Vereda agoniza no município de Três Marias -  (crédito: Alexandre Guzanshe/EM/D.A Press)

Vereda agoniza no município de Três Marias

crédito: Alexandre Guzanshe/EM/D.A Press

  

Noroeste e Norte de Minas Gerais, trijunção Minas, Goiás e Bahia – Entidade central na literatura e no sertão evocado pelo escritor João Guimarães Rosa (27/06/1908-19/11/1967), presente na obra-prima do autor desde as primeiras menções, o ecossistema de vereda vem sendo dizimado desde as regiões Noroeste e Norte de Minas Gerais, também na chamada trijunção mineira com Goiás e Bahia.

 

Imortalizada na literatura nacional sob o título “Grande sertão: veredas”, a paisagem vai definhando na vida real no mesmo compasso do bioma que a abriga, o cerrado, o segundo mais devastado do Brasil, atrás apenas da Amazônia, segundo o Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais.

 

 

 

Nesse ritmo de destruição, avaliam especialistas, não haverá espaço para a sobrevivência do cerrado natural e das veredas, o que aproxima essa paisagem do primeiro título pensado por Guimarães Rosa para o que se tornaria sua obra maior, mencionado há 70 anos na revista “O Cruzeiro”: em 17 de abril de 1954, a publicação revelava que o autor batizaria seu livro como “Veredas mortas”. O nome consagrado foi outro. Já o título abandonado soa, hoje, como premonição.

 

Os impactos, condições ambientais e climáticas em 55 municípios mineiros, baianos e goianos que têm registros literários e históricos deixados por Guimarães Rosa naquela época mostram uma brutal degradação, segundo levantamentos que o Estado de Minas expõe a partir de hoje, por meio da série de reportagens especiais “Veredas mortas”, que toma emprestado o título original da obra-prima – mais atual que nunca.

 

 

A cada dia, uma reportagem cujo título mencionará uma das passagens de Rosa no livro revelará o nível de destruição, a importância e as perspectivas de um tesouro natural que ficou gravado como referência literária, mas que, muito além disso, é de importância vital para o sertanejo, para o estado, o país e o planeta.

 

A destruição que se realimenta

Percorrer as paragens que inspiraram “Grande sertão: veredas”, criação maior de Guimarães Rosa, é lançar os olhos por uma paisagem cada vez mais devastada. É o que se avista também pelos caminhos por onde o autor cavalgou acompanhando sertanejos, em uma travessia de gado na qual se inspirou para o livro – descrita no diário “A boiada”. Situação tão mais preocupante quando se considera que ali está a “caixa d’água” que irriga afluentes do Rio São Francisco – e também as memórias de Rosa –, como o Urucuia, o Paracatu e o Rio das Velhas, essenciais para a agricultura, abastecimento e comércio brasileiros.

 

Irreconhecíveis a muitos desses registros, literários, econômicos ou geográficos, as matas extensas e de vegetação tortuosa e os buritis imponentes característicos das veredas vão sucumbindo, tombando para dar lugar aos eucaliptos, plantações, pastagens e erosões em desertificação. O cerrado arde em carvão; rios secam; veredas são soterradas; nascentes se retraem solo adentro. O calor, marca do sertão, torna-se mais e mais esturricante, agravando todo o processo. E se realimentando dele.

 

 

 

Dados compilados pela equipe do EM a partir do Painel Intergovernamental sobre Mudanças Climáticas (IPCC) – órgão das Nações Unidas (ONU) – indicam que a média de temperaturas máximas no já bastante degradado sertão rosiano pode aumentar 1,4°C entre 2021 e 2040, e até 2,52°C, entre 2041 e 2060, simplesmente se nenhum impacto ambiental, emissão de carbono ou calor for refreado. Ou seja, nada precisaria piorar para a situação já crítica seguir se degradando, já que na última década a temperatura global se elevou 1,1°C, segundo as mesmas fontes.

 

O mesmo levantamento prevê para as áreas em nível mais avançado de desertificação do Brasil – Cabrobó (PE), Gilbués (PI), Inhamus (CE), Irauçuba (CE), Jaguaribe (CE) e Seridó (PB) – ampliações médias menos dramáticas, de 1,1°C e 2,05°C, respectivamente, nas mesmas condições.


Menos chuvas, mais temporais

Já as chuvas nos 55 municípios do sertão imortalizado por Rosa apresentariam no mesmo cenário de curto prazo (2021 a 2040) uma estiagem maior, com redução da precipitação anual de 1,81%. Por outro lado, as destrutivas chuvas com máximas de um dia – tempestades concentradas em pouco tempo, gerando grande estrago, erosões e pouca absorção de água pelo solo para recarga de nascentes – aumentariam em média 4,38%, segundo as modelagens do IPCC e análises de especialistas.

 

“Essa situação de a temperatura até superar o aumento nas regiões com maior índice de desertificação no Brasil, bem como uma redução da chuva anual e ampliação de eventos extremos de tempestades, acredito serem diretamente ligadas ao uso e à ocupação do solo, em práticas como de desmatamentos e queimadas”, indica o professor Antoniel Fernandes, dos departamentos de Geografia e Biologia da PUC Minas.

 

Para ele, são situações preponderantes para o aumento da temperatura e alteração nos regimes hídricos. “Impactam o entorno das nascentes, as expõem a recebimento maior de radiação do Sol. São ambientes frágeis. O impacto também é sentido no regime hídrico”, enumera o especialista.

 

Um ciclo de devastação

O ambientalista Almir Paraca tem trabalhos ambientais e culturais relacionados a Guimarães Rosa e ao povo sertanejo. Ele identifica os mecanismos que resultam nos eventos climáticos extremos que vêm dizimando o cerrado e as veredas. “Tudo está ligado ao desmatamento e às queimadas. Os rios estão encolhendo. A plantação precisa da água, mas o rio não aguenta mais. A vereda barrada ficou rasa. Então, furam poços. A vereda com nascente que vem do lençol subterrâneo seca de vez para a plantação, perde mata ciliar para o plantio do eucalipto, para o fogo, fica cimentada e dura com o pisoteio do gado”, descreve.

 

Uma crise que se realimenta, define ele. “É um ciclo de devastação que resulta em mais calor, menos água, mais ‘chuvas de manga’, como a gente chama na região as chuvas que se concentram em um lugar ou outro. Essa bate no solo sem mata, corre direto para o rio sem se infiltrar e abastecer o lençol (freático), entra no rio sem mata ciliar carregando sedimentos e vai embora rio abaixo, deixando para trás só assoreamento”, resume Paraca.

 

"Tudo está ligado ao desmatamento e às queimadas. Os rios estão encolhendo. A plantação precisa da água, mas o rio não aguenta mais"

Almir Paraca, ambientalista

 

Dados sobre desmatamento do Instituto Estadual de Florestas de Minas Gerais (IEF-MG) amparam a análise do ambientalista. O desmate sistemático do cerrado mineiro apresentou três fases distintas na última década. De 2014 a 2017, um alto grau, com média de 18.376 hectares perdidos por ano. Uma área equivalente a quatro vezes e meia a Floresta Nacional da Tijuca, no Rio de Janeiro, 78 vezes o Parque das Mangabeiras, em BH, e 116 vezes o Parque do Ibirapuera, em São Paulo.

 

Uma nova fase apresentou queda entre 2018 e 2020, quando a média de desmatamento encolheu 57%, chegando a 7.997 ha. Mas voltou a crescer ainda mais entre 2021 e 2023, em um ritmo de 21.080 ha por ano, uma escalada de 164%. No ano de 2023, o cerrado mineiro perdeu 23.238,06 ha, o terceiro pior resultado da série, atrás de 2022 e de 2017.

 

A primeira menção às “Veredas” na imprensa

Setenta anos atrás, a revista “O Cruzeiro”, dos Diários Associados, publicava a primeira notícia sobre o livro que se chamaria “Grande sertão: veredas”. Em abril de 1954, a abertura da coluna “No mundo dos livros” informa que Guimarães Rosa, “em grande atividade”, finalizava duas obras: as novelas reunidas em “Corpo de baile” e o primeiro romance, “Veredas mortas”. “É uma densa, poderosa história em que a arte de narrar é atingida pelo autor na sua mais perfeita forma”, antecipava o colunista Geraldo de Freitas.

 

Em 17 de abril de 1954, a revista "O Cruzeiro", dos Diários Associados, publicava a primeira notícia sobre o livro "Grande sertão: Veredas". Na época, Guimarães Rosa ainda usava o nome "Veredas mortas"

Em 17 de abril de 1954, a revista "O Cruzeiro", dos Diários Associados, publicava a primeira notícia sobre o livro "Grande sertão: Veredas". Na época, Guimarães Rosa ainda usava o nome "Veredas mortas"

Reprodução

 

“Tanto um livro quanto o outro abrem perspectivas inteiramente novas na vida literária do novelista de ‘Sagarana’, assinalando dois momentos definitivos na prosa de ficção brasileira”, garante o colunista. Em janeiro de 1956, Guimarães Rosa entrega os originais datilografados, já com novo título, à Editora José Olympio. “Grande sertão: veredas”, com o subtítulo “O diabo na rua, no meio do redemoinho...”, chega às livrarias em julho do mesmo ano, com 594 páginas e capa (acima) assinada pelo artista gráfico Poty.

 

Acompanhe a série

Esta reportagem integra a série “Veredas mortas”, do Estado de Minas, que toma emprestado o título inicialmente pensado por Guimarães Rosa para sua obra-prima, depois batizada “Grande sertão: Veredas”. As reportagens começaram a ser publicadas no domingo (14) e a íntegra das reportagens, galerias de fotos e vídeos estão disponíveis em nosso site.