Incêndio na zona rural de Pirapora, no cerrado mineiro -  (crédito: Alexandre Guzanshe/EM/D.A Press)

Incêndio na zona rural de Pirapora, no cerrado mineiro

crédito: Alexandre Guzanshe/EM/D.A Press


Várzea da Palma e Pirapora – Na literatura, dois meses de trégua nos tiroteios descansaram da guerra o bando de jagunços do Grande Sertão de Guimarães Rosa. Mas a despedida das amenas fazendas de pecuária e farta comida no encontro dos rios das Velhas e São Francisco traria de volta o sol rude sobre as trilhas, bem como a dieta de farinha de buriti, a caça incerta e a eventual colheita no cerrado. A estiagem terminava, se via, pelas chuvas apontando ao longe e pelas cheias dos rios.

 

“Redeando, rumamos, em tralha e torto, por aquele afora – a gente ia investir o sertão, os mares de calor. Os córregos estavam sujos. Aí, depois, cada rio roncava cheio, as várzeas embrejavam, e tantas cordas de chuva esfriavam a cacunda daquelas serras.” Alívio de novo, só era esperado nos oásis do sertão: as veredas: “Aquela água de vereda sempre tinha permanecido ali, permeio às touças de sassafrás e os buritis dos ventos”.

 

 

Pelos trechos da obra-prima “Grande sertão: veredas”, o escritor João Guimarães Rosa descreve em 1956 como o calor se arrefecia nas veredas de onde vertia a água para os povoados beira-rio, no caso, o “Guararavacã do Guaicuí” – atual Barra do Guaicuí, em Várzea da Palma, no Norte de Minas: endereço do encontro dos rios São Francisco e das Velhas. Veredas que marcavam aqueles caminhos ganharam destaque na obra inicialmente, nos anos 1950, chamada de “Veredas mortas” pelo autor.

 

Atualmente, vereda mesmo não restou nenhuma em Várzea da Palma – e já não é de hoje, como mostra o Inventário Florestal de 2009 do Instituto Estadual de Florestas de Minas Gerais (IEF-MG). Nem lá, nem na vizinha Pirapora, onde os personagens Riobaldo e Diadorim, do Romance de Rosa, passaram diversas vezes entre batalhas e fugas sertão adentro.

 

As veredas que resistiram mais perto de lá ficam a Oeste, na margem esquerda do Rio São Francisco, em Buritizeiro. Também ao Sul, em Lassance, de onde vem o Rio das Velhas. E ao Norte, em Lagoa dos Patos, seguindo o fluxo do Velho Chico. O que tornou Várzea da Palma e Pirapora em um sertão sem veredas.


A quentura na onda do desmatamento


O mesmo processo que ceifou as veredas pode condenar a eventos climáticos extremos esses locais, descritos no livro de Rosa como agradáveis pousos antes das travessias dos “mares de calor”.

 

Segundo levantamento feito pela equipe de reportagem do Estado de Minas junto ao Painel Intergovernamental sobre Mudanças Climáticas (IPCC) – órgão das Nações Unidas (ONU) –, se nada mudar, Várzea da Palma e Pirapora poderão registrar no curto prazo (até 2040), aumento médio de 1,5°C nas temperaturas máximas, chegando a 2,6°C de elevação no médio prazo (até 2060). As médias dos 55 municípios mencionados no sertão de Guimarães Rosa levantados pela reportagem são de 1,4°C e 2,52°C.

 

 

 

Cidades vizinhas também experimentarão no curto prazo secas mais prolongadas, com redução das chuvas anuais em 2,2%, enquanto as tempestades bruscas de curta duração, responsáveis por inundações e erosões, poderão ter incremento de volume médio de 5,3%.

 

Os pequenos trechos de floresta natural e sem veredas de Várzea da Palma foram reduzidos, de 2013 a 2023, em 1.927 hectares (ha) e em 273 ha em Pirapora, segundo levantamento feito a partir da plataforma Global Forest Watch, de monitoramento florestal. Só os incêndios levaram desses remanescentes 315 ha e 47 ha respectivamente, entre 2001 e 2023.


Meses de fogo sem trégua


“Precisamos considerar que os impactos vêm da supressão do cerrado. Mais especificamente nessa região, que é um solo extremamente arenoso. Você tira a cobertura vegetal e o que vai acontecer é que a chuva não penetra mais como quando a vegetação segurava a água, dando tempo para a infiltração. A água cai, por mais que se possa adotar técnicas preventivas, como curva de nível e as próprias barraginhas; ainda assim, parte substantiva desse solo vai ser lavado e assorear as veredas, as nascentes, os cursos d'água. Vai parar no Rio São Francisco”, observa o ambientalista Almir Paraca. “O solo aberto reflete mais calor. A falta de vegetação, de corpos de água também são componentes do aquecimento.”

Na Vereda da Tabua, na bacia do Rio Pandeiros, restou apenas areia e buriti seco

Na Vereda da Tabua, na bacia do Rio Pandeiros, restou apenas areia e buriti seco

Solon Queiroz/Esp. EM

 

Na comunidade de Buritizinho, no município de Januária, no Norte de Minas, a Vereda do Peruaçu era preservada, com centenas de buritis, diferentes espécies de aves, fartura de água e muitos peixes, numa extensão entre 10 e 15 quilômetros. Mas, em 2017, a vereda foi atingida por grande incêndio e ardeu em chamas durante seis meses, apesar do esforço das equipes de combate e dos moradores. Sete anos depois, a vereda vive um processo de extinção: a biodiversidade não existe mais; a água diminuiu e os buritis que não sucumbiram ao incêndio estão morrendo. Os pequenos agricultores (veredeiros) também sofrem com as perdas.

 

"Precisamos considerar que os impactos vêm da supressão do cerrado. Mais especificamente nessa região, que é um solo extremamente arenoso"

Almir Paraca, ambientalista

 

A situação verificada na comunidade rural de Januária mostra como as queimadas, ao longo dos anos, tornaram-se assassinas de veredas, somando-se ao desmatamento do cerrado e às mudanças climáticas na devastação do ecossistema. Além do seu poder destruidor, o fogo em uma vereda tem outro agravante: é difícil de ser combatido. Foi por isso que a vereda do Peruaçu queimou por um semestre inteiro.

 

“O solo da vereda é turfoso, o que dificulta o combate, colocando em risco os combatentes. Apaga-se o fogo por cima, mas as chamas continuam queimando por baixo”, destaca o ambientalista Eduardo Gomes, diretor do Instituto Grande Sertão, de Montes Claros, e também brigadista contra incêndios.

Delícia Fernandes da Mota , veredeira e pequena agricultora em Januária

Delícia Fernandes da Mota , veredeira e pequena agricultora em Januária

Solon Queiroz/Esp. EM

 

“Todo mundo aqui se juntou para apagar o fogo. Vieram caminhões-pipa, bombeiros e até helicópteros”, recorda a pequena agricultora “veredeira” Delícia Fernandes da Mota, que mora a menos de 500 metros da vereda atingida pela grande queimada. O incêndio começou no local em meados de maio de 2017. Mesmo com ações de combate, continuou avançando por baixo do solo, sendo totalmente debelado apenas em novembro daquele ano, quando voltou a chover na região.

 

Pesquisadora do tema, a bióloga Yule Roberta Ferreira Nunes, doutora em engenharia florestal e manejo ambiental do Departamento de Biologia Geral Universidade Estadual de Montes Claros (Unimontes), explica que as veredas, mesmo sendo áreas úmidas, acabam se tornando mais vulneráveis ao fogo, e o desmatamento contribui para essa condição. “Com as mudanças causadas pelo uso do solo, diminuição da cobertura vegetal e, principalmente, o rebaixamento do nível freático, tem ocorrido a diminuição da umidade nesses ambientes. Com essa redução e o secamento, essas áreas ficam extremamente suscetíveis aos incêndios”, afirma.

 

"Se houver secamento, que é determinado pelo rebaixamento do lençol freático, o fogo degrada totalmente o ambiente"

Yule Roberta Nunes, doutora em engenharia florestal da Unimontes

 

“Nas veredas, existe um acúmulo de matéria orgânica que é percebido pela ocorrência de solos turfosos e hidromórficos. A partir do momento que ocorre o secamento, essa matéria orgânica se torna material altamente inflamável. Como fogo nas áreas de cerrado é frequente, a proteção natural das veredas, a água, se torna inexistente e todo o ambiente pode ser totalmente destruído pelos incêndios”, descreve Yule Roberta, que coordena um estudo sobre os impactos ambientais nas veredas do Norte de Minas, denominado Peld-Vere (Programa de Pesquisa Ecológica de Longa Duração – Veredas).

 

“As veredas são ambientes de baixa resiliência ao impacto do fogo. Esse impacto depende diretamente do nível de umidade que a vereda apresenta. Se houver secamento, que é determinado pelo rebaixamento do lençol freático, o fogo degrada totalmente o ambiente”, assinala.

 

Danos à flora e à fauna

Ela também estudou a queimada na Vereda do Peruaçu e explica o que ocorreu no local. “A Vereda do Peruaçu apresenta recuo de cabeceira em torno de 50 quilômetros e rebaixamento do nível freático de aproximadamente meio metro por ano (segundo estudos realizados no Parque Estadual Veredas do Peruaçu). Foi o que determinou o grande incêndio que aconteceu lá. Como não existe mais a água para proteger o sistema, a matéria orgânica acumulada em milhares de anos secou e se tornou material para as chamas. Isso fez com que o fogo durasse meses, até queimar todo o material e voltar a chover na região. Assim, toda biodiversidade foi dizimada, o inclui a palmeira buriti, associada às áreas úmidas. A degradação foi completa”, afirma.

 

O ambientalista e brigadista Eduardo Gomes ressalta que o fogo em uma grande vereda, como ocorreu na comunidade de Buritizinho, além dos danos à flora, provoca grandes prejuízos para a fauna, afetando o equilíbrio ambiental. “Existem animais que conseguem fugir do fogo, como aves, alguns mamíferos e répteis. Mas, grande parte das espécies não consegue escapar, principalmente, os da cadeia menor, como insetos e micro-organismos que não são visíveis, mas são importantes dentro do ecossistema”, observa Gomes.


No caso dos buritis, ele salienta que a palmeira dificilmente sobrevive à queimada porque tem o seu sistema de raízes consumido pelo fogo.

 

 

Prática alimenta a degradação

 

A equipe do Estado de Minas verificou a degradação de veredas em vários municípios do Norte do estado, como Japonvar, Lontra e Brasília de Minas. Lugares onde ainda subsiste o antigo costume de pequenos agricultores de usar fogo para limpeza de terreno antes do plantio, o que coloca nascentes em risco.

 

“Acidentalmente, esse fogo, devido à proximidade com os solos turfosos das veredas, pode penetrar no solo. Em função da escassez ou ausência da água, o fogo se propaga de forma silenciosa e lenta, mas pode atingir grandes proporções e trazer danos irreparáveis para o ambiente”, alerta a pesquisadora Maria das Dores Veloso, do Departamento de Biologia Geral da Unimontes. Há também a prática de atear fogo ao cerrado com intenção de propiciar a rebrota da vegetação para a alimentação do gado. Mas essas chamas também podem fugir ao controle e se propagar desordenadamente.

 

Acompanhe a série

Esta reportagem integra a série “Veredas mortas”, do Estado de Minas, que toma emprestado o título inicialmente pensado por Guimarães Rosa para sua obra-prima, depois batizada “Grande sertão: Veredas”. As reportagens começaram a ser publicadas no domingo (14) e a íntegra das reportagens, galerias de fotos e vídeos estão disponíveis em nosso site.