Três Marias, Bonito de Minas e Januária – A boiada agitada tinha bezerros fazendo redemoinhos no meio. Levantava poeira sobre as árvores: sucupiras, inharés, paus-doces e outras. Lentamente, a caravana acompanhada por João Guimarães Rosa nos anos 1950 cruzou o Rio do Boi, afluente do Rio São Francisco que hoje deságua na grande represa de Três Marias, na Ilha do Boi, município de Três Marias, na Região Central de Minas “Lajes escorregosas.
As dificuldades dos bezerros. O 'salto' encachoeirado. Bindóia vem tirar o bezerro pelo rabo”, descrevia Rosa em um de seus diários, em 20 de maio de 1952, enquanto acompanhava a boiada que lhe serviria de inspiração para o clássico “Grande sertão: veredas”.
Pouco depois, o escritor relataria um de seus maiores encantamentos. “12 hs. 00 - Vereda com cursinho de água, permanente. Vadeável, Vereda do São José. 12 hs. 20' - Costeamos bela larga vereda – a mais bela – com buritis grandes e meninos, verde e amarelo oiro. Nêles o vento zumbe. As folhas altas, erectas, se dedeiam. Vários leques, cada um”, escreveu, em suas anotações.
Fizesse hoje o mesmo caminho, o escritor e imortal veria o Rio do Boi correndo entre pedras escuras emprateleiradas em cascatas. Mas, adiante, a expectativa de Rosa certamente se frustraria. Seguindo a estrada de poeira vermelha, onde antes viu mata tortuosa de madeira de lei e frutos do cerrado, agora se fecham simétricos eucaliptos. Seus olhos enxergariam na curva à frente a lenta morte da sua mais bela vereda: está cortada ao meio, por uma ponte concretada sobre manilhas. Por elas, não flui mais nem um filete.
Buritis ainda há, mas seu verde e amarelo “oiro” esmaece. Essas palmeiras típicas das veredas, cuja mera presença antecipa ao sertanejo ao longe a proximidade de um manancial, aos poucos perdem as folhas em leque. De muitas já resta apenas o toco, poleiro de araras. As mais antigas, mortas-secas, desabaram abrindo clareiras no que deveria ser a mata de galeria que protege a formação típica do cerrado.
Dos lados da estrada, poeira vermelha que sobe à altura dos joelhos cobre os pés dos buritis que resistem. No caminho do curso de água que Guimarães Rosa classificou como “permanente”, o solo está seco há tempos. Um emaranhado de espinhos cresce, tomando para si o que já foi vereda.
Poças dentro do São Francisco
Está ali um afluente extinto do Rio do Boi e, por conseguinte, do São Francisco. No sentido da cabeceira, ainda se acha alguma poça de água, escurecida, onde vermes nadam, se contorcendo. Mas são águas que descem de cochos sujos de gado, alguns feitos de banheira e geladeira velhas.
Nas poças dentro da vereda também boiam agarradas a raízes altas da vegetação de pântano algumas garrafas pet, um chinelo velho sem par, folhas de papel alumínio que já embrulharam alimentos, panos sujos de roupas puídas, embalagens plásticas descartadas...
E a água foi “privatizada”
Mas não são apenas o eucalipto, o desmate, as chamas ou o lixo que aos poucos matam de sede a Vereda do São José e a condenam a virar uma lembrança na história de Guimarães Rosa. A água que fortalecia e revigorava as cores da vereda, a mesma que impressionou o escritor, está presa há anos em um grande barramento ali próximo, retida para irrigar plantações em pivôs centrais, afogando buritis pegos na inundação.
Na época de estiagem, nem uma gota sobra para matar a sede da vereda, condenando-a a definhar aos poucos. Como o sertão de Rosa. Como o cerrado brasileiro.
A Prefeitura de Três Marias relatou o drama da Vereda do São José e de outras mais no sertão. Segundo laudo do Inventário de Proteção do Patrimônio Cultural de Três Marias (Ipac), o ecossistema das veredas tem presença marcante no Vale do São Francisco, onde constitui nascentes de vários afluentes.
A vereda, agora chamada apenas de “São José”, teria 4.200 metros de extensão. Foi reconhecida pelo Decreto Municipal 1.403, de 2006, como patrimônio natural, cultural e histórico de Três Marias.
Nenhuma providência prática
“Em 2009, foi identificado que a Vereda São José era represada para alimentar um pivô central que irrigava o plantio de sementes de milho e feijão. Verificava-se também que o plantio de eucalipto domina a margem esquerda e os locais mais elevados dos Gerais, onde se encontra a área de recarga da Vereda São José”, destacou o documento. Não resultou em nenhuma providência prática.
O que se mostra grave ainda piora quando se observa o Inventário Florestal, do Instituto Estadual de Florestas de Minas Gerais (IEF-MG), também do ano de 2009 e responsável por catalogar todas as formações vegetais mineiras. Para o mapeamento estadual, a Vereda do São José sequer é caracterizada como uma vereda. O predomínio agora é de cerrado, campos de cerrado e um resquício de floresta atlântica de montanha, que perde as folhas no frio.
Agressões a fontes de vida
Documento da Prefeitura de Três Marias detalha a importância das veredas ameaçadas para a região e para a Bacia do São Francisco. “Estima-se que 80% das cabeceiras perenes da margem esquerda deste rio encontram-se nas veredas. Neste sentido, sua importância na formação e manutenção dos recursos hídricos mineiros é incontestável. Além disso, as veredas resguardam inestimável interesse ecológico e paisagístico, sendo essenciais para o entendimento da cultura e do desenvolvimento socioambiental do sertão”, diz trecho do laudo do Inventário de Proteção do Patrimônio Cultural de Três Marias.
Acompanhe a série
Esta reportagem integra a série “Veredas mortas”, do Estado de Minas, que toma emprestado o título inicialmente pensado por Guimarães Rosa para sua obra-prima, depois batizada “Grande sertão: Veredas”. As reportagens começaram a ser publicadas no domingo (14) e a íntegra das reportagens, galerias de fotos e vídeos estão disponíveis em nosso site.