Campos de eucalipto às margens de degradada área de vereda em Três Marias -  (crédito: Alexandre Guzanshe/EM/D.A Press)

Campos de eucalipto às margens de degradada área de vereda em Três Marias

crédito: Alexandre Guzanshe/EM/D.A Press

Noroeste e Norte de Minas Gerais, Trijunção Minas, Bahia e Goiás – No “Grande sertão” romanceado por João Guimarães Rosa com base em observações bem reais, os jagunços se voltam de seus arreios e avistam a fumaça de queimadas atenuando a luz do Sol do sertão, ao retornar dos “Geraes de Goiás” para os de Minas para uma última batalha. “Atravessamos campos. Dias, tão claros, céu de toda altura. Assaz voavam eram os gaviões. E Goiás estava pondo fogo nos seus pastos. Arte que fumaçava, fumaceava, o tisne. O sol roxo requeimão”, descreve passagem do clássico “Grande sertão: veredas”, de 1956.


Fosse hoje, certamente o escritor precisaria retratar a surpresa do bando ao ver de súbito o sol escurecer como sob um eclipse, encoberto por densa fumaça preta despejada pela queima nos fornos industriais de carvão.

 

 

 

Carvão de eucalipto. Os resíduos lançados ao ar pela queima da madeira nos fornos do sertão agridem ainda mais aquela atmosfera. Fumaça que pode ser em média cinco vezes mais poluente que o querosene e o gás liquefeito de petróleo, considerando emissões de gases de efeito estufa monitorados pelo Protocolo de Kyoto, segundo simulação de estudo do Departamento de Química da Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro, de 2018.


O dióxido de carbono (CO2) é o gás que mais contribui para o aquecimento global, pela abundância e duração na atmosfera, mas nessa combustão também são liberados o metano (CH4) e o óxido nitroso (N2O), em menor quantidade, porém com gravidade.

 

 

Mas os impactos no sertão pelas mãos conscientes dos homens vão além da fumaça poluente. Especialistas, ambientalistas e os próprios sertanejos apontam o desmate do cerrado para plantio do eucalipto, a água sugada dos rios e do subterrâneo para as plantações, as erosões, os espelhos fotovoltaicos se multiplicando como fatores de degradação do meio ambiente.

 

Trator trabalhando em lavoura na zona rural de Chapada Gaúcha

Trator trabalhando em lavoura na zona rural de Chapada Gaúcha

Alexandre Guzanshe/EM/D.A Press

 

Desencadeiam mudanças e eventos climáticos extremos, como secas prolongadas, ondas de calor e tempestades devastadoras, como mostra o Estado de Minas na terceira reportagem da série “Veredas mortas”, que toma emprestado o primeiro nome pensado para o livro de Rosa.

 

Ano após ano, a ação humana vai substituindo o cerrado e deixando a abundância de água desse importante berçário de rios como o São Francisco, das Velhas, Paracatu e Urucuia para as páginas romanceadas pelo célebre escritor. E as veredas, áreas de nascentes que vão sendo dizimadas no processo, um dos símbolos mais frágeis e necessários para o equilíbrio desse ecossistema, talvez atualmente simbolizem melhor essa degradação.

 

 

O avanço da silvicultura

No Brasil e especialmente em Minas Gerais, as florestas de eucalipto são as mais amplas soluções da silvicultura para extrair celulose para papel e e para produção de carvão vegetal para fornos de siderúrgicas, entre outros usos.

 

Segundo levantamento da Associação Mineira de Florestas (AMF), no país há 7,5 milhões de hectares (ha) plantados com a espécie, sendo Minas o maior produtor, com 2,2 milhões de ha (29% do total brasileiro). Só nos 50 municípios do sertão mineiro de Guimarães Rosa listados pela reportagem, essa área chega a 556 mil ha (25,3% do total em Minas).

 

 

Nessa imensidão de “florestas” cartesianas de árvores longilíneas, um dos mais respeitados estudiosos da obra de Guimarães Rosa, amigo do personagem verdadeiro Manuelzão (Manuel Nardi), o filósofo do sertão José Osvaldo dos Santos, conhecido como “Brasinha”, constata o predomínio da monocultura. “Manuelzão falava que o cerrado acabou. Que acabou tudo e agora é só eucalipto. E que lá dentro não tem nem passarinho. E que nem cobra vive”, diz Brasinha, relembrando palavras do amigo.

 

“Em ‘Noites do sertão’ tem um conto que tem o lindo nome de ‘Buriti’. Buriti, para o Guimarães Rosa, era palmeira de Deus, né? Essa maravilha de Deus. E aí o narrador fala o seguinte: ‘Será que eles vão valar essas veredas?’ Será que eles vão dar conta de valar essas veredas por eucalipto? Fiquei imaginando, será que o veredeiro (sertanejo típico que sobrevive desse ecossistema) vai virar carvoeiro? Então, ali o Guimarães Rosa já estava com a consciência de que alguma coisa ia acontecer”, sugere Brasinha.


O fim da beleza torta do cerrado

Os troncos tortuosos e cascorentos das árvores de cerrado ficaram esparramados. Destroços de lenha na terra revolvida, onde depois do desmatamento o trator passou arando, para não deixar mais de pé nem um toco para testemunha. Era mata de 103 hectares em Andrequicé, distrito de Três Marias, na Região Central de Minas, que estava preservada até 2023, servindo de cobertura para a área de recarga hídrica de um córrego que nasce na encosta.

 

Dois anos antes, uma faixa de mata nativa vizinha, de 40 hectares, que abrangia área de recarga de outro riacho, também foi devastada, dando lugar a uma plantação de eucaliptos. Os dois mananciais, o primeiro, de dois quilômetros de comprimento, e o segundo, de três quilômetros, são tributários do Ribeirão do Guará, afluente do Rio de Janeiro, que por sua vez termina a sua jornada no Rio São Francisco.

Grandes plantações no cerrado mineiro, em Chapada Gaúcha

Grandes plantações no cerrado mineiro, em Chapada Gaúcha

Alexandre Guzanshe/EM/D.A Press

 

Um avanço voraz que transforma o cerrado, sobretudo as características naturais na área descrita por Guimarães Rosa em “Grande Sertão: veredas”. “A implantação de eucaliptais suprimiu, matou efetivamente, muitos cursos d’água e muitas veredas aqui no Norte de Minas. Mas muitas, mesmo”, afirma o ambientalista Almir Paraca.

 

“Hoje, a gente pode dizer que algumas áreas, terras devolutas que o Estado cedeu décadas atrás para empresas implantarem eucaliptais para siderurgia aqui na região, deram todas com burros n’água. E temos ali áreas erodidas em acelerado processo de desertificação. O solo praticamente nu, de extensões enormes, muitos e muitos quilômetros que foram abertos e implantados eucaliptais que não vingaram”, testemunha.


“Maior monocultura de eucalipto do planeta”

Onde vingou e onde não vingou, o plantio de eucaliptos trouxe “efeitos devastadores” ao cerrado no semiárido mineiro, atingindo pesadamente veredas e outras fontes de água, elevando a escassez hídrica. A constatação é da professora Flávia Maria Galizoni, do câmpus da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG) em Montes Claros, que coordena pesquisas relacionadas a recursos hídricos, além do programa público “Água e alimento: proposta de pesquisa e extensão em comunidades rurais do semiárido mineiro”.

 

“A monocultura de eucalipto impactou as áreas de recarga de mananciais, afetando as fontes de águas”, lamenta Flávia Galizoni, lembrando que no cerrado do Norte de Minas e do Vale do Jequitinhonha, empresas usaram recursos públicos e implantaram “as maiores áreas contínuas de monocultura de eucalipto do planeta”.

 

Campos de eucalipto às margens de degradada área de vereda em Três Marias

Campos de eucalipto às margens de degradada área de vereda em Três Marias

Alexandre Guzanshe/EM/D.A Press

“E assentaram justamente em cima da ‘caixa d’água’ de importantes bacias hidrográficas, como os rios São Francisco e Jequitinhonha. O desmate de milhares de hectares de vegetação nativa, que é adaptada ao clima semiárido da maior parte dessas regiões, para implantação de monoculturas de eucalipto – uma planta exótica, intensiva em consumo de água – afetou a dinâmica hídrica, ocasionando secamento de inúmeras nascentes e mananciais; inclusive veredas”, descreve a pesquisadora.

 

“As veredas são vitais para a circulação de água no cerrado. E a monocultura de eucalipto não respeitou nem áreas de recarga (as cabeceiras) das veredas nem as veredas propriamente ditas”, completa a pesquisadora da UFMG.

 

"A monocultura de eucalipto trouxe efeitos devastadores para o cerrado: impactou as áreas de recarga de mananciais afetando as fontes de águas"

Flávia Maria Galizoni, professora da UFMG

 

A especialista afirma ainda que o plantio de eucalipto representou “dupla expropriação” para os camponeses do Norte de Minas e do Vale do Jequitinhonha, “pois eles perderam o acesso à terra e à água”. “Empresas monopolizaram terras e fontes de águas fundamentais para modos de vida e de produção de alimentos, destruíram áreas imensas de cerrado que alimentavam nascentes, a fauna, a flora, a biodiversidade, fundamentais para manter os mananciais que nutrem comunidades rurais, que alimentam as cidades.

 

Pivôs exaurindo a água do sertão

Outro fator de pressão que domina os planaltos e vales do sertão de Guimarães Rosa atualmente são as plantações gigantescas irrigadas por pivôs centrais, que buscam água dos rios, barram veredas e consomem a água subterrânea que abastece nascentes do cerrado e cursos d’água. Segundo a Agência Nacional de Águas e Saneamento (ANA), os 50 municípios sertanejos mapeados pela reportagem já abrangem 188.049 hectares desses tipo de cultivo, o que representa 45% dos pivôs do estado. E a perspectiva é de que Minas pode ampliar isso em cerca de 19% a curto e médio prazos.

 

Acompanhe a série

Esta reportagem integra a série “Veredas mortas”, do Estado de Minas, que toma emprestado o título inicialmente pensado por Guimarães Rosa para sua obra-prima, depois batizada “Grande sertão: Veredas”. As reportagens começaram a ser publicadas no domingo (14) e a íntegra dos textos, galerias de fotos e vídeos estão disponíveis em nosso site.