O buritizeiro é a formação nativa mais importante das veredas, mas além de a caracterizar, serve de refúgio e alimentação para araras, papagaios e periquitos -  (crédito: Alexandre Guzanshe/EM/D.A Press)

O buritizeiro é a formação nativa mais importante das veredas, mas além de a caracterizar, serve de refúgio e alimentação para araras, papagaios e periquitos

crédito: Alexandre Guzanshe/EM/D.A Press

Noroeste e Norte de Minas Gerais, Trijunção Minas, Bahia e Goiás – Sem as palmeiras de buriti e o solo encharcado vencendo a seca, vereda deixa de ser vereda. Descaracterizadas, as formações imortalizadas na literatura por João Guimarães Rosa perdem a proteção legal de patrimônio ambiental mineiro, dando margem à substituição por outras culturas e empreendimentos econõmicos.

 

O alerta feito por biólogos e ambientalistas mostra como esses oásis, fontes de água dos mais importantes rios do cerrado, dependem em todos os aspectos de sua vegetação estar intacta para sobreviver, como mostra a quarta reportagem da série “Veredas mortas”.

 


O nome remete ao primeiro título proposto há 70 anos por Guimarães Rosa para batizar uma obra-prima literária, “Grande sertão: veredas”.

 

Por meio da agonia da vegetação símbolo do sertão, a reportagem denuncia a devastação do cerrado e dos rios, além dos impactos que tornam mais frequentes as ocorrências de eventos climáticos extremos, como secas prolongadas, ondas de calor e tempestades destrutivas.

 


Levantamento da equipe do EM com base no Inventário Florestal do Instituto Estadual de Florestas de Minas Gerais (IEF-MG) mostra que dos 50 municípios mineiros do sertão descrito por Rosa ou por ele percorrido em Minas, as veredas se resumem hoje a 29,5% dos 406.037,8 hectares dessa formação no estado (veja arte na página 32), somando 119.800,28 ha.

 

 

 

Embora agonizando em grande parte do estado, a formação vegetal que encantou Guimarães Rosa é teoricamente protegida pela Lei Estadual 20.922/2013 e só pode receber intervenções consideradas “de interesse público”. Mas atualmente, apesar de típica da região, nem sequer está presente em 15 dos municípios onde os jagunços do livro guerrearam e descobriam o amor, no Noroeste e Norte de Minas.

 

"A parte de mais árvores"

Por meio da narração do personagem principal, o jagunço Riobaldo, Guimarães Rosa já mostrava a importância de as veredas serem preservadas. “A parte de mais árvores, dos cerrados, cresce no se caminhar para as cabeceiras. Boi brabeza pode surgir do caatingal, tresfuriado com o que de gente nunca soube – vem feio pior que onça. Se viam bandos tão compridos de araras, no ar, que pareciam um pano azul ou vermelho, desenrolado, esfiapado nos lombos do vento quente. Daí, se desceu mais, e, de repente, chegamos numa baixada toda avistada, felizinha de aprazível, com uma lagoa muito correta, rodeada de buritizal dos mais altos: buriti – verde que afina e esveste, belimbeleza”, escreveu.

 

Vista aérea do Rio Catarina, com a Serra das Araras ao fundo

Vista aérea do Rio Catarina, com a Serra das Araras ao fundo

Alexandre Guzanshe/EM/D.A Press

 

Sertão sem veredas

A exuberância de paisagens descrita por Guimarães Rosa em ecossistema então equilibrado que garante o fluxo de água farta não existe atualmente nos municípios de Araçuaí, Claro dos Poções, Cordisburgo, Cristália, Espinosa, Fruta de Leite, Gameleiras, Jaíba, Janaúba, Monte Azul, Pirapora, Porteirinha, São João do Pacuí, Sete Lagoas, Várzea da Palma e Verdelândia, de acordo com o Inventário Florestal do IEF.

 

Mesmo os municípios que ainda detêm maiores áreas de veredas estão entre os que mais perderam cobertura de mata de cerrado no sertão de Guimarães Rosa. Caso de Arinos, o segundo maior abrigo dessa formação rica em água no estado, com 16.165,85 hectares em 216 fragmentos de mata, mas que figura como a terceira maior perda de cobertura de mata de cerrado – 8.610 hectares, de 2013 a 2023, e também de destruição por incêndios (3.206 ha perdidos de 2001 a 2023). O mesmo dano ameaça outros dos maiores refúgios das veredas em Minas Gerais, como Januária, Unaí e Bonito de Minas.

 

Área devastada pelo fogo dentro do Parque Nacional Grande Sertão Veredas, uma área teoricamente preservada

Área devastada pelo fogo dentro do Parque Nacional Grande Sertão Veredas, uma área teoricamente preservada

Alexandre Guzanshe/EM/D.A Press

 

Professora aposentada do Instituto de Ciências Biológicas da UFMG e pesquisadora de Guimarães Rosa, Mônica Meyer é enfática em relacionar o destino da integridade da vereda ao ecossistema, aos recursos hídricos e às mudanças climáticas. “Já se está pulverizando com agrotóxicos lançados de forma aérea as plantações de milho, feijão e eucaliptos no sertão. O agrotóxico mata tudo, todos os insetos”, afirma ela.

 

“Vi em Andrequicé (no caminho de Guimarães Rosa, em Três Marias) dois enxames de abelhas desorientados. Sem os insetos, os buritis não se reproduzem. Porque cada palmeira é macho ou fêmea, precisa dos insetos para se reproduzir. E precisa da água também, porque se o solo seca, a semente não se abre e não é carregada pela correnteza para germinar ao longo da vereda. Com isso, os buritizais estão condenados e a vereda pode deixar de existir”, aponta a pesquisadora, autora do livro “Ser-tão natureza: a natureza de Guimarães Rosa” (Editora UFMG).

 

Ela destaca que a vereda descaracterizada perde a proteção legal. “Na verdade, essa proteção, pelo que vemos nos caminhos de Guimarães Rosa, parece ficar apenas no papel”, critica Mônica Meyer.


Paisagem desolada

Essa paisagem desolada é nítida em São Gonçalo do Abaeté, onde o Inventário Florestal do IEF registra apenas seis fragmentos de veredas, somando 87,04ha. Percorrendo o território do município, são nítidos os troncos de buritis escuros e ressecados, sem galhos, folhas ou cocos.

 

No distrito de Canoeiros, as palmeiras mortas se alinham lado a lado, como lápides, percorrendo o curso desaparecido de uma vereda extinta, com os pés tomados por capim e espinhos.

 

O desenho do que deveria ser um manancial sadio mostra o leito espremido por eucaliptos que segue por nove quilômetros e desemboca no Rio Abaeté, pouco antes de sua foz no Rio São Francisco.

 

A maior devastação

Entre cidades desertas de veredas nas Gerais percorridas por Guimarães Rosa para escrever “Grande sertão”, Jaíba, no Norte de Minas, é a que perdeu a maior cobertura natural, de acordo com dados da plataforma de vigilância florestal Global Forest Watch. Entre 2013 e 2023, desapareceram 12.060 ha de verde nativo. O município também perdeu a maior cobertura vegetal para incêndios na região entre 2001 e 2023, com destruição de 6.480 ha pelas chamas.

 

Acompanhe a série

Esta reportagem integra a série “Veredas mortas”, do Estado de Minas, que toma emprestado o título inicialmente pensado por Guimarães Rosa para sua obra-prima, depois batizada “Grande sertão: Veredas”. As reportagens começaram a ser publicadas no domingo (14) e a íntegra dos textos, galerias de fotos e vídeos estão disponíveis em nosso site.