 

Tilelê?

 

Segundo definição de dicionário informal na internet, “tilelê” é denominação que se refere a uma espécie de “hippie contemporâneo”, comumente universitário. Uma generalização para se referir a uma tribo urbana formada por adeptos de roupas e acessórios que remetem a estéticas africanas, orientais e indígenas, além de pessoas ligadas a culturas alternativas e à música produzida por artistas independentes e fãs de tambores e ritmos de matriz africana. Em BH, o termo é muito utilizado para se referir a jovens ligados à cultura do tambor disseminada por blocos de carnaval e atividades comandadas por Maurício Tizumba, percussionista, ator e compositor à frente da associação cultural Tambor Mineiro. De acordo com Tizumba, o termo tilelê remete a refrões onamotopaicos de canções do congado.